7.26.2006

19 – A mesa da crónica 19.

E aí está! Quase não se deu pela coisa, à medida a que as crónicas se iam sucedendo paulatinamente, uma depois da outra, como quem não quer dar muito nas vistas. Uma paragem aqui, uma promessa de desistência mais além, um pouco adiante um recuo, crónica retirada de circulação, por comprovada ofensa à moral e aos bons costumes. Mais uns escritos e, antes que nos déssemos conta, chegámos ao número mágico, a crónica 19.

Não vale a pena dizer aqui que o 19 é o nosso número, o símbolo da nossa unidade num mundo desagregante, o nosso fetiche e estandarte. Esta crónica tem, assim, um certo ar de número de aniversário, aquela lauda centrada em si própria com que se comemora um ano de publicação seja do que for. É costume reservar essa edição especial para fazer uma pausa introspectiva, inquirir do que se pretendia, de como o atingimos, e se valeu realmente a pena essa caminhada. Pois bem, sejamos fiéis à tradição, atenhamo-nos ao uso estabelecido.

Valeu a pena, ter chegado até aqui? A pergunta não é só escusada, é mesmo perfeitamente imbecil. Parece-me por demais evidente que, quando se escrevem dezanove crónicas, e se publicam depois num blog, é porque se achou que valia a pena, ou então ter-se-ia arranjado qualquer coisa melhor para ocupar o tempo. Esse é o ponto de vista do autor, dir-me-ão, mas, e os leitores, o que pensam? Ora bem, os leitores dividem-se em dois grandes grupos, os que acham que sim, e os que acham que não. Os que pertencem ao segundo grupo deixaram há muito de ler estas crónicas, e não nos interessam para aqui, até porque não vão ler isto. Posso portanto afirmar que os leitores, os que contam, os que estão de facto a ler, também acham que valeu a pena. E pronto!

Quanto a objectivos, a coisa fia um pouco mais fino. Observadores mais atentos terão decerto notado que nunca houve, desde o início, uma declaração de princípios, uma carta de intenção, pois o primeiro objectivo deste projecto, a sua agenda oculta, era não haver qualquer objectivo declarado. Os objectivos, feia invenção do sistema corporativo, são coisa que começam por soar muito bem, nada como se saber o que se pretende atingir, e tudo isso, mas acabam na prática por, sem nos ajudar a atingir o alvo que queremos, impedir-nos de alcançar outras metas possíveis, só porque não foram inicialmente previstas. Para além disso, a orientação por objectivos é um sistema perverso, como ficou cabalmente demonstrado, quando o implementaram um dia no Céu.

Logo após a entrada em funcionamento do novo sistema, os primeiros clientes foram dois mortos da mesma aldeia, o padre e o taxista, que toda a vida fora ateu. São Pedro instalou o padre numa modesta choupana, e o taxista num palácio sumptuoso. Quando o padre protestou, explicaram-lhe, Orientação por objectivos, meu caro. A questão é esta, quando tu dizias missa, toda a gente dormia, mas, quando ele conduzia, toda a gente rezava.

É por isso que estas crónicas, não tendo qualquer objectivo, atingiram plenamente todos os objectivos que se lhes foram deparando pelo caminho. Podem nunca ter chegado aonde queriam, até porque nunca quiseram chegar a lado nenhum em especial, mas acabaram sempre por estar onde deviam. A maior parte das vezes, pelo menos, e isso já não é nada mau.

Por último, é costume, nestes casos, agradecer aos leitores, garantir-lhes que o mérito é todo deles, que foram extraordinários, que nada disto teria sido possível sem eles, passar-lhes, em suma, uma carinhosa mão pelo pêlo. Pois bem, se estão a contar comigo para dizer coisas dessas, vão desde já tirando o cavalinho da chuva, antes que o bicho fique ensopado. Mais depressa verão sair da minha boca notas de mil, do que um elogio aos leitores destas crónicas.

Refiro-me, evidentemente, aos regulares da mesa 19, que lêem mas não comentam, ou então não lêem, e se comentam não contribuem com um chavo para a discussão, deixando-me sozinho a puxar a charrua. Sozinho, não, com a benemérita ajuda de duas amigas, que nunca sequer almoçaram na mesa 19, mas lá me vão fazendo a esmola das suas opiniões. Dos meus confrades, nada. Dá para ficar chateado, não dá? É claro que não, dá mas é para escrever outra crónica, para depois também ninguém a ler, nem a comentar. A próxima, revelo-o aqui em antestreia, terá o número 20.

7.25.2006

18 – Silly Season.

Agora que o calor finalmente aperta, e um encalmado mês de Julho se prepara para ceder a vez ao tórrido Agosto, que arde já em ânsias de nos fazer suar as estopinhas, entrámos de pés ambos naquela que, nos meios jornalísticos e afins, se usa chamar a Silly Season. Nos telejornais, jornalistas que gostariam de estar de férias substituem, sem vantagem aparente, os jornalistas que estão efectivamente de férias, e vão-se galhardamente esforçando por inventar as notícias que não há. Rato que se atreva a morder um gato, ou velha que se lembre de completar cem anos, têm nesta altura honras de reportagem de abertura, e peça de vinte e dois minutos, com entrevistas e tudo.

E isto não se fica por aqui. Os telejornais são as vítimas óbvias, mas o síndroma, não há que iludi-lo, é um fenómeno colectivo, e de dimensão nacional. Por toda a parte se assiste a esta dispersão dos temas candentes, das questões marcantes, dos grandes problemas de fundo, estruturais, como se, de súbito, nada houvesse de mais grave do que uns quantos banhistas picados por peixe-aranha, ou o preço da amêijoa no mercado do Bolhão. É o tempo das lérias e dos nadas, das ninharias e minudências, das quezílias e questiúnculas, das merdices e caganitas. Os espíritos grandes são amavelmente convidados a pôr de parte essa grandeza, trocando voluntariamente o Vítor Hugo pelo Vítor Espadinha, o bom do Eça por um programa de vídeos domésticos, que se poderia hipoteticamente chamar “Ora Essa”, ou então, “Homessa”. A forte pintura do José Malhoa cede a vez ao erotismo de vão de escada da Ana Malhoa, e não espantará que venham ainda a substituir o Salvador Dali por um gajo qualquer, desde que seja daqui. Oxalá seja pelo menos salvador, como o outro, que bem andamos precisados de um.

Facilmente poderá o leitor astuto depreender que a nossa mesa, a mesa 19, sendo, como é, um organismo vivo, parte integrante da urdidura do tecido social, não poderia jamais eximir-se a este processo predatório e deletério, que insidiosamente permeia a realidade do momento. Isso mesmo constatei com mágoa no almoço de hoje, o meu primeiro após três semanas de abençoada contemplação do meu próprio umbigo (pensei inicialmente dedicar-me a um estilo de meditação mais radical, que consistiria em contemplar os meus pés, mas acontece que deixei de os ver, mais ou menos na época em que Portugal se sagrou vice-campeão europeu. Estou no entanto persuadido de que ainda andam por lá, algures no fim das minhas pernas).

Tal como eu, também o Zé Eduardo regressava de férias, enquanto os outros dois falavam em iniciar as suas, um em breve, outro um pouco mais tarde. Em resumo, aquilo não era uma mesa de almoço, era a sala de espera de um aeroporto, um daqueles antigos, onde partidas e chegadas se entrecruzavam num mesmo bufete, conversas de quem vinha a entrechocar-se com os ditos de quem ia, visões de paraíso tropical em conúbio promíscuo com sonhos de emigrante regressado a casa. Isto resultou na única conversa possível, a conversa digna da Silly Season.

Tentámos bravamente fugir ao anátema: falámos um pouco de futebol, alguma coisa da situação mundial, até – valha-nos Deus – se falou de trabalho, mas tudo sem efeito. A coisa, como diria o Zé, não levantava voo. Chamámos a Vânia, insultámos gratuitamente o emplastro, mas o resultado foi oco, pouco convincente. Parecíamos quatro tigres que, num número de circo, trucidam o domador que derrubaram, mas por mero dever de ofício, sem terem verdadeira fome, nem lhes sabendo bem.

E isto não se vai resolver tão cedo. Trata-se, no fundo, de um dilema miltoniano: os que regressaram choram o seu “Paradise Lost”, os que partirão sonham já com a obra posterior, o “Paradise Regained”. Vamos precisar de alguns dias para pormos o Milton de lado, e resignarmo-nos antes à sentença filosófica de Alexandre O’Neill: “Há mar e mar, há ir e voltar”.

7.11.2006

17 – O convidado ausente.

Tanto quanto me recordo, o João da Ega nunca almoçou connosco na mesa 19. Não poderei decerto jurá-lo, pois a outrora fiel memória vai já claudicando ao peso do anno domini, mas estou razoavelmente seguro de que não me teria esquecido, caso o facto se tivesse dado. Argumentam alguns, mais prosaicos, que tal coisa não pode obviamente ter ocorrido, sob razão de ser o Ega, simplesmente, uma personagem saída da ubérrima pena queirosiana. Dou ao desprezo o argumento espúrio e falacioso, toda a gente sabe que as personagens de Eça, maximamente o João da Ega, comem e bebem como toda a gente, realidade que as (muitas) páginas d’Os Maias abundantemente provam. Nada, ele podia perfeitamente ter passado por lá, apenas não calhou. Talvez o tenha mesmo tentado, quem sabe se não tomou uma destas manhãs a caleche do Torto, batedor de confiança, e, ajustando o monóculo na cana do nariz, mandou com impaciência bater para Leião, “e a trote, Torto amigo, que o almocinho não espera!”. Mas o pobre Torto sabia tanto ir dar a Leião como à Patagónia, Leião, no tempo dele, era apenas mais um matagal cerrado e temeroso, de onde a espaços surdiam javalis. Acabaram ambos, cocheiro e passageiro, por ir comer o coelho frito à Porcalhota, garfadas entremeadas com o espanto de lhe chamarem agora Amadora. E quem perdeu com o desvio deles fomos nós.

Sou, confesso-o sem orgulho, mas também sem pejo ou vergonha, um queirosiano indefectível, devoto, até. Conheço bem que há correntes contrárias, ainda há pouco o excelente cronista Pedro Mexia, senhor de um estilo lapidar, de um poder de comunicação fantástico, e do meu maior respeito, ainda há tempos, dizia, denegria ele a visão pessimista e demolidora de Eça, a forma como o escritor reduz a nossa portugalidade a uma choldra, ipsis verbis. Compreendo a opinião, e respeito-a, mas acontece que penso de outra maneira. Julgo que Eça considerava tudo isto uma choldra por uma razão bem simples, que era o facto de isto tudo ser, de facto, uma choldra. Creio sinceramente, com a melhor boa-fé, que Eça se mantém actual, e por uma razão bem triste, que é o facto de isto tudo continuar a ser, passe o termo, uma choldra. E se, para justificar este ponto de vista, fossemos agora solicitar o contributo do amável João da Ega, estou em que ele não hesitaria em apontar dez meninas das chamadas celebridades, por cada Raquel Cohen, mil médicos e advogados criminosamente incompetentes, corruptos e impunes, por cada Padre Amaro ou Negrão, dois mil políticos pusilânimes pelo Conde de Abranhos, seis mil altos funcionários da nação que se empertigam como o Gouvarinho, toda uma legião, enfim, de emproados émulos do saudoso Conselheiro Acácio. A sociedade, helás, não mudou tanto que deixe de se rever no retrato queirosiano. Apenas envelheceu e refinou, ao ponto de abundar hoje em novos canalhas, capazes de fazerem do Primo Basílio um malandreco traquinas, a pregar uma saborosa partida à prima.

Pergunta-me agora o paciente leitor, que resignadamente acompanhou esta diatribe, que coisa tem tudo isto a ver com a nossa mesa 19. Várias respostas se poderiam dar, mas uma há que se destaca, que é a palavra-chave, a palavra fetiche, “choldra”. A mesa 19 é muita coisa, é mesmo muitas coisas, e também, com frequência, o seu contrário, mas uma característica tem que sobressai: a mesa 19 é um núcleo de resistência contra a choldra. Eximo-me aqui da pequena mise-en-scéne, tão habitual nestes lances, em que o leitor me pergunta, Mas que choldra é essa, e eu tomo a deixa, e avanço com a resposta. E se me dispenso do canónico e venerando ritual, de utilidade tão consabida, é somente porque não me consigo forçar a pôr tal pergunta nos lábios do leitor, sob pena de lhe estar a chamar burro.

Entendamo-nos: que conceito formaria deus sobre Moisés, se lhe dissesse, “Sobe a essa montanha, que eu tenho ali umas tábuas da lei para te dar”, e o visse contemplar a planície em volta, o monte Sinai à sua frente, e perguntar intrigado, Que montanha? Que retrato guardaria a história sobre o capitão do Titanic, após o ver, do alto do convés, contemplar a massa granítica do iceberg assassino, apenas para inquirir o seu imediato, Disse que vamos chocar contra o quê? Nada disto me parece verosímil, assim como não consigo imaginar um comensal da mesa 19 a declarar solenemente que a sua vida quotidiana decorre pacatamente no melhor e mais bem organizado dos mundos. Sejamos por uma vez frontais, o país continua atolado na choldra que Eça diagnosticou, e miríades de organismos, dentro do corpo maior, acham-se infectados pela mesma doença. A patologia é conhecida, a choldra tende a gerar choldra, e em cascata. Uma empresa que, num país neste estado, não seja uma choldra, arrisca-se a ser prejudicada, sofrer revezes, tirar uma má nota. Enfim, corre o risco de se dar mal, como expressivamente dizem os brasileiros. E os brasileiros, nada de ilusões, percebem disto de choldra.

Foi de facto pena, não ter João da Ega conseguido almoçar connosco. Dava-nos jeito agora, para nos explicar, com a sua lucidez de Mefistófeles mal mascarado, que as empresas estão tão sólidas como a pátria que as aloja, que um patrão, como tantos há, capaz de distribuir incentivos como quem, distribuindo amendoins no zoo, desse um cartuxo ao saguim e uma vagem ao elefante, é patrão que sabe bem o que faz, a arraia é que não sabe entendê-lo. Discorreria ainda sobre outras aberrações, tantas que há, e tantas vezes discutidas, e sobre todas aporia a sua bênção, irónica e ligeiramente satânica. Depois, emborcaria a aguardente, não deixando de a declarar, “um veneno torpe”, ajeitaria o monóculo, e partiria na caleche do Torto, rumo a um mundo igualmente imbecil, se bem que menos complexo.

Não, tanto quanto me recordo, o João da Ega nunca almoçou na mesa 19. É pena, pois fazia lá falta.

16 – Dispersão.

Nesse dia de fins de Junho, fomos só dois à mesa, o Rui Cardoso e eu. Houve ainda duas chegadas tardias, um que almoçava à pressa no intervalo de uma reunião, outro que só vinha para um rápido whisky, nada, em suma, que alterasse fundamentalmente a estatística. O facto é que éramos só dois, nessa segunda-feira que se ia encostando a Julho como uma rameira barata a um bêbado endinheirado. Senti que o facto merecia que dele se tirasse uma qualquer ilação, e lembrei-me então das férias de Verão, esse grande disruptor das sociedades que sofrem o acaso de não serem tropicais, como, para dar um exemplo inteiramente aleatório, a nossa.

Se alguém porventura cuida que exagero, rogo-lhe apenas que atente nas grandes datas, que são outros tantos marcos miliários no lento processo em que se forjou a nossa nação. Já no século XVII, é no início de Dezembro que expulsamos o espanhol; faz-se depois a república em Outubro, o estado novo num temeroso fim de Maio (em que por certo chovia, ou a coisa não tinha ido lá); enfeitam-se de cravos as metralhadoras num arriscado Abril, contingência que não foi possível evitar, tendo falhado a muito mais sensata tentativa de derrubar o governo em Março; há ainda quem se oponha ao novo regime, mas, não tendo podido organizar as coisas antes do Verão seguinte, opta por lançar a intentona em Novembro. Falhou, o que não deixa de ser estranho, vindo de um povo que tem invariável sucesso em tudo quanto organiza, excepto quando calha ser Verão.

Não nos iludamos, há em tudo isto um claro padrão. Tivessem os rebeldes de mil seiscentos e quarenta cedido à ideia precipitada de restaurar a independência em Agosto, e teriam por certo recebido de um cortês mordomo esta informação, que lamentava muito, mas o senhor Miguel de Vasconcelos encontrava-se a banhos no Estoril, iria depois tomar os ares de Setembro à Serra de Sintra, não quereriam os senhores voltar em Outubro? Os conjurados teriam então confabulado, se a data servia a todos, ou se trazia incómodos, até que um mais pragmático terá declarado, Nada, voltamos mas é em Dezembro, que ele há-de estar em casa, Mas não muito tarde, ou mete-se de permeio o Natal, Bem cedo, tornou o primeiro, vimos logo no dia um. Até fica uma data com estilo, agora que penso nisso, Primeiro de Dezembro.

Idênticas razões presidiram ao 28 de Maio, data que fora rejeitada por todos os grandes estrategas da época, sendo estes depois forçados a aceitá-la, contudo, ema vez que a maioria dos homens fortes do novo regime tinha já apartamentos reservados no Algarve para o mês de Junho. Assim foi também o 25 de Abril, bizarra insistência no tema derrotado um mês antes, mas que se impôs aos generais como um indiscutível desígnio nacional, visto que se aproximava a largos passos a época dos gelados em São Martinho do Porto. Pareceu então que o país ficava em paz, uma paz agitada, era certo, mas ninguém receava grandes violências. O 25 de Novembro tentou desmentir tal coisa, mas gorou-se. Há todavia, hoje em dia, a certeza histórica de que um 25 de Agosto teria apanhado o novel regime militar, literalmente, com as calças na mão. Só por uma razão se deixou de dar este bem sucedido golpe, é que os rebeldes, em Agosto, também estavam a banhos.

Num tal contexto, ninguém esperaria realmente que a mesa 19 se eximisse de tão nacional síndrome. Dos que faltaram no dia em que falamos, um entrara já de férias, outros andavam a treinar para as suas, todos intentavam partir. Até o humilde cronista sonhava já com três lânguidas semanas, entretanto começadas, de onde teria a oportunidade de escrever estas crónicas num jardim ensolarado, como é o caso desta. Voltarei em breve, mas será sempre de esperar uma nítida dispersão da mesa 19, maleita psicossomática a requerer uma boa dose de Outubro, em devido tempo. Até lá, façam todos o favor de ter umas boas férias.