6.30.2006

15 – O Outono na mesa 19.

Tranquilize-se o sobressaltado confrade, que daqui vejo estacar siderado, qual garrano que se empina nervoso face a algo que desconhece, mas do qual não espera coisa boa, como seja, no caso do leitor, este Outono que aqui nos cai de supetão, em pleno início das férias estivais. Nada receie, contudo, o meu estimado conviva, pois este Outono do título nada tem que ver com a estação das folhas caídas, que atapetam mantos de castanho fulvo e ouro, sob o arvoredo recortado em ramos nus contra um cinzento de neblina, persistente e fria. Não, o Outono que nos ocupa hoje é outro, trata-se de não menor coisa do que a estação, intemporal e climatericamente atípica, que Boris Vian situa em Pequim, para depois fazer decorrer toda a acção num deserto africano. O Outono em Pequim é talvez o melhor título que conheço. Lê-se o livro todo, lê-se com gosto, aliás, constata-se en passant que o texto nada tem que ver com uma coisa ou com outra, e conclui-se, no fim, que aquele livro não poderia ter outro nome.

Alturas há, confesso, em que não me surge como inverosímil a ideia de que há um pouco de Boris Vian nestas crónicas da mesa 19. Gosto sobretudo de pensá-lo por ser tão adequado, visto que há muito do universo de Vian na própria mesa 19. Há coisas que parecem graves sem o serem, como um dito mais arrojado, ou uma crónica que, de tão ferina, provoca um casus beli semelhante ao causado pelos padres do livro, que, armados de lança-hóstias, impediam a entrada para o autocarro, acabando tudo por redundar em nada, tanto num caso como no outro. Há também coisas de uma gravidade estupenda, avassaladora, que passam facilmente por minudências, tal como a redução do tempo habitualmente usado para almoçar, ou, no caso de Vian, o envio de uma equipa heterogénea para a Exopotâmia, com todas as catástrofes que tal viria a acarretar. Há ainda fúrias magníficas e despropositadas, verdadeiros eclipses da razão, seja quando o nosso taliban se exalta, ou o Gonçalo se ofende, ou ainda, no caso do livro francês, quando o interno, que cuida da cadeira doente, perde a cabeça com a sua desgraçada flatulência, e a envenena. O interno é condenado a partir contra a sua vontade para a Exopotâmia, o Rui continua a almoçar connosco, e o Gonçalo é o Gonçalo, quem saberá dizer qual é o mais castigado?

A minha admiração pela obra de Boris Vian, em todas as suas nuances, apenas encontra par na vergonha com que eu, de cabeça baixa, confesso o meu total desconhecimento de quase toda essa obra. De Vian, posso dizer que conheço o Outono em Pequim, já visto e revisitado, e mais alguns títulos soltos, sem contudo dispor de obra que lhes faça corresponder. Não é todavia despiciendo esse conhecimento sumário, pois os títulos do ilustre surrealista são, em si mesmos, outras tantas obras de arte. Legendas como, “Irei cuspir-vos no túmulo”, ou “A espuma dos dias”, quase nos convidam a dar por terminado o trabalho do autor, e a escrevermos nós próprios o livro, não há-de ser difícil, com pistas tão boas como estas. Sem embargo destes factos, gostaria assim mesmo de ler o que o próprio Boris escreveu, empenho que desde há muito consta na minha lista de coisas a fazer, mas já se sabe como é a vida, o que deve ser feito acaba sempre por ceder a vez ao que tem de ser feito, razão por que se acaba por não fazer nada de jeito.

Mas retomo o que disse antes, é lícito, ao menos para um ignorante como eu, ficcionar o texto que ficaria bem debaixo de tão expressivo título, “L’écume des jours”. Fecho os olhos, suponho que tracei as palavras no alto da folha em branco, e tento imaginar que vocábulos se ocultam sob tão lapidar pedra. É preciso notar primeiro que a tradução é imprecisa, écume convida mais a portuguesa escuma, do que espuma, e há nestes dois nomes diferenças precisas. Espuma é o que os sais de banho fazem na banheira, enquanto a escuma é um resíduo pouco agradável, com tendência a secar nos extremos onde chega, originado pela sopa que ferve demais, ou pela ressaca da onda que abandona a praia. E é esse, estou seguro, o sentido do título em questão, esta “écume” é a escuma meio seca, meio espumosa, que os dias deixam nas areias da nossa existência, quando se recolhem em fim de mandato.

Visto dessa forma, nenhum de nós é o areal imaculado que gostaria de se supor. Essa areia branca, a nossa alma infantil, reveste hoje uma espessa couraça, feita de camadas sobre camadas de escuma, essa espuma que os dias lá foram deixando em cada maré vaza. E isso aborrece-nos, a alma não é já infantil por ser pura, é infantil porque está ranhosa, e tem os cueiros sujos, e essa é a faceta do infantil que ninguém gosta de acarinhar. Sejam ou não funções naturais, o facto é que não há bilu-bilu que resista ao lábio subitamente encaracolado pelo rico perfume da poia, metáfora brutalmente fecal da tal escuma da alma. Pior ainda, mesmo que atingíssemos a proeza de limpar o areal da nossa alma colectiva, nada teríamos no fim, nada a não ser areia. E areia é a matéria com que se fazem desertos, nomeadamente este, na Exopotâmia, como cenários de inúteis caminhos-de-ferro, onde comboio algum virá a circular. A coisa não parece ter saída, e vem-nos a vontade de dizer três pais-nossos, como o abade Joãozinho.

Muito poderia ainda ser dito, mas não creio que mereça a pena repisar no assunto. Remontámos muito, como dizia o velho Eça, e, sem disso nos darmos conta, fomos estabelecendo todo um sistema, toda uma doutrina. Falta apenas, para acabar de quadrar o círculo, para ancorar a nossa tese, mostrar que coisa tem tudo isto a ver com a mesa 19. Ora isso, felizmente, é tarefa fácil, que não assusta quem já tanto argumentou. Vamos a ela, então.

Os nomes têm geralmente importância, e isto é especialmente válido em Boris Vian. A Exopotâmia não é um conjunto de sílabas escolhido ao acaso, como se depreende da sua etimologia, é uma palavra que nos remete para algo exterior. A que coisa é a Exopotâmia exterior, eis o que não é dito, mas ela não se embaraça por tão pouco, e vai-se mantendo teimosamente exterior, mesmo enquanto a interiorizamos. Se interpretássemos literalmente a palavra, teríamos de concluir que a Exopotâmia é exterior ao rio, o que é claramente um disparate. O problema de Vian, tal como o compreendo, é que a própria vida é, também ela, claramente um disparate.

A mesa 19 tem essa mesma característica, a de ser exterior. Não é sequer muito importante perceber a que é que é exterior, desde que o seja. Melhor ainda, trata-se de um exterior especial, um exterior intimista, o que parece contradição, e é só consolação. Os confrades da mesa 19 têm em comum o facto de conviverem diariamente com uma entidade interiorizante, asfixiante, auto-contida, que tende a colapsar sobre si própria como um buraco negro. Esses seres que a física descobriu, os buracos negros, caracterizam-se por exercer uma pressão intoleravelmente esmagadora sobre os seus habitantes, que naturalmente anseiam por um escape. A mesa 19 é o nosso escape, o nosso exterior, a Exopotâmia onde as regras habituais não vigoram, e o abade Joãozinho nos pode a todo o momento abençoar com uma oração blasfema, impondo-nos em seguida a penitência de três pais-nossos. Creio firmemente que o próprio Boris, caso se sentasse ali connosco, diria de bom grado os padres-nossos. Pois então, que diabo, também eu os digo, grato que estou por estes momentos agradavelmente passados em Pequim. E no Outono, logo no Outono.

6.26.2006

14 – Não-crónica.

No que é um parêntesis ao habitual estilo destes textos, formalizo-me, excepcionalmente e em bicos dos pés, para declarar que a crónica 14, a original, foi definitivamente retirada do blog, em resposta aos justos protestos da Vânia, que se considerou parte ilegitimamente lesada, quer na sua própria pessoa, quer na do Gonçalo, asserções que o autor não ousa desmentir.

Apenas como explicação, que não justificação, relembro que estas crónicas foram definidas, há já muito tempo, como caricaturas bem-humoradas de umas quantas pessoas, sendo evidentemente mais fiel a caricatura, quanto maior o conhecimento que o cronista tinha do seu alvo. Isso justifica um certo exagero na distorção das veras feições da pessoa visada, quanto mais nos é desconhecida essa pessoa.

Há ainda que lembrar que os factos narrados nas crónicas não são verdadeiros, antes obras de imaginação, filigranas construídas sobre as areias de um qualquer episódio solto, como foi o repararmos nós que a Vânia deixara de usar certo anel, e que certa pessoa deixara de ser vista por lá. Daí a inventar um lance em que a Vânia nos contava isto e mais aquilo, foi um curto passo. Mais uma vez, não tive a consciência do efeito que tal invenção poderia produzir no leitor, neste caso, a própria Vânia, do que igualmente me penitencio.

Em suma, este blog entra hoje no seu caminho legítimo, do qual lamento me ter transviado. A águia Sam tinha razão, a história da mesa 19 não se escreve com lápis importados, mas com as nossas veras tintas, pelo que esta cronologia promete, desde hoje, voltar-se sobretudo para dentro. Às vítimas inocentes dos erróneos desvios do percurso, sobretudo à Vânia e ao Gonçalo, as nossas sinceras desculpas. Lastimo sinceramente ter ofendido, embora sem ser por mal.

Afinal não é o treze que dá azar, a crónica catorze é que não devia ter existido. Enfim, quod scripsi, scripsi, e só nos resta aguardar a quinze. Enquanto ela não vem, tentem não levar a vida muito a sério, ou então morrem. Tá?

6.16.2006

13 – Juramento de sangue.

“Nos primórdios do século XXI, era ainda habitual que os cidadãos se reunissem em grupos, por vezes até com mais de duas pessoas, a fim de comerem, beberem e conversarem. A estas improváveis agremiações de gente, costumavam eles chamar, as tertúlias”.
in “A grande enciclopédia da proto-história”, edição de dois mil seiscentos e oitenta e nove, revista.

É quase impossível para o cronista, que desde a sua desperdiçada juventude sofre de um irremediável pendor místico, evitar uma associação cabalística, mesmo bíblica, que permeia como um substrato ectoplásmico as crónicas mais recentes. Não é com efeito um caso fortuito que a última tenha sido a décima segunda, número de terminação, a evocar os apóstolos e o fim de Jesus Cristo. Esta, em contrapartida, ostenta o número treze, símbolo inequívoco da predominância aziaga de Judas Iscariotes, figura entre todas controversa, por ser o inimigo de Cristo que o ajudou a concretizar os seus planos, diabo sem o qual não haveria Céu, deus ex machina feito mais tarde demónio, maldito pela sua bendita intervenção no plano divino que, embora o negasse, sempre contou com ele. Nada disto é realmente importante para esta crónica, como é evidente, e só é mencionado para mostrar a alguns espíritos, que exibiram uma certa preocupação quanto ao número fatal, que tudo é relativo, como provou o velho Einstein na sua famosa teoria, cujo imorredoiro enunciado é, “bem, sabe, isso depende, é relativo”.

Serve esta erudita introdução para vos dizer, à sua maneira cambaleante, e exuberantemente caótica, que a comissão responsável pela edição das crónicas da mesa 19 decidiu, após auscultar as opiniões disponíveis em comentário, e depois de severa e prolongada disputa interna, durante a qual o editor se chegou a ferir a si mesmo num olho, numa discordância das suas próprias opiniões que, infelizmente, não fez escola, mas decidiu então a comissão, repetimos, manter a publicação destas crónicas, subsistindo, todavia, um clima de abertura para quaisquer dissenções que se venham a revelar. Isto determinado, há agora naturalmente que escrever uma crónica. Pois que não seja isso um problema, vamos a ela, antes que esfrie.

A mesa 19 é acima de tudo uma tertúlia, e tal consiste, pela sua raridade, cada vez mais num laço sagrado. Nem sempre estamos juntos, como nem sempre temos opiniões iguais, mas são essas diferenças que nos unem, tal como essas distâncias nos aproximam. Esta semana foi disso paradigmática, com uma sardinhada que só envolveu quatro de nós, seguida de uma série de pedrinhas entre feriados, por onde só saltitaram os que tinham faltado à sardinhada. A ela faltou também a Vânia, por razões de força maior, que a obrigaram também a faltar às pedrinhas das semanas subsequentes. Que mal tem isso, afinal, se o sentido de unidade se não desfez?

Há entre nós um juramento que jamais foi dito, mas que se escreveu por si só no sangue de uma honradez primeva, coisa velha e que se supunha em desuso. É isto que autoriza a crer que, contra todas as canalhices do dia a dia, a tertúlia permanecerá coesa. E, enquanto tal se der, as crónicas cá estarão para lhe fazer justiça, nem que para isso tenham de se engalanar com o aziago treze, como foi o caso desta. A guarda morre, mas não se rende. A mesa 19 também não.

Esta, escusado será dizer, foi uma crónica de princípios, de tomada de posições, de definição de atitudes. A próxima, felizmente, será uma crónica interessante, divertida, até, isto no caso de mo permitirem, e não mo levarem a mal. Até lá, vão fazendo o favor de serem felizes.

6.07.2006

12 – Implosão.

Se alguma coisa foi desde o princípio evidente, é que estas crónicas falam de luta, de pequenas e amáveis lutas entre distintas maneiras de ser. Nunca as quis isentas de conflito, aquele conflito amigável que tanto agrada ao Rui Constâncio, a palmada cúmplice e acompanhada de um piscar d‘olho. Caricaturei amigos nestas páginas, mas, se virmos bem o assunto, não fiz mais do que retocar a máscara de comédia que eles próprios se comprazem em apresentar no dia-a-dia. O Paulo, por exemplo, tem cultivado um trato bruto e soez que muito o diverte, e que eu me limitei a enrugar numa caricatura, situando-o no cu do Macaco com Hemorróidas, em Bostis Merdix 7. Tudo isto foi feito de boa mente, e não tinha outra intenção que não fosse esta, unir mais as pessoas em torno de uma brincadeira resultante de uma vivência comum. Toda a gente sabe, todavia, onde vão parar as boas intenções.

O dia de hoje não me correu bem. Não quero com isto dizer que os dias corram assim ou assado, porque, hoje em dia, graças à modernidade dos tempos, os dias não correm, antes decorrem em paralelo, pistas múltiplas por onde deslizam as diversas questões que nos afectam. Em duas dessas vertentes, uma pessoal e outra profissional, o meu esquiador topou com um pedregulho dos grandes, estatelando-se ao comprido. Tentando recompor-me um pouco, pus-me então a pastar por veredas secundárias, e fui dar de caras com o comentário do Z9 à crónica Nº. 11. Não ajudou.

Trata-se, inegavelmente, de um comentário perfeitamente legítimo, ao qual nada há a reprovar, mas que teve o condão de transportar esta brincadeira para um plano completamente diferente daquele que originalmente norteou este projecto. Tem de lamentável o facto de não fundamentar qualquer opinião, mas compensa essa deficiência menor com palavras como nojo, em maiúsculas, boçalidade e baixo quilate, coisas que, se vistas em conjunto com a (correcta) exclusão do caranguejo da classe dos mamíferos, não permitem acalentar ilusões sobre as intenções do comentador. Como costumava dizer o Bugs Bunny, “you know, of course, that this means war!”. Pois bem, não quero nada disso.

Volto a dizer, o único objectivo destas crónicas foi ajudar a unir a tertúlia da mesa 19, numa época em que as tertúlias são tão difíceis de encontrar e manter. Espero que alguns dos textos que atrás ficaram escritos tenham tido um papel, mesmo que modesto, nesse nobre desígnio. Mas tudo tem um fim, mesmo a salsicha, que tem dois, e o que é demais pode sempre fartar, pelo que tudo leva a crer que chegámos ao fim da linha.

Assim, com muita pena minha, despeço-me das crónicas da mesa 19, com um grande agradecimento a todos os que tiveram a paciência de as acompanhar. Este espaço não morre, mas fica apenas suspenso, só não sei dizer até quando. Um dia, se as condições o justificarem, as crónicas voltarão. Até esse dia, aceitem um grande, Até já, do vosso amigo Fózi (aka Nuno Coelho).

6.02.2006

11 – Dissecando o ET.

A mesa 19 não percebia nada de aritmética, e isso patenteava-se claramente em questões tão triviais como o número de lugares a reservar para cada almoço. Era vulgar encontrarmos apenas quatro, e termos de juntar uma mesa ao espaço que nos tinha sido guardado. Um dia, no entanto, a Marta antecipou-se, e juntou a tal mesa, reservando seis lugares. Logo por azar, éramos quatro, nesse dia. Retirada a mesa adicional, viemos a receber um telefonema que nos autorizava a esperar novo comensal, pelo que voltámos a juntar a terceira mesa. Prescindimos dela uma hora depois, face à evidente ausência do prometido conviva, e a mesa foi de novo removida, sem jamais ter sido ocupada. No dia seguinte, a Marta só nos reservou quatro lugares, o que não bastava, visto que éramos seis.

Outro frequente pomo de discórdia prendia-se com a momentosa questão do ar condicionado. O aparelho de ar condicionado daquela sala situa-se directamente sobre a mesa 19, o que convém maravilhosamente a encalorados como eu, mas desagrada a gentes mais tropicais, para quem seria preferível que a dita maquineta se encontrasse instalada sobre qualquer outra mesa daquela sala, ou, melhor ainda, de uma sala inteiramente diferente. No entanto, conseguíamos via de regra chegar a um consenso, excepto quando o Paulo se encontrava presente.

Tudo no Paulo exsuda aquela encantadora bestialidade feroz, que nos mostra, de forma brava e honesta, aquilo que a humanidade poderia ter sido, caso não se tivesse dado o advento da civilização. Esperar que ele exiba graças sociais, ou comportamentos contemporizadores, é o mesmo que pedir a um enorme gorila que segure uma delicada taça de champanhe, sem derramar uma só gota, durante uma intensa crise de epilepsia. Assim que o Paulo se apercebia do jacto de ar frio, apressava-se a pedir delicadamente, naquela sua forma deliciosa de soltar as palavras por entre os dentes, como balas despedidas do cano de uma metralhadora, Desliga essa merda, porra! Nós então discutíamos democraticamente o assunto, numa assembleia moderada pelo líder natural, que era a pessoa a quem a Vânia tivesse confiado o controlo remoto do aparelho.

Não eram nada fáceis, estas discussões democráticas. Logo para começar, sempre suspeitei que o Paulo não dominava inteiramente o conceito. O facto é que, quando se falava em democracia, ele tinha uma certa tendência para sorrir e mudar de assunto, embora tenha uma vez admitido que na verdade não lhe desagradava, na condição de vir bem passada. Estas carências pontuais, que de certa forma o distanciavam daquilo a que se costuma chamar um intelectual, forçavam-nos amiúde a adoptar, como língua oficial da assembleia, o seu vernáculo das docas, o que tinha o efeito de pontilhar as discussões com cruas referências a improváveis funções biológicas, ao mesmo tempo em que se desvendavam segredos inomináveis sobre os hábitos sexuais dos antepassados de cada um dos circunstantes. Aquilo era lamentável e, de certo modo, muito parecido com duas miúdas em biquíni a lutar numa caixa de lama: é nojento, é degradante, e ninguém quer ficar de fora.

Mas havia algo que não fazia ainda sentido. Eu contei já nestas páginas que o Paulo, oriundo do planeta Bostis Merdix 7, teve a sorte de ir parar a uma firma corporativa, onde se adaptou como uma luva se adapta à mão que a veste. Mas acontece que eu sei que uma das principais actividades desenvolvidas por estas empresas é a realização de reuniões. Marcam-se reuniões seja pelo que for, ao ponto de a mais prestigiada das reuniões, la creme de la creme, se dividir em duas partes. Na primeira, analisa-se a reunião anterior, enquanto a segunda é dedicada a planear a reunião seguinte.

Isto queria então dizer, se a lógica não me pregava nenhuma partida, que a atitude do Paulo era um trunfo de sobrevivência neste ambiente, e que as tais reuniões não passavam de outras tantas sessões de luta livre como as nossas, onde imperaria a lógica do “tem razão quem bate primeiro”, e onde o equilíbrio do poder seria decidido com base na pose do controlo remoto. Pensei um pouco mais, recordando algumas reuniões a que compareci, antes de ser dispensado dessas actividades, devido ao meu hábito de adormecer a meio da função. Não havia por onde errar, as reuniões corporativas eram mesmo assim, e o Paulo ajustava-se-lhes na perfeição.

Subitamente, compreendi tudo: o planeta Bostis Merdix 7, de onde o Paulo veio, é necessariamente mais evoluído do que o nosso, visto que dominam já as viagens inter-estrelares. Os seus habitantes não são já homo sapiens sapiens, pois evoluíram para o estádio seguinte, o homo corporativus. Esta nova espécie, dispondo de poderes que apenas agora começamos a aflorar, está expressamente adaptada a um ecossistema de merda, cujos ciclos se limitam a transformar caca em bosta, e vice-versa. É um homem que vale a pena contemplar, o Paulo, novo modelo do futuro do homem.

Isto leva-me de novo às observações que abrem esta crónica, os nossos problemas com a aritmética mais trivial. Interpreto tal coisa como um sinal, muito positivo, de que nos estamos por fim a integrar no modelo corporativo. Nunca vi, com efeito, um moderno gestor que fosse capaz de somar dois números sem se sentir enjoado. A única coisa que todos sabem é que dois objectos juntos formam um par, e sabem disso porque um par é algo que as suas mulheres lhes meteram na cabeça, já há algum tempo

Resta-nos apenas mencionar, só por mencionar, o emplastro da Vânia, o Gonçalo. Não estou ainda seguro disto, mas suspeito que é ele o Terminator.