11.29.2006

50 – Lepidópteros e Paquidermes.

Há, na vida de toda a gente, um ponto em que se torna necessário dizer Basta. Eu, confesso-o, acabo de atingir o meu. Não é só pela razão de andar a acarinhar uma gripe que vem dando cabo de mim, como se alguém me tivesse dado recentemente um enxerto de porrada, e enfiado depois uma lixeira municipal de tamanho médio pelo meu nariz acima. Tudo isso, incluindo os arrepios, as tonturas e as náuseas, são sintomas perfeitamente suportáveis. Não, o que deu cabo de mim foi a rara intensidade destes últimos dias, a merecerem uma crónica que não será publicada, e outra, mais recente, que não será jamais escrita. Chega, estou esgotado, e vou parar de me meter em sarilhos.

Serve esta crónica para não falar de coisa nenhuma, ou, pelo menos, para falar destas o mínimo possível. Não sei, não estou bem seguro, até que ponto é que se pode encher uma página sem dizer nada, mas, se nos podemos fiar nos exemplos dos nossos políticos, não há-de ser muito difícil. É claro que, para começar, é necessário um tema, o qual pode ser, por exemplo, o estudo anatómico e comparativo dos elefantes e das borboletas. Julgo que se trata de um bom assunto, e um que tem sido lamentavelmente negligenciado, ao longo dos tempos.

Elefantes e borboletas: o que podemos então inferir sobre essas duas criaturas de Deus? Bom, temos, para começar, a sua gritante semelhança. É por demais sabido, em primeiro lugar, que ambos voam muito bem, com a possível excepção do elefante. Dispõem os dois de trombas, que utilizam para colher o pólen, ou então cocos, e têm em comum a cor cinzenta, menos, geralmente, a borboleta. De resto, são quadrúpedes, ou não, consoante a espécie, e duram apenas dois dias, indo depois morrer num cemitério secreto, no coração de África. Dos dentes dos elefantes faz-se o marfim, e, dos das borboletas, teclados de piano.

Em toda a vida dos elefantes, a parte mais bonita são as migrações. Nada há de mais belo do que contemplar, no Outono, os majestosos cardumes de paquidermes, voando em direcção ao Sul. Mesmo sem o desejarmos, os olhos enchem-se de lágrimas. Depois, bebemos outro brandy, e voltamos a contemplar a imponente matilha. O raio dos olhos voltam a encher-se de água, bebemos outro brandy, e por aí adiante. No dia seguinte, ainda ressacados, pegamos na espingarda, e vamos caçar elefantes.

Mas há diferenças, malgré tout, entre as duas espécies. Pessoas que estiveram já debaixo de um elefante, e depois debaixo de uma borboleta, confessam preferir de longe a segunda experiência. Segundo elas, as borboletas têm demasiada tendência para se meter onde não são chamadas, mas, em compensação, pesam muito menos no estômago.

A diferença fundamental, como é evidente, está no colorido. Toda a gente conhece aquelas belas asas, rendilhadas de todas as cores do arco-íris, matizadas de sublimes padrões policromos, que tão bem se distinguem da insípida monotonia das asas brancas das borboletas. Mas não devemos ser demasiadamente críticos, não é assim tão difícil imaginar um mundo em que os lepidópteros fossem coloridos, e todos os elefantes fossem cinzentos.

Outro factor importante, quando se estuda uma espécie, são os seus dejectos. Também aqui há uma significativa diferença, os dejectos da borboleta atacam a pintura dos carros, e os do elefante atacam o carro inteiro. Os dois sofrem ainda distinção, quando depositados no meio da via pública, mas isso é um assunto diferente, e matéria para nova crónica.

Há por último a considerar o valor alimentar de cada espécie, e não há, nesse particular, campo para dúvidas. Embora a borboleta forneça alimentação mais abundante, a carne do elefante é muito mais delicada. Alguns gastrónomos têm comparado a asa da borboleta com a ponta da orelha do elefante, mas a questão é ainda duvidosa. Quanto ao órgão sexual do paquiderme, a pata, quem a prova não quer outra coisa. De resto, também não vai precisar.

Fica assim demonstrado que, de todos os animais que esvoaçam mimosamente de flor em flor, o elefante é talvez o mais terno, e sem dúvida o mais útil. Numa próxima edição, discutiremos o Morcego e a Ténia.

49 – Incenso e Pataniscas.

Noto, com algum pesar, que as crónicas mais recentes têm descambado num deplorável materialismo, coisa que está bem distante da nossa verdadeira vocação. A mesa 19 é uma instituição de pendor místico, mais um estado de espírito do que um estar à mesa a almoçar. Não é por acaso, de resto, que o número da nossa mesa resulta da fusão transcendente dos doze mandamentos com os sete pecados mortais. Quando somos muitos, e nos vemos forçados a recorrer à mesa 17, estamos novamente em presença do mesmo número, somente subtraído dos apóstolos João e Mateus. A conclusão é cristalina, tenho de deixar de comer aqueles cogumelos esquisitos.

Já devia tê-los abandonado há muito tempo, aliás, mas não consigo resistir à forma colorida com que tornam o mundo um lugar mais divertido para se viver. De resto, provocam muito menos enjoo o que cheirar cola, e são mais baratos que o brandy. Dizem gurus entendidos que o amor puro e devotado de uma mulher pode amiúde produzir os mesmos resultados, mas elas não são tão fáceis de arranjar, e é muito mais difícil fumá-las.

Nesse dia memorável, em que o astro apolíneo se escondia por trás das carantonhas com que Plutão ia mimoseando o nosso globo, flutuámos todos para dentro do restaurante, e pairámos pesadamente sobre a mesa 19. Arrancando-nos com alguma dificuldade da contemplação do nosso umbigo, passámos a contemplar a ementa, que nos propunha grosseiros alimentos do corpo, como pataniscas e leitão. Resignando-nos, com um suspiro, encomendámos pataniscas para todos, e leitão para todos, também.

Foi com a alma dorida que a Marta e a Vânia nos começaram a atestar a mesa de travessas. Elas bem viam como aquilo ofendia o nosso natural ascetismo, a pontos de sermos tomados pelo furioso desejo de destruir toda aquela comida, coisa que eventualmente fizemos. Quão melhor quadraria à pureza dos nossos espíritos um severo jejum, de pão seco e pura água. Em vez disso, castigámos a carne com inúmeros jarros de vinho, com que empurrámos o porco impuro, os fritos de bacalhau, gotejantes, todo aquele sofrimento da alma, que tão bem aproveitou à nossa salvação.

Brincámos ainda com a ideia de encomendar sobremesas, mas, vendo-nos a estalar com a dupla refeição, tivemos por bem dar o corpo por devidamente castigado, e partimos directamente para o purificador ritual do café. Esse sacramento, o mais santo do nosso severamente ascético cerimonial, faz copioso uso de certos óleos sagrados, que a nossa religião denomina ainda pelos antigos nomes célticos, como Croft, Jameson, e Eristof. Deles nos ungimos devotamente, e retornámos por fim aos nossos deveres, tardios mas purificados.

No dia seguinte não havia nada de jeito, e eu tive de comer arroz de pato. Ora digam-me lá, que tabernáculo é este, que propõe, para as suas celebrações, arroz de pato? O arroz, ainda vá que não vá, oferenda a recordar as privações que o povo de Moisés sofreu, no seu êxodo das terras do Egipto. Agora o pato, ave profana, espécie de galinhola dos lagos, bicho ainda por cima estúpido, mais do que lhe pedia a triste condição de palmípede? Bem sei que a dita arrozada vinha benzida com rodelas de chouriço e troços de bacon, mas não deixou de ser uma punhalada espiritual, a mortificar o nosso karma.

Temos de tomar uma atitude. Na próxima semana, sugiro que façamos a nossa exigência, refeições diárias de cordeiro de leite, morto e preparado segundo o ritual kosher. Galo degolado ao nascer do sol, com uma faca de gume de prata, e enfeitado com paus de incenso. Isso, ou então pataniscas. Ou leitão.

A Marta é outro problema. Continua a insistir em vestir-se à moda ocidental, em vez de usar as reduzidas vestes ornamentais das sacerdotisas de Baco. Não sei porquê, mas acho que nesse particular não nos safamos, não com ela, pelo menos. A culpa não é dela, é apenas mais um sintoma do ateísmo que vai pelo mundo. Não é fácil ser santo, nestes tempos, mas nós fazemos o nosso melhor por isso.

11.23.2006

48 – A outra empregada.

Há outra empregada, além da Vânia. É muito diferente dela, mas é também uma miúda bonita. Honi soit qui mal y pense, que, quando digo miúda, refiro-me a uma mocetona de vinte e três primaveras, senão mais. Menina casada, de resto, e senhora do meu maior respeito, só que para mim é uma miúda. Mais, é uma miúda bonita. Quis dizer-lhe isso mesmo, um destes dias, mas a minha condição de quadragenário envergonhou-me. Encomendei então o recado à Vânia, mas a minha condição de quadragenário envergonhou-a a ela, também. A outra lá continuou, uma miúda bonita, e alheada de o ser.

Serve esta crónica para falar da outra empregada, e de tudo o que lhe deve a mesa 19. Força-nos isso a falar também da Vânia, e das subtis e diversas formas em que ela é diferente da outra empregada. Não é de resto comum mencionarmos a outra, mas ela é uma peça fundamental do nosso estabelecimento: se a Vânia é o espírito e a consciência da mesa 19, a outra empregada é a sua alma travessa. Ninguém percebe os nossos disparates como ela, e poucas seriam capazes de os imitar, da forma como ela os imita.

Não é habitual sermos servidos por ela, embora seja sempre um prazer, de tal forma ela mostra prazer na mais pequena solicitação. Confesso que cheguei mesmo, um dia, a convidá-la para uma sardinhada, coisa que ela declinou, e talvez tenha sido melhor assim. É que ela, sabem, é uma miúda muito bonita.

É neste ponto que entra em acção o Evangelho segundo Santa Vânia, onde taxativamente se diz, Não cobiçarás ninguém que não tenha idade para ser a minha avó, a menos que sejas quarenta anos mais novo que o meu avô. Estou lixado, o crivo exclui-me claramente, e seria necessária muita imaginação para fazer da Marta avó da Vânia. Ora bolas, lá disse o nome.

O que fazer disto tudo? Confesso que não sei. A Vânia é indispensável à mesa 19, e há-de ser sempre um coelhinho fofo e branco, e um coelhinho bem giro, por sinal. E a Marta? Bem, a Marta é uma miúda muito bonita. Mas acho que já disse isto, não disse?

11.22.2006

47 – Feios, porcos e maus.

Conta-nos o genial Homero, na sua épica Odisseia, os tratos por que passou o heróico Ulisses, desde que se fez de vela das suas praias brancas de Ítaca, até que a elas tornou a aportar, ao encontro dos braços amantíssimos da inefável Penélope, que jamais desfaleceu de o aguardar. Nessas páginas se diz como o grande Odisseus, nome que também lhe davam, abicou um dia à ilha da feiticeira Circe, a qual, por mor de melhor reter no seu convívio o herói, transformou em leitões os seus companheiros. Está visto que Odisseus, ou Ulisses, se preferirem, não teve dúvidas em tirar-se do trabalho, e Circe ficou a ver navios.

Homero, para além de ser cego, acabou também por morrer, tendo escrito muito pouca coisa depois disso. E é por essa razão que só agora, transcorridos vários milénios, cabe a estas crónicas a honra de desvendar o que sucedeu, em última análise, a todos aqueles bacorinhos da Odisseia. Pois bem, folgo em informar que se encontram todos de boa saúde, e almoçam diariamente na mesa 19.

Serve esta crónica para falar de porcos, bácoros, cerdos, tós, javardos, em suma. Vem isto a propósito da recepção que tivemos hoje, logo ao entrar no restaurante. Fomos prontamente informados, não da ementa do dia, mas sim da de amanhã, que inclui pataniscas de bacalhau e, note-se, leitão. A informação foi prestada de modo cuidadosamente descuidado, e tudo nela parecia perguntar, Vão comer as pataniscas, ou preferem canibalizar um dos vossos semelhantes?

Eu julgo já ter expressado, algures nestas crónicas, a minha opinião de que nós somos vistos, naquele restaurante, como um bando de leitõezinhos, e não dos mais bem-educados. Com a maior boa-vontade, confesso que não vejo como o facto de fazermos muito barulho e arrotarmos ruidosamente (certo, isso sou mais eu), falarmos e rirmos alto demais (ups, eu, de novo), emporcalharmos a mesa, e espalharmos por todo o lado bolinhas de papel, nos qualifica como cevados. Mas enfim, vox populi, vox dei, e resta-nos aceitar o julgamento, o que fazemos sob protesto.

Porcos, e, porque não dizê-lo, feios (não eu, mas é o caso da maioria dos outros). Não contentes com isso, somos também maus. Muito maus, na realidade. Não quero com isto dizer que eu, por exemplo, tenha o hábito de fazer churrascos de gatos vivos, ou se costume o Rui vestir de menino Jesus, para se ir plantar à porta dos infantários, e dar pontapés às criancinhas que incautas se aproximem. Nada, somos todos boas pessoas, amigos dos pobres e dos petizes, cumpridores da lei, e com os impostos mais ou menos em dia. Somos, apesar disso, maus, mesmo muito maus.

Sofremos todos, para começar, de um grave problema de desobediência civil. Em cada cadeira da mesa 19, senta-se um leitão refractário aos Poderes Que Devem Ser Obedecidos. Uns questionam a estrutura hierárquica, outros o sistema corporativo, outros ainda, mais genericamente, essa vaga entidade que responde pelo nome de, Esta merda toda, mas não há ali bichos de boca aberta, no fito de engolir qualquer linha que venha com anzol e chumbada. Não há bons cidadãos na mesa 19, somos todos maus. Feios, porcos e maus.

A Vânia já percebeu isso, mas está em negação. Não compreende, por exemplo, que alguém seja tão incivilizado que, em vez de aceitar uma bebida com um agradecido curvar de espinha, peça arrogantemente outra. Mas mesmo ela já começou a entender que a coisa dá para os dois lados, e que nós acabamos por dar mais do que recebemos, e quando não damos, é tudo o mesmo, pois ninguém está a fazer contas a tal coisa. Um amigo, entre nós, não deixa de o ser, e se o vemos cuspir na nossa amizade, é só que o dia lhe está a correr mal, e quem é que se vai zangar por tão pouco?

São muito bonitas aquelas comunidades dos programas infantis, tipo “ursinhos carinhosos”, em que todos se derretem uns com os outros. Aquilo, todavia, vem tudo abaixo, mal soa o primeiro, Porra, dito a sério. Entre nós, se alguém disser, Tu, boi, paga-me o almoço, o boi em causa percebe que o amigo não trouxe dinheiro, e paga-lhe o almoço. E ninguém se aborrece. Que gaita, somos ou não somos amigos?

O Constâncio, por exemplo, anda há uns tempos sorumbático, e recusa-se a ler as crónicas. Quantos almoços passámos já, sem que se ouça a voz dele. Alguém se chateia com isso? Nada, limitamo-nos a mandar-lhe umas bocas feias, porcas e más, com as quais ele também não se aborrece. Que diabo, somos amigos!

Nós? Nós somos aqueles que partiram de Ítaca, e a quem a bruxa Circe transformou em leitões, e de quem fez feios, porcos e maus. Mas só acredita em bruxas quem quer, e ninguém tem de se ver pelos olhos dos outros. Feios seremos, sem dúvida. Agora porcos e maus, isso são os outros. E o leitor sabe de quem eu falo. Se não souber, é bem provável que seja de si.

11.20.2006

46 – Vinde a mim as criancinhas.

Hoje, confesso-o abertamente, alberguei no meu coração um sentimento mesquinho. Por longos momentos, admito-o, entreguei-me sem escrúpulos à inveja. E não de pequena monta, há que dizê-lo, pois dei por mim a invejar intensamente os grandes poetas da nossa língua, os Camões, os Bocages, todos os outros. Pior ainda, não lhes invejei – ai de mim – o talento, mas tão-somente a impunidade.

Deu-se tudo isto por se ter sentado, numa mesa perto da nossa, uma jovem encantadora. Tão jovem era, e tão encantadora, que não resisti a indagar, junto da Vânia, se sabia quem era aquela sílfide, e se lhe conhecia o nome e a história, os principais feitos e sucessos. Horror e anátema, cai-me a Vânia em cima, metaforicamente, é bom de ver, e com nojo e asco me vitupera, que eu era um pervertido, pois não tinha a rapariga mais de dezanove anos, quase uma criança, portanto. Não estou bem seguro, mas julgo que me chegou a cuspir na cara.

Timorato e desorientado, encolhi-me covardemente, e logo retirei o piropo a que impensadamente dera voz, não viesse a polícia judiciária pela minha pessoa, e fosse eu acabar num desses temerosos calabouços, onde pedófilos confessos se apinham, aguardando carne jovem. Quem sabe, mesmo, se algum deles não se deixava tentar pela minha silhueta rotunda, e administrativamente me conferia cartão-jovem. Nada, o melhor é não arriscar.

Fiquei contudo a remoer, que raio têm os nossos poetas, que eu não tenho? Camões cantou desabridamente os encantos das tágides, e todos nós vimos já estátuas das ditas, ao colo do malandro do zarolho. Não têm quarenta e nove anos, pois não? Nem pouco mais ou menos, que o Luís Vaz tinha olho, ainda que fosse só um, e nenhuma das suas ninfas do Tejo estava aprazada para completar os dezanove anos antes da próxima passagem do cometa Halley. Já não falemos da cativa que o tinha cativo, e que tinha mas era idade para ser filha dele. Mas digam-me lá, espetaram com ele na choça? Qual quê, dedicaram-lhe mas foi o dia de Portugal.

Enquanto ao Bocage, estamos conversados. Há mais mulheres nos seus poemas do que peixes no mar, e a única coisa que não as vemos fazer é tomar chá. A juvenil infância é patente em muito soneto, e será que os beleguins o prenderam? Bom, por acaso prenderam mesmo, mas foi noutros tempos, quando se prendiam as pessoas apenas por coisas que elas de facto faziam, e não por aquilo que diziam, ou se dizia delas. De resto, o talento dele, nos nossos dias, desculparia muita coisa, e ainda éramos capazes de o ver candidato ao prémio Pessoa, e a aparecer na televisão em horário nobre. E eu? Eu sou um pedófilo, digno apenas de ser esborrachado, e vá-se lá perceber o que faço ainda à solta. Ah, Vânia, Vânia, que ainda hás-de ser a minha perdição.

Batatas, a miúda era gira, e tinha 19 anos, tão certo como sermos nós a mesa 19, e não a 14, por exemplo. As unhas eram vermelho-morango, a cara era fresca e bem-disposta, no traje moderna, sem ser escandalosa. Tinha 19 anos, caramba. Chamasse-lhe eu uma tágide ou uma nereide, e a coisa marchava, mas caí na asneira de lhe chamar uma miúda gira. A expressão caiu mal, porque eu não sou nem uma coisa nem outra.

É assim mesmo. Nós, os quarentões, somos proibidos até de apreciar jovens, sob pena de sermos considerados uns pervertidos. Em contrapartida, qualquer puto imberbe e boçal, género morangos “sou uma besta” com açúcar, pode a seu bel-prazer fazer à dita menina as mais inconvenientes propostas. Ainda para mais, correndo ela o risco, se cair na asneira de as aceitar, de ficar mal servida. Que digo eu, risco? É quase uma certeza, que estes putos, mesmo os que ainda não deram em maricas, primam por não distinguir o cu das calças, por mais que estas, à força de cair, vão mostrando aquele. Nós é que, para mal dos nossos pecados, nem do alto da nossa velhice podemos apreciar a juventude.

É assim que as coisas estão, os velhos metem nojo, e devem abster-se sequer de abrir a boca, excepto para falar das suas coisas de velhos. Desconfio que mesmo Jesus Cristo, se de novo viesse à terra, e se lembrasse de repetir aquela laracha do, “vinde a mim as criancinhas”, não de livrava de três anos de prisão preventiva, mais uns quantos de julgamento, mais apelos, e sei lá que mais. Enfim, do mal, o menos, não iam conseguir crucificá-lo antes dos setenta.

A mim, e pelo andar da carruagem, ainda são capazes de me crucificar mais cedo. E será muito bem-feito, dirá discretamente a Vânia.

11.17.2006

45 – Sobre blogs, jornais, e trinta-e-um de boca.

Nesses arredados tempos da minha longínqua juventude, em que eu, na ânsia infrene e desmedida de me fazer passar por uma pessoa moderadamente culta, contribuí com o meu frequente óbolo para a caixa do bar de uma destacada faculdade, onde cheguei mesmo a frequentar uma ou outra aula, tínhamos também umas crónicas.

O molde era em tudo semelhante ao destas páginas. Um ou dois escribas, no seu denodado esforço para encontrarem matéria extra-curricular com que matar o tempo, começaram a manuscrever uma história corrida, cujo enredo, se ainda recordo, girava insistentemente em torno do delicioso corpo de uma nossa condiscípula, e das suas improváveis aventuras sexuais com magotes de marinheiros. As folhas caligrafadas iam surgindo rotineiramente, e circulavam pelo bar, entre uma cerveja e a balda a mais uma aula.

A aquisição de um grau do ensino superior é uma nobre tarefa, que em devida hora julguei excessiva para sangue tão plebeu como o que ainda hoje me corre nas veias. Deixei, pois, o empreendimento a cargo de mais brasonadas pessoas, e lancei-me na vida profissional, inculto como antes. Nunca, até começar a escrever estas crónicas, me voltei a lembrar daquelas.

Quando a recordação por fim me acudiu, foi com aquela condescendência superior que em regra votamos às coisas do passado, e aos seus rituais obsoletos. Lembro-me de pensar, Vejam só, textos manuscritos, e circulados em folha única, como se Gutemberg jamais tivesse vivido à face da terra, e nela inventado a imprensa. Poucos anos depois, vulgarizavam-se computadores e impressoras, mas a Internet era ainda um sonho distante.

Mesmo depois de se concretizar o sonho, e de toda a gente navegar livremente nas auto-estradas da informação, não estava ainda ao alcance de qualquer um a possibilidade de publicar informações on-line. Só muito mais tarde se viria a dar essa democratização, com o advento dos blogs.

De forma que as crónicas da mesa 19, a anos-luz dos incipientes papiros da faculdade, começaram a ser publicadas num blog. Tudo correu bem por uns tempos, mas logo descobri que nem todos os leitores conseguiam manter o passo. Se alguns liam a crónica assim que ela era publicada, outros só dias depois lhe votavam uma atenção de que até aí não haviam disposto. Isso fez com que, em períodos mais férteis do escriba, fossem publicadas crónicas sem que a maioria do público tivesse já lido a anterior. Ficavam assim dois textos por ler, coisa mais difícil do que ler apenas um, e a tendência era protelar, até que viesse terceiro texto dificultar ainda mais a tarefa. E, assim por diante.

A única ocasião em que todos, definitivamente, temos tempo para este género de lazer, é durante o almoço. Não está, contudo, a mesa 19 dotada de acesso à Internet, pelo menos por enquanto. Foi por isso que eu tive um dia uma ideia brilhante, imprimir a crónica recém-escrita, e fazê-la circular pela mesa. O costume pegou, e, hoje em dia, ninguém mais acede ao blog. As crónicas são servidas, em exemplar único, como antepasto ou sobremesa.

Completa-se assim um ciclo. Um processo que, no seu início, se ria, jactante no alto da sua tecnologia superior, dos medievais ritos do pergaminho circulado de mão em mão, vem justamente tombar nos mesmos vícios, só se distinguindo do antigamente por ser impresso. Olha que grande coisa, impresso, isso já há quinhentos anos se fazia! Em tudo o resto, plus ça change, plus c’est la même chose. O que mudou, então?

Não é caso inédito, este fechar de um ciclo, mas é, em todo o caso, merecedor da nossa atenção. Veja-se, por exemplo, quanta gente migra da província para a grande urbe, monta por lá a sua vida citadina, e não descansa depois enquanto não encontra uma aldeia remota, seja sua ou alheia, onde passar as férias que consegue ter. Ou então, basta ver como evoluiu o requinte na arte restaurativa, o proliferar de restaurantes limpos e assepticamente modernos, para hoje em dia toda a gente procurar uma tasca bem típica, das de antigamente, que é onde se come bem.

Cada era tem a sua própria maldição, que vem, via de regra, matreiramente disfarçada de benesse. O primeiro milénio assistiu aos horrores das cruzadas, guerra estúpida onde tanta gente válida deixou a vida, e o segundo milénio encerra sob a égide do computador, da Internet, das comunicações globais e instantâneas. Tudo se clica, tudo se tecla, nada realmente se faz.

A juventude vai sofrer com isto. Não há SMS que substitua um olhar, ou MSN que faça as vezes de um beijo. Talvez os nossos filhos, já hoje, comentem em voz temerosa, Sabes que os meus pais, na primeira vez que se falaram, já se conheciam? Pois é, não sei onde isto vai parar. As crónicas, pelo sim, pelo não, vão continuar a circular em papel. Nem que seja por amor dos velhos tempos, aqueles que não voltam mais.

11.16.2006

44 – Memórias da mesa 19.

Disse hoje um ilustre comensal, por outras palavras que não estas, mas sensivelmente com o mesmo sentido, “Quando não há nada de novo para escrever, escrevem-se memórias”. Eu resolvi pegar-lhe na palavra, não porque não haja já nada de novo para escrever – há sempre –, mas porque, com franqueza, tive preguiça de pensar noutro tema.

Serve esta crónica, como o título sobejamente indica, para falar das memórias da mesa 19. O título, honra lhe seja feita, tem o seu quê de pretensioso, e estive mesmo para o fazer pior, qualquer coisa como, “Les memoirs de la table diz-neuf”. Ou então, puxando ao chique de uma série da BBC, “Reviver o passado na mesa 19”. Sofreei a tempo o impulso arrebicado, Deo gratia, e ative-me às lusitanas “Memórias”, título ilustrativo quantum satis.

Ora bem, achado que está o título, não há senão que lhe escrever por baixo uma crónica, se possível de teor condizente com o que as letras gordas anunciam. E é aqui que a proverbial porca torce o seu metafórico rabo. Pois, vejamos bem, que sei eu dessas memórias, desses tempos de antanho, em que a mesa 19 soltava os primeiros vagidos infantis, entre os panos que então lhe serviam de cueiros, e que mais tarde a viriam a atoalhar? Em já longínqua crónica admiti e confessei, sem rebuço, mais não ser que o mais recente dos arrivistas, naquela histórica e vetusta mesa. Toda uma legenda por trás de mim se desenrola, e dessa legenda eu quase tudo desconheço. O que fazer, então?

A solução honesta, diriam alguns, seria desistir, de uma vez e por todas, de escrever tal crónica. Pois sim, tudo isso é muito bonito, mas digam-me cá, por que raio é que eu faria semelhante coisa? Bem sei que o argumento, tal como é apresentado, parece convincente e persuasivo, mas o facto é que carece do menor fundamento. Desde quando é que, nesta terra, é preciso entender seja o que for sobre um assunto, para dele se poder falar à vontade?

E, de resto, não é como se eu desconhecesse por inteiro a mesa 19, muito pelo contrário. Quem, senão eu, que ao longo de mais de um ano acompanhei a pari passu as gestas e vicissitudes dessa meritória agremiação, seria mais talhado para aqui falar dela, seja na sua vertente passada, como presente ou futura? De resto, e seja como for, a integral verdade dos factos não foi nunca um dos principais ingredientes destas crónicas. Seria até caso de, plagiando o bom do Eça, adoptar um novo lema: “Sobre o anoréctico esqueleto da verdade, o pesado cobertor da mais desenfreada fantasia”.

Vamos então às tais memórias, e vamos a elas como Santiago foi aos mouros. Começaremos por dizer que, pese embora o nosso orgulho e amor-próprio, já antes de nós se serviam almoços na mesa 19. Foram tempos bastardos, esses, de que outras crónicas se farão trombeta, que não estas. Naquelas nobres cadeiras, tronos que por modéstia se disfarçam com a dura simplicidade do pinho, anónimos e pouco meritórios cus tomaram já assento, ouvindo com bochechuda paciência os seus donos, que gastavam o tempo do repasto em discutir merdas sem interesse.

Já por lá navegavam, todavia, os pais fundadores do nosso grupo. Se assestarmos o telescópio da história à memorável sala, claramente distinguiremos esse Carlos, por cognome O ancião, que, do convés de mesas estrategicamente limítrofes, lança olhares, prenhes de conquistadora cobiça, sobre a mesa que viria a ser o nosso território.

Veio depois a fundação, épicas gestas onde pelejaram e se distinguiram vultos maiores da nossa história, como seja o caso do Paulo, o homem-santola. Até uma mulher por lá andou, acho que já aqui se falou nisso, e depois vieram os arrivistas. E, com eles, deu-se o advento das crónicas, e a mesa ganhou memória escrita.

As crónicas, em si, não têm qualquer importância. Vale tanto escrever uma delas, como dizer que D. Afonso Henriques fundou Portugal. Não é por o dizermos que ele o fundou, e o valor da coisa está no acto, não nos papéis que mais tarde disseram o evento. Mas não é garantido que Portugal ficasse de facto fundado, se não viesse depois alguém escrevê-lo. O valor das crónicas, se algum valor têm, é apenas esse, confirmar aquilo que, de qualquer modo, já antes delas existia.

E então, quanto às memórias? Batatas, que se lixem as memórias, que a vida da mesa 19 é para a frente, e não para trás. O passado já não existe, o presente é nosso, e, quanto ao futuro, cá estaremos para dar conta dele, em oportuna e atempada crónica.

11.15.2006

43 – O gato das botas.

Constato, com contrição e algum pesar, que as crónicas mais recentes têm sobretudo ferido uma nota sisuda e filosófica, em detrimento daquele tom folgazão e divertido que caracterizou uma certa fase destes escritos. Ora bem, nem que seja apenas para desanuviar, proponho-me hoje, por excepção, tanger a imaginativa corda da fábula, e dar descanso aos pesados acordes da vida real.

Façamos então de conta que, por um primaveril pasto, retouçavam dois porquinhos, ou então três… sei lá, digamos que eram três. Para fugirem ao tigre mau, resolveram contratar um pato-bravo para lhes construir umas casas. O primeiro suíno cortou-se nos cobres, e chupou com uma casa de palha. O leão malvado pôs-se para ali a bufar, e a choupana deu com os burrinhos na água.

O segundo cerdo esticou-se um pouco mais, e teve direito a uma casota de madeira. Não que lhe tenha servido de muito, pois, logo ao primeiro resfolego da onça má, o casebre aluiu vergonhosamente.

O terceiro javardo armou-se em fino, e encomendou uma obra catita, toda em tijolo e betão. Veio o tubarão mau, e soprou, soprou, mas o estaminé aguentou-se à jarda. Isso deixou o cevado muito contente, até perceber que estava agarrado com os dois manos, que se tinham mudado para viver com ele.

Foi por essa altura que os pais do pequeno polegar decidiram que o puto, enfezado como era, comia mais do que aquilo que valia. Daí a porem-no com dono não se passou um credo, e logo o lenhador, que os pais irresponsáveis destas histórias são sempre lenhadores, ou gigantes, ou lenhadores gigantes, mas o lenhador, dizíamos, resolveu levar o catraio a perder-se na floresta. A coisa toda não lembra a um fundamentalista muçulmano, mas lembrou felizmente ao petiz, que lançou mão daquele truque que todos conhecemos, pedrinhas no chão, blá, blá, blá, blá. Conseguiu assim voltar para o pai, que ficou pior que estragado.

O lenhador era burro, mas teimoso. De novo levou o fedelho para a floresta, e – sendo o miúdo ainda mais burro do que ele – conseguiu levá-lo a perder-se novamente. É-se levado a pensar, com franqueza, se estas histórias não poderiam aproveitar bastante, caso aparecesse por lá um cérebro perdido, a oferecer os seus préstimos.

A besta do gaiato voltou a fazer o golpe das pedrinhas, mas o lenhador, num raro lampejo de inteligência, desviou a pista, de forma a afastá-la de casa. Terá sido por acaso ou por deliberação que a nova pista passou a conduzir à casa dos três porquinhos? O que interessa é que os suínos abriram a porta, os palermas, e isso foi o início de um belo churrasco, para o qual o pequeno polegar convidou os pais, que choraram muito, e foi bem feito.

A única relação entre esta crónica e a mesa 19 está, evidentemente, no seu título. A questão é a seguinte, nós nunca ali comemos coelho, mas fica a dúvida: se o comêssemos, traria na travessa bocados de botas, das de sete léguas?

11.14.2006

42 - Delenda Cartago!

É quase uma constante da vida, a gente passa meses a ver passar mais do mesmo, e quando tira quatro míseros diazitos de férias, tudo acontece. O que realmente aconteceu, neste caso, foi uma coisa trivial e portentosa, simples na sua imensa complexidade. Trata-se de nada menos do que isto, o advento da censura à mesa 19.

Serve esta crónica para falar da ascensão e queda do império da mesa 19. Bem, não tanto da ascensão, que tem sido amplamente descrita nestas páginas, mas sobretudo da queda, novel ocorrência, a fugir com o gordo rabo à seringa da nossa vivência quotidiana. Nós, que fomos a inveja de Salomão, encarnações materiais do cântico dos cânticos, mais poderosos do que Aníbal, mais sábios que Buda, somos de súbito alvo de censuras baixas e comezinhas. Nós, que destronámos imperadores, somos acusados – pasme-se – de atirar bolinhas de papel para cima do aparelho de ar condicionado! Ora digam-me, dá para acreditar nisto?

A baixa vileza da acusação constitui um insulto que nada, nem sequer o facto de ser inteiramente verdadeira, pode apagar. Acaso Nero se preocupou com a justiça, sequer com a verdade, quando fez de Roma a sua pira de glória? Tiveram outros Césares mais contemplações, quando se tratou de fazer frente ao fenício hostil? Nada, Catão, o censor do império, ergueu a fronte altiva, e em clara voz de comando ordenou a destruição de Cartago, capital inimiga. Delenda Cartago, determinou, e serenamente aguardou a resposta inevitável, Cartago delenda est.

A mesa 19 é um ideal, uma abstracção, uma nuvem sonhada por um banquete de filósofos. É por demais claro que abstracções e nuvens não atiram papelinhos para cima dos aparelhos de ar condicionado, pelo que a má acção não pode ter sido praticada senão pelos seus sacerdotes, as nossas pessoas carnais (aqui entre nós, foi o Carlos, mas adiante). Mas, e aí é que bate o ponto, todas as religiões declaram que os seus sacerdotes são sagrados, tão imunes à profanação como o próprio Deus que servem, e nós, que oficiamos o culto da mesa 19, não deveríamos ser excepção.

Mas as coisas são como são, e nós estamos debaixo de fogo, vítimas dos golpes das potências profanas que visam a destruição do nosso império. Os seus golpes são baixos, querendo levar a derisão aos nossos rituais mais sagrados, como os cânticos comuns – tão vilipendiados no passado – ou o sagrado rito das bolinhas de papel. Contra eles, só nos podemos deixar esmagar, ou então erguer bem alto a cabeça, e gritar, Delenda Cartago!

Que Cartago é essa, que urge destruir? Na infeliz ausência material da antiga capital fenícia, há que identificar outro alvo. Dentro do espírito científico, rigoroso e exacto destas crónicas, decidimos, após cuidadosa deliberação, tomar como referência exactamente aquilo que, no momento, me passasse pela cabeça. Desse ponto de vista, quem são os nossos cartagineses?

Pois bem, eles são uma multidão. Mais precisamente, são todas aquelas pessoas que não voam, todos os que sobrevivem em vez de viver, que ponderam quando deveriam rir, que riem quando poderiam exultar, que não sabem o que é sonhar, nem compreendem a ímpar beatitude de uma bolinha de papel, lançada com oportunidade sobre o topo de um ar condicionado. São os que concordam, sorumbáticos, quando alguém diz que a vida é um assunto sério, e, de tanto o dizerem, vão começando a acreditar que é mesmo verdade. É contra eles que eu lanço as minhas centúrias, é aos seus ouvidos que brado, Delenda Cartago!

Mas está escrito que Cartago não será destruída, e Roma terá de cair. Assim seja, cumpra-se então a inevitabilidade histórica, mas consintam-me ao menos um prazer, que nos seja permitido cair em chamas, como a Roma imperial de Nero. Nem que sejam apenas as chamas do aparelho de ar condicionado, finalmente incinerado por todas as bolinhas de papel que sobre si acumula. Que diabo, não custa assim tanto comprarem outro. Outro restaurante, quero eu dizer…

11.10.2006

41 – 19 não é um número redondo.

Já tem acontecido, por mais de uma vez, serem os portugueses o objecto destas crónicas. Não é, de resto, coisa de espantar, sendo a mesa 19 constituída, mais do que maioritariamente, por portugueses, conforme atesta a total ausência de estrangeiros entre nós. O ponto que pretendemos focar hoje é o seguinte, os portugueses não batem bem da bola.

Serve esta crónica para falar, não dos portugueses, mas sim da bola, desse esferóide que, de modo tão completo, absorve a atenção de tantos povos, os lusitanos incluídos. Ele é o futebol, certamente, mas igualmente o ténis, o snooker, o bowling, todas as práticas onde arbitrariamente se pontua ao sabor dos movimentos mais ou menos erráticos de uma esfera de dimensões pré-determinadas, manipulada de acordo com regras sabidas, que são aquelas só por não serem outras, ou mesmo umas quaisquer, que também serviam bem. O facto é este, toda esta gente vive da bola, seja em menor ou maior grau.

Sejamos por um instante moscas, e pousemos discretamente, convém ser discretamente, para fugir da fatal palmada, mas dizia eu, pousemos discretamente na borda de uma chávena, uma qualquer, das muitas que atravancam a mesa de um restaurante, em fim de refeição, e apuremos o ouvido: pois aposto, singelo contra dobrado, que acabaremos a ouvir uma qualquer treta, seja ela qual for, mas por certo relacionada com uma bola, e o mais provável é ser bola de futebol. Porquê esta obsessão, santo Deus?

Vem isto a propósito de uma idiossincrasia da mesa 19, mais uma, mas esta de particular relevo para o nosso assunto: a nossa mesa não se interessa particularmente por futebol, e muito menos por outros desportos esféricos, como os acima mencionados. É caso para dizer que, se os portugueses, de um modo geral, não batem bem da bola, a mesa 19, no seu todo, não bate bem com a bola. Aliás, para ser mais exacto, não bate bem nem mal, não bate mesmo nada.

Sim, confesso que há um ou outro adepto por lá, mas são andorinhas que não chegam para fazer o Verão, como não o faz um dia só. As conversas da bola que se ouvem por lá são marginais e raras, e os nossos tópicos são, com frequência, mais bicudos que esféricos. Não se pode, de facto, afirmar que nós não batemos bem da bola. É esse, de resto, o nosso problema.

O futebol é a nossa muleta nacional, tal como o estado do tempo é a muleta dos ingleses. É sabido que, se o tempo não mudasse de vez em quando, a Grã-bretanha seria uma nação silenciosa, por falta de assunto. Pois bem, não seria mais calada do que Portugal, caso alguém resolvesse, por despótico decreto, acabar com as conversas da bola. Nem é por acaso que se chama “a bola”, o ser futebol é mera casualidade, o importante é ter uma bola, qualquer coisa redonda. Mas, nem todas as bolas servem…

Ele há elitismos e populismos, nesta questão da bola. Qualquer pessoa pode iniciar uma conversa, servindo-se dos resultados da última jornada de futebol, mas há que estudar os circunstantes, antes de trazer à liça um resultado de andebol, e o snooker é matéria restrita à televisão por cabo. O ténis é um desporto de elites, e não vale sequer a pena falar no jogo do berlinde. Ou seja, há bolas e bolas.

Nas sociedades industrializadas, por exemplo, a coisa encontra-se perfeitamente estratificada. Os operários, gente rude e inculta, praticam habitualmente o básquete. Os escalões inferiores de técnicos são adeptos do bowling, enquanto os superiores preferem o futebol. Os quadros médios apreciam o andebol, e os de topo jogam snooker. Os administradores, pelo seu lado, não dispensam uma partida de golfe. Ou seja, quanto mais se sobe na hierarquia, mais pequenas vão ficando as bolas…

E quanto mais pequenas são as bolas, maior se torna a necessidade de falar delas. Não é esse o caso da mesa 19, onde as bolas são de bom tamanho, mas não se fala da bola. É por isso que aí ocorrem, tantas vezes, silêncios profundos, o silêncio de quem se cala por não ter, de momento, nada a dizer. Mas quando se fala ali, vale a pena ouvir o que é dito. É que não diz, regra geral, respeito a uma bola.

11.03.2006

40 – O Homem-Santola.

Imagine o amável leitor que toma nas suas mãos uma vulgar pedra da calçada, e a lança contra uma multidão escolhida ao acaso. Com toda a probabilidade, a pedra irá acertar em alguém que nunca ouviu falar em Edward Wood, nem está sequer muito preocupado com o assunto, visto toda a sua atenção, nesse momento, se concentrar na tarefa de lhe partir o focinho, para aprender a não apedrejar pessoas que nunca lhe fizeram mal algum.

Se o segundo facto é facilmente compreensível, mais difícil é entender o primeiro, o desconhecimento generalizado desse brilhante cineasta que foi Edward D. Wood. Sei que esta palavra, brilhante, poderá causar alguns engasgos a qualquer pessoa minimamente familiarizada com a reputação de Ed Wood, geralmente considerado o pior realizador que alguma vez pisou os estúdios de Hollywood. Eu, todavia, insisto no adjectivo, por razões que não tardarei a explicar.

Wood dirigiu diversas histórias de ficção científica, todas de baixo orçamento, todas com maus guiões, e indescritivelmente mal feitas, todas elas. Famoso, entre todas, é o delicioso “Plan 9 from Outer Space”, de que falaremos mais à frente.

É claro que a falta de meios ajuda a explicar por que razão o disco voador se parece com uma tampa de panela, baloiçando, ao sabor das correntes de ar, na ponta de uma guita que se deixa entrever. Não basta, contudo, para justificar que o piloto do avião, ao avistar a citada tampa de panela, descreva pela rádio que está a ver um objecto grande e alongado, da forma de um charuto. Ou que o funeral decorra durante a noite, enquanto fora do cemitério é dia claro. Ou que as diversas cenas de uma perseguição alternem entre dia e noite, ao sabor do que conveio filmar. O argumento financeiro não basta, não é preciso dinheiro para se evitarem disparates destes, caramba.

Os títulos, só por si, constituem uma anedota à parte. De entre uma série de obras, todas com nomes imbuídos de uma naiveté espantosamente imberbe, destaca-se o mencionado “Plan 9 from Outer Space”. Terá sido com base neste, considerado o pior filme de sempre, que Stanley Sheff concebeu o seu “Lobster Man from Mars”, uma comédia em torno de um filme péssimo, tornado um inesperado sucesso de bilheteira.

Foi este último, aliás, que trouxe Wood às conversas da mesa 19, aqui há algum tempo. Começou tudo com a chegada do Paulo Sousa, visando uma dobrada tardia, já em tempo de digestivos. Enquanto ele comia e nós bebíamos, alguém reparou, e comentou em voz alta, que o Paulo parecia uma santola. Olhei então para ele, e não me repugnou admitir que ele parece de facto uma santola, da mesma forma que eu não pareço um esbelto galgo. Foi esse o início da carreira do Paulo, em direcção ao panteão de fama das santolas.

Foi por isso que me lembrei de Ed Wood. Ele foi o percursor de “O Homem Lagosta de Marte”, nós poderíamos talvez dirigir “O Homem Santola de Bostis Merdix 7”. E faríamos esse filme da única maneira que considero aceitável: mal, muito mal, mesmo. Não sei se conseguiríamos suplantar Wood nesse esforço, mas por certo que o tentaríamos. Porque, compreendem, eu estou seguro de que todas as falhas nos filmes de Edward Wood são intencionais, e de que ele sempre trabalhou, de forma brilhante, para produzir aquilo que realmente pretendia: os únicos filmes honestos da história de Hollywood.

É já quase banal chamar ao cinema A Grande Ilusão. O celulóide foi inventado para ser um repositório das mentiras cozinhadas pela indústria do espectáculo. O supra-sumo dessa arte consiste em convencer o espectador de que vê o que não está lá para ser visto, nem nunca esteve, ou virá a estar. Filmes como “Alien”, ou “Jurassic Park”, vivem de uma cornucópia de efeitos especiais, meros truques de circo pour epatter le burgeois. Mas o Homem Lagosta de Marte é real, intensamente real. Ali vemos, não a perfeição de um inexistente Alien, mas a sólida verdade de um esforçado actor, grotescamente mascarado com pedaços de borracha, a imitar um crustáceo. Ora digam-me cá, quantas vezes não há, em que nós próprios nos sentimos exactamente assim, como se passássemos pela vida mascarados de lagosta? Em contrapartida, quem é que, na vida real, viu já um Alien, verdadeiro e convincente?

Seria um desastre, se alguém tentasse produzir um making of de qualquer filme de Ed Wood. A essência desses documentários é explicar, a um público embasbacado, como se fez este ou aquele efeito. Isso é desnecessário nestes filmes, pois está lá tudo, o efeito e a forma como foi conseguido, tudo na mesma cena. É como se víssemos o filme dos bastidores, e não da plateia. Wood, ao contrário dos outros cineastas, acredita que a magia do cinema está apenas nisto, em permitir a sua própria desconstrução, a partir de dentro, do próprio filme, e não de uma crítica exterior ao mesmo.

E a nossa mesa 19, como se vê ela metida nestes assados? Poderei eu ligar, nas sólidas malhas de um raciocínio escorreito, esta cinéfila crónica? Pois bem, posso. Posso, mas não quero. Sinto-me um pouco professoral, hoje, por isso vou deixar este ponto em aberto, como trabalho para casa.

Nem sequer é difícil. Para além da razão óbvia, que é explicar por que razão começámos a vestir o Paulo de santola, há outras coisas. Basta que se pense em certas posturas profissionais mais honestas, deste ou daquele, que acabaram por resultar em maus filmes, figurativamente falando. Imagine-se que Óscares não teria valido uma postura diversa. Ou então esqueçam isso, e considerem apenas quantas vezes já pensaram, Isto está tão mal feito, que só pode ser de propósito!

Pois bem, quem é que disse que não é?

11.02.2006

39 – Afinal havia outras.

A Vânia, é com mágoa que o digo, descambou! Há já várias crónicas que tenho aqui exarado a minha preocupação em relação a essa miúda, tidas em conta as atitudes que tem revelado, pelo menos no que respeita à mesa 19. Pensei, contudo, que de birra ou amuo se tratasse, mas descobri agora que é mais sério o caso. A Vânia, passe o plebeísmo, pôs-nos com dono!

Serve esta crónica para falar de palitos, dos palitos que as testas da mesa 19 hoje ostentam, pares de bandarilhas que exibem despudoradamente o nome da que foi a nossa musa, e é agora uma novel Circe, mais não enxergando do que um leitão em cada um de nós, e nem por isso um leitão muito bem-educado. Os palitos, já dizia o saudoso MEC, são a versão portátil e civilizada dos clássicos cornos, mas têm um grave inconveniente: ao invés de darem, como seria de esperar, uma mera dor de palito, dão na mesma a velha dor de corno, como se a dimensão da nevralgia independesse do diâmetro das hastes que a fronte é obrigada a alojar.

Seja mais ou menos frondosa a ramada imposta, o facto é que a nossa amiga nos anda a empalitar. Pensávamos ter com ela uma relação especial, e volve-se esta no banal toma-lá-dá-cá da restauração quotidiana. Cuidávamos ser única a mesa 19, e afinal havia outras, muitas outras, até. Bastava ouvi-la no outro dia, em conversa íntima com esse aglomerado bastardo de tábuas que é a mesa 18! Todos os diálogos que de início mantivemos, todos ela ali repetiu, como quem enceta novo romance à vista do antigo. E nós, a vermos crescer os palitos.

É triste, mas é verdade: o homem depende da mulher, e a mesa 19, sendo uma coisa de homens, como ficou já demonstrado, depende também de uma mulher, da Vânia. Debalde a Marta acaricia as nossas cabeças, em vão a Lana se desdobra em solicitudes várias, a Vânia é o coração daquela mesa, e nós somos a mera carne e osso, que agora se inteiriça em extemporâneo rigor mortis, privada que se vê da sua circulação sanguínea. Bem podemos continuar a falar alto, e a entornar copos a despropósito, mas a coisa não tem mais graça. Quer dizer, até tem graça, tem mesmo muita, mas tem bastante menos, sem ela.

Não podemos em boa verdade censurá-la, pois é sabido que a Vânia cresceu. O problema é justamente esse, a Vânia cresceu, e nós não. A mesa 19, com o seu tremendo potencial, capaz de derrubar sistemas, mudar paradigmas, escrever novas filosofias, continua a retouçar juvenilmente nos verdes prados da sua infância, sob o soberano olhar de desprezo de uma Vânia agora adulta, de uma maioridade de curta data, cartão de cidadã com a tinta ainda fresca, que não tem portanto idade para entender como pode um bando de quarentões portar-se como a ala mais insubordinada de um infantário para crianças difíceis. Virá a percebê-lo um dia, mas será tarde: nessa altura, estaremos todos mais velhos, ou até mais mortos, pois ninguém permanece jovem para sempre. Não, nem mesmo quando se trata da segunda juventude, a da maturidade.

Mas, afinal de contas, o valor de uma pessoa, e bem assim de uma mesa cheia delas, depende do que outra pessoa pensa sobre elas, ou será antes uma característica intrínseca ao próprio, ou próprios, que nenhum julgamento externo pode alterar? A coisa depende: o famoso professor Taskus Kopus, no seu conhecido livro de auto-estima, chamado “Meti o dedo no rabo, e agora cheira mal”, afirma que o valor de um ser humano jamais pode ser medido por terceiros, a menos que o ser humano em causa seja feito de ouro, ou de outra matéria valiosa, ou então uma modelo da Playboy. Não sendo esse o nosso caso, afirma o professor Kopus que o nosso valor é apenas nosso, independentemente de a Vânia achar que somos umas bestas, e mesmo, independentemente de sermos de facto umas bestas. É complicado, mas é assim que funciona.

E o que muda, então? Pouca coisa, a Vânia lá continuará a andar, servindo dedicadamente todas as mesas, até mesmo a nossa. Os figurantes do costume pedirão dobrada, o controlo do ar condicionado, cheirinhos, e o livro de reclamações. Talvez até as crónicas da mesa 19 persistam, mas serão as crónicas de uma mesa imaginária, uma távola idealizada. A verdadeira mesa 19, desleixada por uns, abandonada por outros, encornada pela Vânia, já só vive em espírito. Requiescat in pace, e que a terra bem guarde o seu corpo, pois a alma há-de seguir em frente, e não duvido que virá a cumprir o seu destino.