1.31.2007

71 – De mortuis.

Porra, isto já é perseguição. Eu bem que tento ser um rapaz sério e bem comportado, mas parece que há um demónio perverso e badalhoco, que não me larga. Hoje, por exemplo, saí mais cedo, com toda a compostura e gravidade, a fim de comparecer a um velório. Ao chamar o táxi, com toda a solenidade que a ocasião requeria, o telemóvel brindou-me com uma voz irritante, informando que tinha menos de um euro de saldo. Feita a chamada, o ecrã mostrou a quantia restante, 69 cêntimos!

Já chega, caramba! Desde que escrevi uma crónica, imprudentemente javarda, subordinada ao tal 69, a coisa não tem parado. Ele é 69 para aqui e para ali, 69 em todo o lado, até no telemóvel. Tanto 69 já me começa a despertar a ideia de pôr a coisa em prática, mas há obstáculos. É claro que podia engatar uma miúda simpática, mas teria de começar por a convidar para jantar comigo, e é a isso que eu não me atrevo: estou certo de que a conta importaria em 69 euros.

Mas isto foi apenas um desabafo, pois não é dessas poucas-vergonhas que hoje se trata. Tout court, serve esta crónica para falar da morte, fenómeno em si próprio simples, mas ao qual nunca resistimos a associar tanta coisa complicada. Tomem-se, apenas a título de exemplo, as disposições do acordo de trabalho do meu sector, no que respeita a ausências ao serviço por falecimento de um parente próximo.

A questão surgiu hoje, em volta da mesa 19: quais os direitos que me assistiam, no caso de morte de uma tia (tias legítimas, das que são irmãs da mãe, e não aquelas de Cascais)? Muitos aventaram que eu teria direito a dois dias de ausência. Eu nem sequer queria tanto, bastava-me um para poder assistir ao funeral, e viria trabalhar no seguinte. Mas nunca gostei de me apropriar indevidamente fosse do que fosse, pelo que me dediquei, apenas regressado ao local de trabalho (por assim dizer), a compulsar a legislação existente. Foi aí que, imperceptivelmente, entrei na quinta dimensão.

Aprendi, com pasmo e estupefacção, que a morte de uma sogra me concede o direito a ficar em casa cinco dias (presumivelmente, serão três para comemorar, e dois para a ressaca). Por coincidência, tragédias como a morte da minha mulher, ou – pior ainda – de um filho, horrores capazes de destruírem a vida de um homem, são contempladas com os mesmíssimos cindo dias. A tia, pelo seu lado, não dá direito a nada, e pronto.

Mas a coisa ainda piora. A morte de um irmão, provável alma gémea, que desde a infância pertenceu à nossa vida, ou de um neto, anjo arrebatado na flor da mocidade, quantas vezes mais amado que um filho, dispensa do dever laboral, apenas, durante dois dias. Findo este prazo cruelmente escasso, há que engolir as lágrimas, fazer das tripas coração, e comparecer ao serviço. Sobre coisas destas, costumava perguntar o Jô Soares, E pode? E logo respondia, É claro que pode. O que ainda nos safa é que resta sempre a possibilidade de matar a sogra, logo a seguir.

Entendamo-nos: o passamento da puta da velha, que tipicamente se chama Gertrudes, e cuja morte apresentou o único inconveniente de ter demorado tanto a acontecer, concede ao trabalhador uma folga de cinco dias, para se ressarcir do presumível desgosto. Em compensação, o desastre do neto Joãozinho, tão querido e amoroso, que teve a infelicidade de ir desta para melhor quando caiu do baloiço, deixando os avós prostrados e inconsoláveis, apenas oferece aos ditos avós dois dias para se recomporem. Será que isto se percebe? É claro que se percebe. Afinal de contas, putos há muitos, e pode-se sempre fazer outro. Sogras, por outro lado, tendem a rarear, sobretudo ao ritmo a que a malta as vai matando. Trata-se, afinal, de um caso da mais elementar justiça.

O próprio termo, justiça, é em si próprio questionável. Recordo-me que já o Victor Hugo contava, nos seus Miseráveis, a história de uma jovem recém-casada, que procura o seu pai, lavada em lágrimas, queixando-se de que o seu marido lhe deu uma estalada. O pai, após ponderar a questão, presenteia a soluçante filha com um sonoro chapadão nas trombas, daqueles de criar bicho, e diz-lhe, “Pronto, estás vingada. Vai dizer ao teu marido que, se ele bateu na minha filha, eu bati na mulher dele”. Pois é, são conceitos diferentes de justiça, e eu entro a desconfiar que os juristas que regulamentam as ausências ao trabalho também leram este livro.

Os exemplos absurdos não faltam, para mal dos nossos pecados, e desgraçada desta crónica, se os tivesse de narrar a todos. A questão do referendo à IVG, por exemplo, tem sido fértil em disparates, tanto de uma parte como da outra. Não quero de modo algum enveredar por esse assunto, mas não resisto a contar uma curta história.

Vi recentemente uma reportagem, sobre uma paraplégica que necessitou de fazer um aborto. Não teve qualquer culpa da sua gravidez, que se deveu à interacção de um novo medicamento, com a pílula contraceptiva, levando esta a perder o efeito (sim, até as paraplégicas têm direito a ter vida sexual). Dado que a sua condição física (malformação do útero) a impedia de levar a bom termo uma gravidez, e implicava sério risco de vida para ela, dirigiu-se aos competentes serviços de saúde, munida do atestado que o médico lhe fornecera. Estava dentro da lei, com os diabos, e não tinha nada a temer.

É aqui que a história se torna surrealista. A senhora é recusada por todos os hospitais aonde se dirige, e onde lhe chegam a dizer, “Isto é um sítio onde se vem para parir, e não para abortar”. A solução poderia ser encontrada por via legal, mas as tais 10 semanas não deixam muita folga à nossa morosa justiça. Acossada, a pobre senhora fez o que qualquer outra faria: foi abortar a Badajoz.

Isto, a meu ver, é um ponto importante. Os defensores do Sim dizem que urge acabar com uma situação iníqua, na qual as mulheres são obrigadas a ir ao estrangeiro, se têm posses para tanto, ou sujeitar-se a condições indignas e degradantes, no caso contrário. Mas acontece que, mesmo nos casos em que a lei actual já permite a IVG, as tais condições dignas não existem, e o aborto legal, na prática, faz-se nos mesmos termos do clandestino. Se mudarmos a lei, de que é que isso vai adiantar?

E assim vamos vivendo. Por todo o país se discute, com garra e paixão, a hipótese de trocar uma lei que não funciona, por uma outra, igualmente ineficaz. O meu patrão, pelo seu lado, vai-me dizendo que a morte da minha sogra, que eu provavelmente empurrei pelas escadas abaixo, é tão grave para mim como morrer-me um filho, e duas vezes e meia mais grave do que morrer-me um neto. E isto já não causa espanto a ninguém. Estupidez? Não. É só uma forma de estar na vida.

70 – Surrealismo.

Sim, bem sei que me estiquei um bocado na última crónica, e devo por isso uma desculpa aos pacientes leitores. Eu não tinha nada, realmente, de me pôr a falar de uma série de porcarias que não vou sequer referir aqui, como lambidelas de genitais, chupadelas de membros viris, e garrafas metidas no orifício anal. Escusam de recear os leitores que eu volte a mencionar quaisquer actos porcalhões de sexo oral, tal como não os menciono neste parágrafo. Isso foi meramente um fait divers, arrumado e encerrado. Acabaram-se de uma vez por todas as glandes sugadas em delírio, os entrefolhos percorridos por línguas sôfregas, as… enfim, percebem a ideia.

A fim de elevar o nível deste fórum, lembrei-me de falar sobre arte. O tema, tanto quanto me consigo recordar, é virgem nestas páginas. Houve, efectivamente, uma ocasião em que me ocorreram alguns pensamentos assaz profundos sobre Claude Monet, mas aconteceu que, de cada vez que os tentava escrever, a maldita caneta atraiçoava-me, e saía minete. Tentei então escrever sobre isso, e terei certamente o cuidado de incluir esses textos no livro que darei um dia à estampa, enquanto estiver a cumprir a minha pena de seis anos de cadeia, por depravação. Até lá, reservo-os, para não ficar sem assunto.

Vem tudo isto confirmar aquilo de que já todos suspeitávamos, que eu não sou propriamente uma pessoa muito culta. Não é que seja estúpido, de forma alguma, e ainda não cheguei ao ponto de confundir as grandes obras do mestre Picasso com a grande pica de aço do mestre-de-obras, mas a minha cultura artística deixa, mesmo assim, muito a desejar. Entendo-me razoavelmente bem com Rembrandt e Van Gogh, mas sou incapaz de distinguir Andy Warhol de um saco para a reciclagem, e Picasso tem sempre o condão de me lançar num estado de mente psicopático e confuso, que a geometria fractal jamais me produziu.

Serve esta crónica, já que para alguma coisa tem de servir, para falar do Rui Cardoso, que nos demonstrou hoje a sua, até agora insuspeitada, intenção de se dedicar à arte. Não o fez por palavras, meio que seria talvez banal e corriqueiro. Não, optou, ao invés disso, por nos demonstrar na prática a sua vocação.

Para esse efeito, começou por entornar na mesa, em posições cautelosamente estudadas, dois em cada três bocados da comida de que se servia. Alguns cuidaram que ele estava a ser simplesmente um javardolas, mas as mentes mais finamente habilitadas para a coisa artística apreenderam sem dificuldade o cerne da questão: o Rui estava a criar.

Nódoa a nódoa, ia-se desenhando, na toalha que já fora branca, uma obra de arte. Que retrato se compunha ali? Que coisa, perguntar-me-ão vocês, representaria o produto final? Pois bem, significaria o mesmo que usualmente significa, quando se trata de arte deste género. Nomeadamente, que o autor reconhece que levou ao limite extremo a cagada que podia fazer naquela mesa, pelo que desiste de aperfeiçoar ainda mais a sua obra.

A arte restaurativa processa-se de acordo com determinados parâmetros, e ainda bem que assim é. São esses parâmetros que asseguram que o erro na conta não ultrapassa uma certa percentagem, e garantem que as relações de cariz insultuoso com clientes de outras mesas não ultrapassam um certo limite, mantendo-nos desse modo a salvo de um processo judicial, que seria de outro modo inevitável.

E é assim que todos nos entendemos. A arte cagatória do Rui será um dia apreciada, ou então não. À nossa volta, e por toda a parte, gente continuará a lamber, a chupar ou a enfiar. É assim que a vida funciona, e não há nada que possamos fazer a esse respeito. O bacalhau das segundas-feiras continuará a ser à minhota, e grande parte dele será entornada sobre a mesa. Isto não é javardice, é apenas arte.

1.26.2007

69 – … E vira!

Sinto-me no dever de avisar que este post, ao contrário da maioria dos outros, não é próprio para todas as audiências. Às pessoas púdicas, recatadas, moralistas, ou simplesmente sofrendo de momentos de bom gosto, recomendo que ignorem esta entrada, e se dediquem às próximas. É que eu hoje ajavardei um bocado, e não sei se toda a gente será capaz de lidar com isso.

Pronto, tinha de acontecer. Guiados cegamente pela mão de ferro das inexoráveis progressões aritméticas, as tais que fazem suceder o três ao dois, e o vinte ao dezanove, chegámos finalmente, inevitavelmente, à crónica 69. Conhecendo como conheço esta malta de ginjeira, estou mesmo a ver o que é que esperam de mim. Pois bem, desiludam-se, eu sou um autor sério, e não tenho a menor intenção de me pôr a escrever sobre essas porcarias.

Parece quase que foi ontem que o Paulo escreveu, em comentário a uma crónica remota, julgo que seria a 9, ou então a 10, “aceito que, quando chegares à crónica 68, saltes directamente para a 70”. A coisa era uma piada, então, e ninguém cria sinceramente que as crónicas um dia chegassem tão longe. Quanto caminho se percorreu entretanto, quantos disparates foram já derramados sobre as inocentes páginas deste blog. Quantas coisas importantes se disseram, também, e será que valeu a pena dizê-las?

O 69, em si próprio, é apenas mais um número, sem nada que o distinga de tantos outros números. Vi um dia, por exemplo, um prédio que era o número 38, e juro que nada tinha de especial. Eu próprio moro numa casa que ostenta o número 7, e não me ando propriamente a gabar disso.

Acontece apenas que o 69, por figurar dois algarismos em posições inversas, se tornou na designação de um acto sexual bastante badalhoco, em que o casal interveniente assume, de facto, essas posições inversas, alambazando-se em seguida numa espécie de javardeira a dois. O número em si, coitado, não tem culpa de nada, e nem chega a lamber coisa nenhuma, nesta improvisada ice-cream party do erotismo.

A pobre da matemática, desgraçada, é que é abusada neste lamentável processo. Mas não faz mal, a matemática está bem habituada a sofrer abusos destes, e já nem liga nenhuma. Recordo-me que, há tempos, a marca favorita de cachaça, no Brasil, era a 51. Isto levou à criação de uma nova posição sexual, o 120. Segundo explicam os entendidos, um 120 consistiria em executar um 69, com uma garrafa de 51 metida no cu.

Tudo isto são badalhoquices vergonhosas, indignas do elevado quilate deste blog. O 69, concretamente, é uma invenção pérfida e peçonhenta, com todas as trocas de fluidos corporais, suor, e sei lá eu que mais, já para não falar de todas aquelas lambidelas. A língua fez-se para louvar o nome do Senhor, meus irmãos, e essa é que é essa.

Considere-se por exemplo um jovem casal, homem e mulher unidos pelos santos laços do sagrado matrimónio. Naturalmente, ao longo da sua vida em comum, hão-de surgir problemas. Há pois que discuti-los seriamente, impõe-se o diálogo honesto, abertura franca de mentes, sob os paternais auspícios da Santa Madre Igreja. Pois bem, o que fazem eles? Em vez de dialogar, dirigem os seus lábios, justamente, ao pólo oposto da questão. E a jovem esposa, reconfortada, cuida que resolveu os seus problemas porque, ao invés de conversar com o seu marido, amo e senhor, lhe chupou a gaita. Ele, pelo seu lado, tem a boca cheia de pelos, e nem o vinho lhe sabe bem. Ora digam-me lá, vale a pena condenarem-se assim às fogueiras do Inferno duas almas tementes a Deus, apenas por uma mamada?

Não, a coisa assim não pode ir lá. Como diria o célebre Diácono Remédios, qualquer dia, se não tomam cuidado, andam por aí a lamber postes de telefone, e os homens a terem orgasmos de cada vez que chupam umas patas de sapateira. Depois, quando menos se precatam, desatam a enfiar o que tiverem à mão em tudo quanto é orifício, e foi assim que Sodoma se lixou.

Há coisas que não temos o direito de permitir, que é forçoso condenar. A Santa Madre Igreja, cujos padres não estão autorizados a dar uma queca, é que sabe como se hão-de dar as quecas. Comer o rabo à empregada doméstica está dentro dos limites, mas um 69 com a mulher legítima é algo fora de questão. Já se for feito com um menino do coro, por trás do altar, o caso muda completamente de figura. Afinal de contas, os padres, porra, também são seres humanos.

E, perguntam-me vocês, como se relaciona a mesa 19 com esta polémica questão? Pois bem, com muita tranquilidade. Somos sobretudo, como já tive ocasião de aqui mencionar, um grupo de pessoas normais, com atitudes normais. Nunca ocorreu discutirmos ali tal assunto, mas estou firmemente persuadido de que aquela gente conhece o 69, e não é por ter lido sobre ele na Internet. Do mal, o menos, no entanto: julgo que ninguém, por aquelas bandas, é adepto do 120.

Quanto ao resto, creio que o próprio Deus recomendou, no primeiro livro da Bíblia, o livro do Génesis, que nos amássemos e multiplicássemos. O primeiro conselho é bom, quem é que não gosta de fazer amor? Mas ninguém consegue passar o tempo todo a multiplicar-se. É que não é humanamente possível, simplesmente. Nesses casos, um bom 69, de vez em quando, vem muito a jeito, para variar um pouco.

1.25.2007

68 – Videntes e Adivinhos.

Aquele que não sabe, e não sabe que não sabe, é um imbecil: matai-o.
Aquele que não sabe, e sabe que não sabe, é um ignorante: ensinai-o.
Aquele que sabe, e não sabe que sabe, é um sonhador: acordai-o.
Aquele que sabe, e sabe que sabe, é um génio: imitai-o.


Dedica-se a epistemologia, como tivemos hoje ocasião de debater, a estudar o conhecimento. Nela se discute o que conhecemos, e de que forma o conhecemos, quais as coisas que podemos realmente conhecer, e quais as que são, pela sua própria natureza, incognoscíveis. Esses mecanismos estão longe, ainda hoje, de ser bem compreendidos. Ninguém sabe, por exemplo, de que forma certas pessoas são capazes de prever que um avião vai cair, enquanto outras parecem simplesmente incapazes de apreender o facto óbvio de que nos estão a incomodar, e deveriam fingir que vão cagar, e não voltarem.

Dá-se ao primeiro grupo o nome de videntes, enquanto os segundos respondem normalmente pela designação genérica de imbecis. A distinção entre as duas categorias, contudo, é com frequência bastante ténue. Tentemos então analisar esse fenómeno, a fim de perceber melhor o que as diferencia.

Li recentemente, num blog, que dois videntes americanos foram convidados para opinar, num programa de televisão, sobre o rapto de um miúdo, desaparecido meses antes. A primeira destas luminárias presenteou os abatidos pais com a nova de que a criança estava morta, enterrada numa floresta. O segundo viu o petiz igualmente morto, mas nas traseiras de um camião. Um deles, não recordo agora qual, avançou ainda a útil descrição do criminoso, um indivíduo de raça negra, alto e magro.

All’s well that ends well, como já dizia o velho Shakespeare, e a história veio a conhecer o seu feliz desfecho dias depois, quando a polícia conseguiu finalmente encontrar o rapazito, extremamente vivo e bem conservado, para quem passara vários meses enterrado numa floresta nas traseiras de um camião, ou lá o que era. A mesma investigação permitiu deter o raptor, um homem caucasiano, baixo e gordo. Enfim, não se pode dizer que as previsões tenham saído completamente furadas: as autoridades são unânimes em admitir que não se trata, efectivamente, de uma mulher esquimó, coisa que nenhum dos dois sábios tinha sequer insinuado.

Como é usual em casos destes, deu-se um jeito à coisa, varrendo os cacos para debaixo do tapete. Os pais deram-se por satisfeitos com o Happy End, o que é perfeitamente compreensível. Afinal de contas, tinham o filho de volta, o que era tudo o que lhes interessava. Os dois ilustres videntes, esses, lá continuam a andar, e não consta que as suas carreiras tenham sofrido qualquer revés de monta. Au contraire, os respectivos negócios prosperam, e as clientelas continuam florescentes. É caso para comparar esta história a um daqueles quadros do “Onde está o Wally?”, e desafiar o leitor a encontrar os imbecis que estão aqui em causa. Para ajudar, vou só dar uma pista: não são os dois videntes.

Também em Portugal temos casos destes. Vi em tempos, num inenarrável programa da TVI (sim, eu sei que isto é uma redundância), uma coisa tipo Jerry Springer, mas com menos porrada, mas vi, dizia eu, a história, narrada na primeira pessoa, de uma jovem de vinte primaveras, bem apessoada e bonita, de aparência inteligente e culta, estudante universitária, pelo que depreendi. Conta-nos então a menina que, um ano antes, teria consultado uma vidente (sim, não é gralha, uma vidente), e que esta lhe haveria profetizado a morte, inexorável, do decurso de implacáveis doze meses.

Vendo-se forçada a lidar com o que, para ela, constituía um facto tão indiscutível como pôr-se o sol a ocidente, o que fez a nossa heroína? Pois bem, tratou de realizar todo o capital que conseguiu, recorrendo a créditos bancários (que, naturalmente, não iria pagar, já que estaria morta), e dedicou-se a viver o melhor possível o seu último ano, espatifando o dinheiro desonestamente adquirido.

Ora bem, terminou o ano e o guito, e a menina, vá lá alguém imaginar uma coisa destas, continuou viva, e a vender saúde. Pior, não apenas viva, mas também falida, e a braços com uma dívida do tamanho do orçamento de um porta-aviões. O que decidiu então a genial criatura fazer? Obviamente, processou a vidente.

A coisa toda parece uma anedota, bem sei, e eu não teria sequer acreditado na história, se não a ouvisse da própria boca da protagonista, que, claramente, não via nada de mal naquilo que narrava. Entre este molusco acéfalo, a multidão de outras amêijoas como ela, a equipa de produção que dedica um ror de horas a fazer o programa, e os milhões de cidadãos que o vêm, e acham aquilo tudo natural, volto a perguntar, onde está o imbecil? Tal como no caso precedente, faço a ressalva: não é a vidente.

Veio toda esta diatribe, que já vai ficando longa, a propósito do Rui Cardoso, que nos garantiu hoje, à mesa, ter lido a crónica de ontem, apesar de não ter estado cá. Por momentos, a mesa 19 tremeu. Tínhamos um iluminado entre nós, um profeta, um adivinho. Mas cedo se instalou a decepção, quando ele se mostrou incapaz de prever os números do euromilhões da próxima semana.

Isso, de resto, sempre constituiu para mim um mistério indecifrável. Por que cargas de água é que uma pessoa omnisciente, capaz de saber sobre mim coisas que eu próprio desconheço, tem a necessidade de subsistir à custa das magras dezenas de euros que vai conseguindo extorquir a um bando crédulo de idiotas? Por que raios é que não se limita a adivinhar o próximo número premiado na lotaria, garantindo assim o provimento das suas necessidades até ao fim da sua vida (cuja duração exacta, aliás, tem a obrigação de conhecer)? Os tais clientes, que ela diz só pretender ajudar, não são capazes de pensar nisto? Mais uma vez, onde é que está o imbecil?

Mas pronto, não bato mais no ceguinho. Como citava Conan Doyle, não me lembro já de que fonte, un sot trouve toujours un autre plus sot, qui l’admire. Ou, como se diz em Portugal, há sempre um pé torto para calçar uma chinela velha. São leis de mercado, nada mais.

Nota importante: a história do rapazinho americano foi retirada, com a devida vénia, do blog “Que Treta” (http://ktreta.blogspot.com/). Trata-se de um blog muito diferente desta bandalheira da mesa 19, que mistura tudo no mesmo saco. Não, aquele é um blog sério. Para quem ainda preze o discurso inteligente, a lógica analítica, aplicada com clareza e despretensiosimo, o cada vez mais incomum senso comum, ou simplesmente a velha arte de bem dizer as coisas, este blog não é recomendável. É obrigatório.

1.24.2007

67 – Roma está a arder.

Foi desta, agora é que a bomba explodiu. Desabaram as muralhas de Jericó, o faraó deixou fugir os escravos israelitas, Hitler executou finalmente o último judeu. Pior do que tudo isto, a Vânia disse hoje (treme-me a língua, só de o relembrar), “Este restaurante é um lambajão. É uma tasca”. Quebrou-se, por fim, o último selo do Apocalipse.

Este restaurante é um lambajão. É uma tasca. Palavras memoráveis, que ainda hei-de um dia fazer gravar em bronze, numa placa que há-de ficar colocada sobre a porta de entrada, isto se não vier a cair mais tarde, partindo os cornos a qualquer cliente incauto, desses que cuidam que é sem risco que se adentra aquele santuário. A ser esse o caso, a placa ficará mais caída, o palerma mais morto, mas tudo o que a autópsia ressalvará serão as indeléveis palavras, Este restaurante é um lambajão. É uma tasca.

Serve esta crónica para falar deste restaurante, do tal que é um lambajão, uma tasca, e do que a mesa 19 pensa a esse respeito. Não, nem tanto disso, que as nossas opiniões têm sido já abundantemente registadas, ao longo de sessenta e tal crónicas. O que a mesa 19 pensa acerca dele é irrelevante, o nosso restaurante é um daqueles factos da vida. Existe, está ali, e pronto.

Soubemos hoje, contudo, que o nosso restaurante faz mais do que estar simplesmente ali. Concretamente, parece que é um lambajão. Isto levanta, evidentemente, sérias questões morais, éticas e epistemológicas, a que não podemos ficar indiferentes. Começo, só para ilustrar a magnitude do problema, pela primeira de todas: o que é, exactamente, um lambajão?

Pois bem, é humildemente que confesso a minha ignorância. Sei tanto o que é um lambajão, como sei por que raio é que os troianos resolveram trazer para dentro de portas um cavalo de madeira, daqueles que toda a gente está mesmo a ver que vêm cheios de soldados gregos. A coisa tem, pelo menos, o mérito de explicar o que é um presente de grego. Fica contudo por explicar o lambajão.

A consulta ao dicionário deixou-me na mesma. Na Internet, um motor de busca simpático sugeriu-me que verificasse lingueirão, mas continuei sem saber o que teria um molusco bivalve, aparentado com a amêijoa, a ver com a mesa 19.

Há ainda o Azerbeijão, mas trata-se de uma hipótese que se me afigura remota. Não, tive de reconhecer que o lambajão é uma palavra por mérito próprio, à semelhança de aventesma, avantesma ou abantesma, com o seu significado particular e inquestionável. Quem sabe se o étimo em questão não se prenderia com as pataniscas prometidas para amanhã? Nestes casos, é sempre melhor não fazer muitas perguntas, e levar guardanapos.

Resta, contudo, a parte final da frase da Vânia. Que o restaurante seja um lambajão, é algo sobre o qual estamos já de acordo, mas é que ele não se contenta em ser um mero lambajão. Não, ele é, para além disso, uma tasca.

Ora bem, a esse respeito, está a Vânia claramente equivocada. O nosso restaurante, ela que tranquilize o seu espírito, não é, nem jamais foi, uma tasca. Não, isso é algo de que ninguém o poderá nunca acusar.

As tascas são sujas, coisa que este restaurante não é. As mesas, nas tascas, são decrépitas e mal apresentadas. Nesses antros, somos servidos por estalajadeiras velhas e desdentadas, mais arruinadas ainda que o estabelecimento. Mais importante ainda, come-se muito bem, nas tascas.

Fica assim a coisa bem esquematizada e definida. O nosso restaurante não é uma tasca, helás, e não é também um lambajão, não, pelo menos, até descobrirmos que gaita é isso. Até lá, continua a ser o mesmo. Uma casa sóbria e respeitável, que tolera a mesa 19, ao mesmo tempo que se orgulha da mesa 19, tudo isto enquanto se envergonha da mesa 19. Quanto ao resto, é apenas um bom restaurante. A comida é que podia ser um bocadinho melhor, mas paciência, não se pode ter tudo. De resto, que mais poderíamos esperar, num restaurante que julga ser um lambajão?

1.23.2007

66 – A bestinha.

Cometi recentemente um erro. Afirmei, em crónica transacta, que a ultima, o retrato fidedigno, e só incidentalmente infactual, da minha morte, seria a crónica 66. Naturalmente, relacionei tal coisa com o meu suposto falecimento, donde a alusão à besta, que seria obviamente a do apocalipse, em versão reduzida. Pois bem, erro meu, má fortuna, amor não sei que mais. A crónica 66 é esta, e a besta, desiludam-se os meus caros amigos, parece que afinal não sou eu.

Pois bem, perguntará o leitor interessado, quem é então a besta? Certo é que se trata aqui de um mero 66, e não do 666 completo e inteiro, a besta lidada em toda a sua corpulência e magnitude. Não, aqui temos de nos haver com um simples 66, uma bestinha, quando muito, espécie de papa-formigas que substitui os leões, neste circo pelintra que é a vida de todos nós.

Contudo, mesmo um circo delapidado continua a ser um circo, e não é por isso que o devemos menosprezar. Não há leões, bien entendu, e vemo-nos forçados a substitui-los por outra bicharada, mas isso não tem remédio, estando portanto remediado à partida. Falta apenas saber algo, onde estão de facto esses papa-formigas, quem são eles, concretamente? É aqui, justamente, que a porca torce o rabo, o que só tende a aumentar a barafunda, visto que não há qualquer porca neste circo.

No meio desta confusão zoológica, há todavia um animal que triunfa, a bestinha. A bestinha é um daqueles bichos que Lineu não teve a pachorra de descrever, mas que nem por isso deixa de ter existência real, para mal de todos nós.

Tome-se, por exemplo, a estimada colega que tive o prazer de aqui descrever, duas crónicas atrás. Ela é, claramente, uma bestinha. Isto, concretamente, porque é uma besta, mas não tem categoria que chegue para ser A Besta, a do B maiúsculo. Não, ela é sem dúvida um sinal do Anti-Cristo, mas está bem longe de ser a Besta do apocalipse. Podem os povos ficar tranquilos, que o Armagedão ainda não chegou, por mais bestas que por aí andem.

Isto é, sem dúvida, uma questão pertinente e actual. O evangelista João profetizou o fim do mundo, e garantiu apenas que o Anti-Cristo seria uma besta. Hoje em dia, cercados por todos os lados de criaturas desta espécie, não podemos deixar de nos questionar, de onde virá o nosso fim?

O que nos falta, nos tempos modernos, é um apóstolo que nos ajude a dissecar as bestas, uma a uma, e nos diga que não, que aquela que ali vemos é só uma bestinha, feia mas inofensiva. Talvez, então, deixássemos de recear a besta, e puséssemos finalmente estas bestas todas no seu lugar.

65 – Ofício de defuntos.

A Vânia ficou aborrecida com a minha última crónica. Diz que não gostou, e só leu metade. Para a pôr bem-disposta, e consolá-la, resolvi escrever sobre um tema que eu tivesse a certeza de lhe agradar. Aqui está, Vânia, esta é para ti.

Como é facilmente compreensível, esta actividade rotineira de escrever regularmente uma crónica desperta alguns problemas, sendo o primeiro dos quais, justamente, o problema de escrever regularmente uma crónica. É que isto não é forja de ferreiro, como dizia o velho Eça, e as crónicas nem sempre estão cá dentro, em fila obediente, aguardando o momento de serem vertidas em papel. Às vezes, a coisa não sai mesmo, e pronto.

É nessas ocasiões que o autor dá voltas à cachimónia, dilacerado entre a necessidade de criar, e o vazio de nada ter que valha a pena criar. Foi despedaçado entre essas duas tenazes monstruosas que eu hoje, à falta de melhor tema sobre o qual discorrer, me lembrei de contar a história da minha morte.

É-me impossível ocultar ao leitor sagaz que se trata de uma história fictícia, como bem o comprova o facto de eu a estar a escrever. Não que eu duvide da capacidade dos espíritos para regressarem ao plano material, e narrarem a sua odisseia, mas custa-me sinceramente a crer que o façam num blog, sobremaneira num que se dedica a contar almoços fora de horas.

Não, a história é inventada, e eu não morri, mas façamos que sim. De que terei eu falecido, é algo que ignoro, mas a escolha é vasta. Enfarte, AVC, falência renal ou hepática, enfim, aqui ou além, deserção ingrata e extemporânea de órgão principal e crítico. Seja lá como for, uma peça primordial da máquina fez a sua greve, e o mecanismo parou de vez. Pois bem, e daí?

Bom, e daí, nada. Por todo este mundo, diariamente, são dados peidos com mais significado do que aquele de que se revestiria a minha morte. Nem pode sequer dizer-se que se trataria de uma grande tragédia. Não, o meu passamento, encarado desapaixonadamente, não é senão o mau fim de uma comédia que teve altos e baixos, é como que uma punchline fraquinha, a dar o final desapontador a uma anedota que não deixou de ter o seu mérito, mas que se estendeu demasiadamente, história muito longa para final tão sucinto.

Mas, sigamos adiante. De mortuis nihil nisi bonun, o morto é que é sempre o bom, o gajo porreiro, quanto mais não seja por estar morto, e o meu prezado cadáver não deve ser excepção. Fale-se então bem de mim, que eu mereço. Afinal de contas, neste velório, eu é que sou o gajo que está no caixão, ou não sou?

As notas necrológicas rezarão que se perdeu para o mundo o autor das crónicas da mesa 19, e a empresa, consciente pela primeira vez de que eu existo, no que vem como sempre atrasada, mandará uma coroa de flores. A mesa 19, ela própria, não deixará de ter um comentário simpático, género, Se o Nuno fosse vivo, já esse jarro não ficava a meio. A Vânia terá certamente uma frase amável e sentimental, e continuará depois a servir dobradas e arroz de polvo. A Marta e a Lana, sinto dizê-lo, não darão por nada.

É por estas e por outras que eu prefiro acreditar na próxima vida. Nessa, pelo menos, posso dedicar-me a assombrar o restaurante, e a mesa 19. Se eu já hoje sou o demónio particular da Vânia, imaginem o que poderia ser amanhã, com todas as vantagens de estar morto, a caveira e a mão esquelética, e a sombra gélida, e a baba gelatinosa, e sei lá que mais. A não existir essa possibilidade, vamos sempre chegar a uma conclusão única: andar por cá, ou não andar, vem tudo dar ao mesmo. E, se duvidam, esperem só até estarem mortos, e depois falamos.

1.22.2007

64 – Mediocridade.

Hoje estou aborrecido. A coisa começou logo mal, à hora do almoço, com a Vânia a fazer-nos guerra, e a dizer-me que se recusou a ler a última crónica, a partir de metade, porque não gostou do que lá escrevi. Respondi-lhe com as palavras de Pilatos, quod scripsi, scripsi, e mostrei-lhe cabalmente que tivera razão no que escrevera. Não serviu de nada, e ela continuou azeda. Eu, pelo meu lado, fiquei estomagado com todo o episódio, e saí de lá a maldizer o dia em que me lembrei de começar a escrever as crónicas.

A Vânia há-de por certo perdoar-me, e fazer as pazes comigo. Já tenho de resto escrita a próxima crónica, que lhe é dedicada, e que lhe irá decerto agradar. Fala da minha morte, aliciante que para ela será irresistível. Quem se deixaria, de resto, de comover com a minha morte, quem é que conseguiria esconder uma lágrima furtiva de alegria?

Mas pronto, o facto é que isto hoje não correu bem, e a parte da tarde afinou pelo mesmo diapasão. Aconteceu embrenhar-me numa douta discussão com um colega, versando um livro que trata do decréscimo de qualidade no ensino da matemática em Inglaterra. Eu defendi que também em Portugal, lamentavelmente, se tem verificado o mesmo fenómeno. A apoiar as minhas teses, tergiversei sobre o estudo, no décimo segundo ano, das estruturas algébricas, e da sua importância para a formação matemática. Foi neste ponto que a idiota de uma colega olhou para mim, e disse (cito ipsis verbis, para não me enganar), Mas o que é que este gajo bebeu ao almoço?

Serve esta crónica para falar de mediocridade, do culto persistente e consistente, se bem que talvez inconsciente, da lei do menor esforço, do menor valor, do nivelamento por baixo. Para discutir, tout court, a imparável proliferação de cerebrozinhos mesquinhos, como o desta desgraçada colega, gente que inverte o axioma da natureza que abomina o vácuo, e optam, ao invés disso, por abominar elas próprias tudo o resto, tudo menos o vácuo em que vivem, contentes e felizes. São os que nada sabem, e odeiam ferozmente quem quer que calhe saber algo.

Para esses energúmenos, a regra é simples: em terra de cegos, quem tem um olho é zarolho, e faria melhor em vazá-lo depressa, antes que os outros gajos descubram que anda ali um tipo que não passa os dias aos encontrões às paredes. É que quem não tem asas costuma levar a mal, quando vê alguém voar.

A lógica disto é escorreita, tu não tens nada que saber o que eu também não sei, e pronto. Perdidos nos primórdios do século findo, ficam os tempos em que uma conversa era uma forma de trocar informações, um mecanismo que permitia às pessoas aproveitar os conhecimentos de outrem para, justamente, ficar também a saber o que essa pessoa sabia. Hoje em dia, uma conversa tende a ser mais uma competição com regras viciadas, em que tudo o que é dito tem de ser previamente conhecido, sob pena de se estar um gajo a armar em esperto. E se alguém se obstina em falar de algo que os outros não sabem, é marcado como um alvo a abater, e acabam por lhe perguntar se não bebeu demais.

A primeira vítima disto, evidentemente, é a filosofia. A filosofia costumava ser uma arte que se cultivava, uma forma de estar no mundo, uma súmula da visão que cada um tinha dos vários aspectos da realidade. Cada conversa era uma oportunidade para aperfeiçoar e enriquecer a nossa filosofia pessoal, submetendo-a a novos factos, ou diferentes visões dos mesmos factos. Nos nossos dias, isso tornou-se algo pura e simplesmente inadmissível. Experimente alguém ter em público uma frase filosófica, e logo vai ver como elas lhe mordem. Aceitável, quando muito, é citar autores, germânicos ou gregos, mas jamais discutir que coisa eles defendiam. As pessoas em nossa volta serão capazes de nos tolerar a sapiência, mas jamais nos permitiriam a ideia.

Assim vai empobrecendo o nosso panorama intelectual. Os blogs com uma ideia escasseiam, a conversa do dia-a-dia é reduzida ao mínimo, ao trivial, à imbecilidade, e espaços como a mesa 19 tornam-se cada vez mais preciosos, ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais raros. E eles fazem falta. Ora digam lá, onde é que se arranja, nestes tristes tempos, alguém com quem ter um bom debate sobre o aborto, ou a política internacional? É fácil discutir o euromilhões, sob o prisma da fortuna que traria, mas quem se interessa por analisar o seu modelo matemático, e estatístico? Com quem ponderar, com sérios prós e contras, a finalidade do nosso Universo, ou a hipotética existência de um Deus? Não é que se discutam forçosamente todas estas coisas em volta da mesa 19, mas o espaço para discussão está lá, um espaço sério sem ser sisudo, irreverente sem ser irrelevante, e espaços destes merecem ser preservados.

Em meio à calamidade geral, a hora do almoço é como que uma ilha de repouso intelectual, em meio ao oceano de estupidez que diariamente navegamos, é o justo repouso do náufrago que passa o resto da jornada a tentar calar o que pensa, que é para não ter de passar por bêbado. E, enquanto nos debatemos nesta luta desigual, vem a Vânia bater ainda mais no ceguinho, pretendendo que dissemos mal da comida do restaurante, e sei lá que mais! Ora, adeus! Estava quase capaz de dizer, Beati paupere spiritu, mas acho melhor calar-me, ou ela ainda se zanga mais comigo. O que vale é que a crónica que vem sempre será mais animadora, pois é aquela em que eu morro. E isso é só a crónica 66, imaginem quando chegarmos à 666.

1.18.2007

63 – Harry Potter e a segunda lei da termodinâmica.

Devido à época dos feriados, que parece nunca mais acabar, o autor ver-se-á impossibilitado de escrever atempadamente algumas das crónicas. Estas serão escritas por autores convidados, em sua substituição. A presente crónica foi escrita, a nosso pedido, pela J. K. Rowling. Ou isso, ou foram os cogumelos que eu comi, que estavam marados.

Harry Potter levantou-se da cama, mal o sol nasceu. A cicatriz da sua testa, em forma de relâmpago (a cicatriz é que era em forma de relâmpago, não a testa, o que seria um disparate), a cicatriz, dizíamos, doía-lhe, latejante, pelo que concluiu que tinha voltado a bater com os cornos na prateleira da casa de banho, quando se fora deitar. Ou isso, ou o terrível Voldemort voltava a ameaçar o mundo dos feiticeiros. Levando em conta o gosto a papéis de música, acabou por se inclinar para a hipótese da prateleira da casa de banho, e foi lavar os dentes.

Harry Potter é um rapazinho que descobriu, cedo na sua adolescência, que era um feiticeiro. Já antes tinha descoberto que gostava de levar revistas adultas para sítios privados, onde se entretinha a mexer no seu corpo, de formas impróprias. Descobriu ainda, casualmente, uma certa inclinação pelos Pet Shop Boys, com a qual está ainda a tentar lidar.

Ao fim de vários anos na escola de magia, Harry Potter foi incumbido, pelo professor Dumbledore, de uma missão secreta, de transcendente importância para todo o mundo mágico. Pediram-lhe nada menos do que isto, que se infiltrasse em certo restaurante, e vigiasse a mesa 19. Segundo o ministério da magia, a mesa 19 possuiria um feitiço capaz de destruir o mundo como hoje o conhecemos, ou, em alternativa, fazer subir ligeiramente o preço do camarão. De uma forma ou de outra, seria um mal, que urgia evitar a todo o custo.

O paneleiróide do puto lá se infiltrou, e o seu intelecto de molusco chegou a estudar a questão. A conclusão a que chegou foi que não havia nada a fazer, visto a mesa 19 ser regida, fundamentalmente, pela segunda lei da termodinâmica, aquela que preconiza o aumento inevitável da entropia em qualquer sistema. De acordo com essa lei, a mesa 19 tende inexoravelmente para o caos, e não há nada que possamos fazer sobre isso.

Esta teoria vem confirmar os presságios mais negros da Vânia, e condenar-nos, a todos, a uma dissolução final, extemporânea e indesejada. Pelos ditames da entropia, nós estamos predestinados a transformarmo-nos em nada, aquele nihil fatal da filosofia germânica. Tudo tende para o nada, e a mesa 19 não será excepção.

Mas não, é aqui que nós nos levantamos, e mostramos o que valemos. A professora Sprout esteve lá hoje, con sus muchachos, mas nós não vergámos. O mundo da magia vale o que vale, mas a mesa 19 é um mundo à parte, as nossas varinhas são outras, e não é qualquer um que nos transforma em sapos, não a nós.

A segunda lei da termodinâmica continua a ser válida para sistemas isolados, mas não para a mesa 19. Connosco, a entropia não aumenta, só aumenta a confusão. Isto pode parecer complicado, mas não é. Nós somos diferentes, e pronto.

Hoje, decidimos que amanhã iríamos comer bem, a outro restaurante. Lealmente, avisámos a Vânia, mas ela não gostou. Sentiu o facto como uma traição nossa. A entropia aumenta. So what?

1.16.2007

62 – Os vampiros.

Eu, confesso-o sem rebuço, tive sempre uma certa pecha, alguma queda, pelo tenebroso oculto. Não seria por acaso que a minha sala privada de chat se chamava “cripta”, não é decerto por acaso que o meu outro blog se chama “sepulcro”. É uma daquelas coisas que fazem parte da pessoa, eu gosto de cadáveres ressuscitados, de almas condenadas que não podem ser mortas, de mãos esqueléticas que, animadas de um propósito sombrio, prendem como garras os membros dos vivos. É por isso, de resto, que eu gosto da mesa 19.

Serve esta crónica para falar dos não-vivos, de assombrações danadas, de avantesmas que se erguem à meia-noite, por entre renques de ciprestes, para devorar a carne e o espírito dos viventes. Falaremos sobretudo dos vampiros, energúmenos do Inferno, que só logram viver através da morte de outrem. Se o tempo o permitir, abordaremos ainda os lobisomens, as múmias, e o senhor José, que vende gelados na praia.

Os morcegos têm as suas grutas para habitar, e o vampiro, encarnação demoníaca do morcego em forma humana, não dispensa igualmente os seus redutos. Um desses refúgios, revela-se aqui em primeira-mão, é justamente o restaurante que nos vem ocupando ao longo destas crónicas, aquele onde se situa a mesa 19. Os altares desse templo são variáveis, sendo um deles, justamente, a supracitada mesa.

Há vampiros na mesa 19, e, bem assim, há vampiros em volta da mesa 19. Destes últimos, foi recentemente apontado o caso da mosca do Paulo, Nosferatu em versão artrópode, que diariamente se faz matar, apenas para reaparecer incólume no dia seguinte. Mas há pior, há também vampiros humanos, veja-se, por exemplo, o caso da Lana.

Não é preciso ser nenhum génio para perceber que a Lana é um vampiro. É loura, é eslava, tem olhos misteriosos, que outras provas querem, com mil diabos? Dizem-me o quê, que ela nunca mordeu o pescoço a nenhum de nós? Pudera, também ninguém lhe deu essa oportunidade. Tivesse-a ela tido, e estou certo de que pelo menos um de nós andaria hoje a encontrar-se com ela, noite alta, por entre as lajes pálidas de um cemitério sombrio. Ela traria um vestido branco e vaporoso, de fundo decote e saia reveladora, e beijaria profundamente a sua vítima, com os seus lábios sanguinolentos e carnudos… porra, em que é que eu estava a pensar, para não ter já alinhado nisso?

Há depois a Marta, um evidente vampiro. Ela nem sequer disfarça, com todas aquelas pinturas e batom. Ela bem brinca e galhofa, mas o olhar revela uma certa frieza, que mostra bem que ela não tem menos de seiscentos e quarenta e oito anos, embora esteja muito bem conservada, para a idade. Até já me lembrei de lhe morder o pescoço, mas não me atrevo, ela era capaz de ser mais rápida.

E há a Vânia, claro. Essa está empenhada no projecto global, a honra e glória do templo dos vampiros. Não pretende sugar-nos um a um, o que ela quer é o sangue da mesa 19. É por isso que nos vai pescando, no seu modo bem feminino: puxa primeiro, dá linha depois, agora com um sorriso de aprovação, logo com um esgar de desprezo, o que é preciso é cansar o peixe. Ou, no nosso caso, a carne.

Mas, aí é que os planos dela saem furados. A Vânia não nos pode vampirizar, porque nós, na mesa 19, somos também vampiros. Pior, somos verdadeiros vampiros profissionais, enquanto ela, coitada, não passa de uma amadora.

Entendamo-nos, todos os comensais da mesa 19 têm a mesma ocupação, ao serviço de uma causa que, como tantas outras por aí, não passa de um cadáver adiado, projecto nado-morto, infeliz intento de mandar um foguete ao sol durante a noite, quando não faz calor. E nós, que honestamente deveríamos firmar-nos na nossa idoneidade, e denunciar a infeliz palhaçada, optamos por sobreviver em meio à necrose, chupando a veia exangue da ideia moribunda. Nós somos todos vampiros, e é por isso que nos damos tão bem ali.

Depois, houve aquele dia em que o patrão veio falar connosco. Estava lua cheia, e as suas presas rebrilhavam, alvas, por entre os negros pelos do seu rosto. As garras crispadas… mas, não, isso fica para outra crónica.

1.11.2007

61 – Floribesta.

A mesa 19, às vezes, não mede bem o que diz, nem o volume da voz com que o diz. Ora bolas, às vezes, o tanas, é mas é sempre. Nós somos uns gajos porreiros, mas também somos bastante desbocados. Isso tende, por vezes, a acarretar consequências mais ou menos infelizes.

Foi esse o caso do recente amuo da turma do Harry Potter, que, arrufada pelo tal comentário que até nem era sobre eles, mas que eles julgaram que era, se passou a sentar na outra sala, longe dos selvagens que não respeitam ninguém. Com isso, a nossa sala ficou muito menos divertida, o que foi pena.

Serve esta crónica para propor que se faça algo para pôr fim a esse estado de coisas, e revitalizar a vertente lúdica e recreativa daquele restaurante. Com isto em mente, fartei-me de dar tratos à bola, e cheguei mesmo a desenhar alguns esboços, vendo-me contudo forçado a desistir, quando cheguei àquele em que o patrão punha um nariz de palhaço, e um tutu de bailarina. As ideias eram boas, sem dúvida, mas ainda não era bem aquilo, ainda faltava qualquer coisa.

De súbito, com o brilho ofuscante de um clarão, fez-se luz no meu espírito. A solução ideal, moderna, arrojada, seria transformar aquele banal estabelecimento num restaurante temático. E nem sequer faltava o tema: o que poderíamos fazer de melhor, do que irmos buscar a inspiração a essa divertida e popular comédia, a Floribela?

A coisa até não seria difícil. A Vânia podia habituar-se a usar umas saias compridas, tipo manta de farrapos coloridos, e a dizer coisas como, Super Hiper Mega Ri-Fixe, de cada vez que alguém lhe perguntasse qual era o acompanhamento da carne assada. É claro que necessitaria pelo menos de uma lobotomia parcial, a fim de adquirir o QI da personagem, mas isso seria apenas um pequeno sacrifício. De resto, dizem que os patetas são muito mais felizes.

Em seguida, teríamos de arranjar um Frederico. Isso era capaz de ser mais complicado, visto que não é qualquer pessoa que serve para o papel. Alguém me sabe dizer onde podemos encontrar um jovem elegante, de barbinha bem aparada, com vincadas tendências pederastas, e aquele ar apertadinho de quem não caga há seis dias? E o aspecto intelectual, como é evidente, também é muito importante. Saber contar até dez, por exemplo, bastaria para desqualificar de imediato o candidato ao papel.

Eleitos os protagonistas, haveria que estudar os respectivos papéis. Esses, felizmente, são de uma simplicidade encantadora. Basicamente, a Floribela gosta do Frederico, e o Frederico gosta da Floribela, e por isso, naturalmente, não namoram. Faz todo o sentido, visto que gostam de pessoas diferentes. Há todavia, outros gostos em que são mais compatíveis, como por exemplo, a preferência que ambos parecem manifestar por homens, sobretudo barbudos.

Julgo que há ainda outras personagens, mas confesso que não faço a menor ideia de quem sejam. Estou no entanto convencido de que qualquer vulgar bando de atrasados mentais poderia, com vantagem, representar esses papéis. Talvez se consiga convencer a Vânia a arranjar alguns psicopatas sortidos, que serviriam perfeitamente.

O resto são pormenores, que não haveriam de dar muito trabalho. A ementa, por exemplo, teria de ser toda escrita de novo, de forma a incluir coisas como “carapaus com molho à Floribela”, “dobrada por baixo do Frederico”, “jardineira desgraçadinha”, “bife à pobre com molho de cantigas”, e outros pratos do mesmo género.

É claro que a característica fundamental da Floribela, aquilo que a define, é a enorme alegria que ela sente em ser pobre. É por isso, de resto, que ela não casa com o Frederico, porque, caso o fizesse, ficaria rica, e já não poderia ser alegre. No mais estrito respeito por este espírito, os preços de todas as refeições teriam de baixar bastante, e o vinho passaria a ser oferecido.

E pronto, aqui fica, em linhas gerais, uma ideia que me parece interessante, e facilmente exequível. Os almoços seriam muito mais divertidos, e a afluência ao restaurante aumentaria enormemente. O ponto alto, evidentemente, seria no fim da refeição, quando a Vânia, dançando ao som do “não tenho nada, mas tenho tudo, tudo”, cantaria a lista das sobremesas. A Marta, em pano de fundo, tentaria beijar o Frederico, que se esquivaria, para ir atrás do Vítor. Ora digam-me lá, em que outro sítio, fora da televisão, é que poderíamos assistir a uma novela destas? Só mesmo aqui, com os cumprimentos da mesa 19.

1.09.2007

60 – Do outro lado do espelho.

Estas já habituais crónicas, bem-intencionadas como são, correm por vezes o risco de, inadvertidamente, veicular uma ideia falsa, a saber, que não há quaisquer outros focos de interesse naquele restaurante, para além da mesa 19. Ora bem, isto não é verdade, não inteiramente, pelo menos. Embora nós sejamos, inegavelmente, a vida e alma daquela casa, a atracção principal, the best show in town, há que reconhecer ao respeitável estabelecimento outros pontos merecedores de um olhar moderadamente curioso. É deles, pois, que hoje nos ocupamos.

Serve esta crónica para falar de algumas figuras pitorescas que podem ser vistas no nosso restaurante, e que, não tendo a vantagem e a glória de ser a mesa 19, não deixariam assim mesmo de atrair o olhar interessado e cúpido de uma madame Toussaud, como possíveis e valiosas adições ao seu célebre museu. Em primeiro lugar, sem dúvida, destaca-se o grupo conhecido como “A turma do Harry Potter”.

São três, dois homens e uma mulher, que faz vividamente lembrar a despenteada professora Sprout, mestra de herbologia. Sprout significa rebento, em inglês, e ela parece-se exactamente com algo que rebentou, estando agora indecisa quanto ao que fazer a esse respeito. Nos bolsos, estou disposto a apostar, transporta a sua provisão de mandrágoras. Estas pertencem a uma casta especial, e não gritam quando são desenterradas, só quando olham para ela.

Os dois cavalheiros que a acompanham fazem um bom conjunto com ela, da mesma forma que um acidente de viação faz um bom conjunto com uma auto-estrada. A forma mais caridosa de os descrever é dizendo que, quando o grande feiticeiro Dumbledore executou a magia que lhes daria origem, algo correu terrivelmente mal. Mas não tão mal, infelizmente, que os impedisse de existir, pelo que ali os temos.

Durante anos, temos convivido com estas caricaturas, na bem-intencionada suposição de que estaríamos na presença de boas pessoas, malgré tout. Essa benévola crença desfez-se hoje, despedaçada contra a escarpada muralha dos factos, como onda que, sem deixar vestígios de si própria, vem agonizante morrer na costa. Deu-se que, por alturas da entrada em cena do trio maravilha, o egrégio Cardoso soltou em voz alta uma exclamação, que em nada se aplicava à dita família Adams. Eles, contudo, tiveram o entendimento contrário, sentando-se de má vontade na mesa adjacente à nossa, de onde se puseram a rosnar comentários boçais e despropositados.

A Vânia, essa santa, mais não vendo do que a postura apertada em que se encontravam os referidos brócolos, veio pedir-nos que nos chegássemos mais contra a parede. Nós, na nossa enternecedora equanimidade, isso mesmo fizemos, sem que tal merecesse sequer um aceno de agradecimento, por parte daqueles grotescos. Ainda pensámos desfazer o que tínhamos feito, mas era já tarde.

Durante todo o almoço, meditei tirar um desforço do insulto, algo subtil e elegante, refinado, tal como virar-me para eles, e mandá-los para qualquer sítio escatologicamente escabroso. Deteve-me, porém, o receio. No fim de contas, eles sempre são feiticeiros, e com isso não se brinca. Sei lá se ela não agitava o garfo, entoando, wingardium leviosa, e eu não ficava, de repente, com a cara de um dos amigos dela? Quem é que se vai arriscar a isso? Eu é que não!

Mas enfim, eles lá partiram, presumivelmente para irem transformar gatos em brasileiras de bares de alterne, e nós ficamos enfim sós. Isto é, sós, sem eles. Mas nada ficou perdido, que a maravilha não se esgota aqui.

Não, ele há muito mais, naquele restaurante. Ele há a mulher barbada, corpo de ninfa com cabeça de sargento mexicano; há a miss Piggy, que seria um digno complemento para a nossa mesa de marretas, se não fosse o facto de se parecer tanto, justamente, com a miss Piggy; há grupos sortidos de palermas, como os trios que repartem entre si cinco decilitros de vinho, e se queixam no fim de que têm a cabeça a andar à roda; há o javardo, cavalheiro simpático e muito composto, que não prova alimento algum sem o espalhar previamente pela camisa, e pedir o tira-nódoas; há o eremita, que se senta a um canto sem falar a ninguém, até que, recentemente, nos começou a falar a nós. Tudo isto são pequenos brilhantes, engastados em torno do diamante refulgente que é a mesa 19.

Hoje é um dia especial, o último dia antes do Natal, nos países de Leste. Verificámos, consternados, que a data passava em branco naquele restaurante, não obstante contarem, entre o seu pessoal, com o precioso contributo da Lana, russa de origem. Não lhe bastando ter de passar a natividade longe da família e dos amigos, a pobre vê-se ainda condenada a passá-la por entre a indiferença geral, findas que estão as boas-festas de toda a gente.

Não há muito que a mesa 19 possa fazer numa situação destas, mas alguma coisa estava ao nosso alcance fazer. Oferecemos-lhe uma vela em forma de estrela, prenda simbólica a desejar um Feliz Natal, por parte da mesa 19. Serve esta crónica, entre outras coisas, para exprimir o nosso desejo de que ela a acenda, na ocasião oportuna, e passe de facto um bom Natal. Foi muito pouco, bem sei, mas foi feito de boa vontade. Desta, em todo o caso, é que não se lembravam os gajos do Harry Potter.

1.05.2007

59 – Os velhos.

Hoje, a mesa 19 almoçou um pouco mais apertada do que é seu costume. Deveu-se o inusitado fenómeno à inesperada sobrepopulação da adjacente mesa 18, que, contra o seu hábito, se viu na contingência de acomodar seis fregueses não habituais. Mais precisamente, seis velhos.

Não é nada costume, aparecerem velhos naquele restaurante, mas desta vez lá estavam, e logo seis deles. É preciso que se diga que eles não são muito diferentes de nós, os velhos. Não, são simplesmente criaturas que vivem num mundo diferente do nosso, embora esse mundo calhe ficar precisamente no mesmo planeta. E até já viveram no nosso mundo, todos eles, pelo que nem sequer tiveram de ir para muito longe, quando ficaram velhos.

Dois deles eram mesmo meus conhecidos, de um tempo recente, quando ainda eram novos. São até ambos, por acaso ou não, senhores do meu maior respeito e consideração, e chamam-se ambos João. Quero dizer, cada um deles é que se chama João, não se vá aqui julgar que eles partilham o mesmo nome, à falta de terem um próprio. Não só o nome é o mesmo, mas também me trazem ambos as mais gratas recordações.

Um dos joões foi meu director durante muitos anos, e não me recordo de ter conhecido pessoa mais cordial e humana, mais preocupada com o bem-estar daqueles que dele dependiam. Lembro-me de um dia ter sido chamado à sua presença, após ter cometido o terrível delito de ser apanhado a usar a fotocopiadora de outro departamento, pelo quadrúpede que era o director do citado departamento. Queixa formalmente apresentada, lá compareci, trémulo, maçarico, no gabinete do João, essa figura superior, o Senhor Director. Ele olhou-me, com o seu ar sério, e disse-me, gravemente: Nuno, temos de ter cuidado com esse indivíduo.

Nunca mais esqueci esse sublime Temos, com que o todo-poderoso director do departamento me fazia a mim, pobre verme, cúmplice na sua guerra contra outro director. Hoje, olhando para trás, estou seguro de que se tratou do mais insignificante dos episódios da sua carreira, um que ele dificilmente recordaria, volvida uma semana. Em mim, todavia, deixou uma marca indelével.

O outro João trabalhou lado a lado comigo, durante quatro agradáveis anos. Devo admitir que começámos mal, coisa que me tem já acontecido com pessoas com quem, mais tarde, travei grande amizade. No nosso caso, atribuo o atrito ao facto de sermos ambos possuidores de temperamentos sardónicos, com vincada tendência para o pessimismo, isto para não dizer cinismo. Tais características foram como outros tantos cornos que se entrechocassem, e levámos algum tempo a tornar-nos amigos.

Foi, assim mesmo, uma amizade atribulada. Um certo optimismo, de que sofri na minha juventude, levava-me, por exemplo, a rejeitar a sua frequente asserção de que as coisas eram sempre o pior possível. Hoje, mais maduro, vejo que ele tinha razão, e que as coisas são, geralmente, o pior possível. Como tributo tardio, ou apenas pirraça, copiei o seu hábito de usar, nas reuniões que não lhe interessavam, um nariz vermelho de palhaço. Inteiramente por acaso, acabei por também reproduzir um outro seu costume – o de adormecer durante reuniões chatas.

Esta é a vera descrição, até onde o permite a minha memória, dos dois joões, enquanto jovens. Hoje, que os encontrei velhos, fico muito satisfeito por notar que se encontram como antigamente, e nem uma ruga ou prega adicional os distingue do que eram outrora. Também a idade não é excessiva, apesar de se encontrarem reformados. Porquê, então, chamar-lhes velhos?

A nossa idade é medida, não tanto contra os anos decorridos desde o nosso nascimento, mas sobretudo em relação à distância que nos separa do mundo exterior. Luís Vaz de Camões, se acaso ressuscitasse hoje, seria um velho, não por ter mais de quinhentos anos de idade, mas por se recusar a aceitar as mini-saias e as barrigas à mostra. Também os meus dois joões, caso um génio maligno os fizesse retornar, por um desígnio perverso, à vida activa, seriam incapazes de aceitar pacificamente a realidade actual.

Faça-se, por um momento, o exercício mental de colocar o director humano, simpático e preocupado com os seus subordinados, à frente de um departamento de uma corporação dos nossos dias, e facilmente se compreende que seria mais seguro confiar a guarda do peixe Nemo a uma fábrica de conservas de sardinha. Quanto ao outro João, o cínico, seria como levar o Diabo a um episódio ao vivo da Floribela, só para ele ver o que é o verdadeiro Inferno.

É isso que são os velhos, sobreviventes de um tempo em que o mundo, apesar de tudo, era bom para eles. A reforma, felizmente, ainda é melhor. Vendo-os hoje, a partir da mesa 19, dei por mim a invejar-lhes esse estatuto, essa imunidade ao mundo exterior. É que nós vivemos nesse mundo, e, sem embargo, começamos a sentir-nos velhos, muito velhos.

1.04.2007

58 – Ano Novo, vida nova.

É frequente, quando se trata destas crónicas, que a data da sua criação anteceda, por vezes largamente, a data da publicação. Foi esse, por exemplo, o caso da última, de pendor claramente natalício, mas que só viu a luz do dia em Janeiro. Considerando, contudo, os verdadeiros momentos da génese destes escritos, é este o primeiro a nascer em 2007. É justo, portanto, que seja o novo ano o seu tema.

Dito isto por outro modo, serve esta crónica para falar do Ano Novo, com tudo o que tal coisa acarreta, e, sobretudo, com tudo o que não acarreta, embora por vezes pareça que sim. É uso, por exemplo, associar ao ano novo uma tal de vida nova, mas, ainda Janeiro não vai a meio, e já a tal vida nova se começa a parecer confrangedoramente com a antiga, apenas com temperaturas mais baixas. Em que ficamos, então?

É quase impossível, nesta questão de Ano Novo, deixar de citar uma grande autoridade na matéria, o genial Quino, autor da polémica Mafalda. Numa das diversas tiras que sobre este tema o argentino desenhou, a Mafalda levanta-se da cama, no dia 1 de Janeiro, e pergunta: já acabaram as guerras, e as injustiças sociais? Reina a paz no mundo? As armas atómicas foram abolidas? Não? Então, por que raio é que mudámos de ano?

Porquê, de facto? Se as coisas vão continuar ao estilo de 2006, que, por sua vez, não passou de uma má reedição de 2005, qual será a vantagem de lhe chamar agora 2007? A um nível global, continuamos a viver num mundo cheio de países que Sadam Hussein poderia governar, e nos quais poderia igualmente ser executado. No plano nacional, para além da previsível continuação da nossa descida cambaleante pelos abismos do miserabilismo, só uma coisa mudou: com a entrada de mais dois países na UE, deixámos de ser os mais fortes candidatos ao vigésimo quinto lugar da Europa. Somos agora, em vez disso, os mais fortes candidatos ao vigésimo sétimo lugar da Europa.

Também a mesa 19 não mudou com a passagem de ano, o que, até um certo ponto, é uma boa coisa. Que não mudou é um facto, que eu tive a oportunidade de constatar ainda hoje. Reencontrámo-nos, após o interregno natalício, e no nosso reencontro experimentámo-nos, e achámo-nos todos os mesmos. Isso é bom, volto a dizer, mas talvez não seja perfeito. Olhando para dentro de nós, depois de olhar para fora, sinto que talvez haja espaço para alguma mudança.

Não estou a falar em mudarmos a nossa maneira de ser, não, que Deus nos defenda disso. Estamos muito bem tal como somos, e quem não gostar de ter bolinhas de papel em cima do ar condicionado, só tem de mandar tirar de lá o ar condicionado. O mesmo raciocínio se aplica aos malabarismos com jarros e copos vazios – para que servem esses recipientes, uma vez cumprida a sua função secundária de transportar vinho? Não, a nossa loucura é saudável, e deve continuar.

Ocorreu-me, apenas, que muita coisa importante é dita na mesa 19, sem que jamais veja a luz do dia. Hoje, por exemplo, discutiu-se a justiça, o sistema de saúde, a sua correlativa impunidade, o porquê de nada funcionar neste país, e a razão pela qual nenhum sistema de inspecções pode resolver o problema. Estas conversas são importantes, e deviam ser ecoadas. São importantes porque, com toda a franqueza, acredito que este país necessita desesperadamente de ser salvo, e acredito ainda mais profundamente que nada, nem ninguém, excepto cidadãos imbuídos de um profundo sentido de cidadania, o podem salvar.

Nós, na mesa 19, somos todos cidadãos. Somos mais, se me é permitido dizê-lo, cidadãos conscientes, inteligentes e informados. E parece-me lamentável que muitas das nossas ponderações se percam, entre o bruhaha das conversas sem rumo. Mas, como alterar isto?

Eu não sou, por natureza, um cronista factual, e não se pode esperar que estas crónicas relatem, ipsis verbis, o que é dito à mesa. O ideal seria que os comentários ao blog fizessem, como é usual noutros casos, as vezes de um fórum onde toda a gente pode debater o seu próprio ponto de vista. Este modelo seduziu-me, em tempos, mas rapidamente constatei que os meus apelos a mais frequentes comentários eram tomados, muitas vezes, como um pedido de aplausos e críticas elogiativas. Desisti, consequentemente, dessa abordagem.

Não sei qual seria o modelo ideal. Talvez um blog com diversos autores, onde toda a mesa 19 tivesse a oportunidade de publicar os seus posts. Isso iria, certamente, desencadear o tal fórum de comentários. Fica-me no entanto uma dúvida, estariam todos dispostos a dar-se ao trabalho de converter em escrita as opiniões veiculadas à mesa?

Seja como for, aqui ficam os meus votos para 2007. Gostaria de ver uma mesa 19 mais interventiva, mais virada para fora, mais decidida a deixar a marca do seu pensamento, pelo que este possa valer, no barro que nos rodeia. Minimizando os meus desejos, gostaria, pelo menos, de ler alguns comentários a esta crónica. Isso não deixaria de ser um começo.

Ou então, não. Esqueçam as divagações precedentes, e concentremo-nos na rotina habitual. Janeiro está apenas no início, é preciso não esquecer, e temos mais doze meses pela frente. O almoço já está servido?

1.03.2007

57 – Feliz Natal.

‘Twas the night before Christmas,
And, all trough the house,
Not a creature was stirring,
Not even a mouse…


Assim começa um dos mais célebres poemas de Natal, e pareceu-me também apropriado começar assim esta crónica, nesta época festiva, em que os olhos se acendem de alegria, com maior ou menor voltagem, dependendo dos casos, e os corações se elevam no mais espiritual êxtase, com os previsíveis distúrbios gástricos que tal condição acarreta. Que se lixe, é Natal, tlim, tlão, etc.…

Não há, desde que o imperador Constantino decidiu fazer do cristianismo a religião oficial do império, festividade mais abrangente do que o Natal. Dos pólos ao equador, em toda a parte se pode encontrar um cristão, e em toda a parte se celebra alegremente o Advento. Neste dia, especial entre todos, não se morre como habitualmente, na Somália ou em Bagdade. Não, morre-se festivamente, de uma fome travestida de banquete, ou despedaçado por bombas que ressoam como sinos. É Natal, caramba!

Então, e nós? Bem, nós por cá todos bem, na mesma vidinha que já o Chico Buarque cantava, esperando aumento, desde o ano passado, para o mês que vem. A mesa 19 só não emparelha com o célebre grupo dos “vencidos da vida”, porque se dá o pequeno detalhe de nenhum de nós ser célebre. Fora isso, este foi um ano para levar qualquer pessoa a compartilhar o famoso desejo de Woody Allen, de ser outra pessoa qualquer. Eu, pessoalmente, levei a maior parte deste ano que agora finda a sentir-me como aquele peru a quem desejaram Feliz Natal. Enfim, o ano que vem vai ser melhor.

Mas, será mesmo? Ou não passará tudo de um daqueles truques publicitários, tipo, a única lixívia que respeita as cores? Eu experimentei essa treta no meu peixinho vermelho, e garanto que ele mudou de cor. Além disso, está muito mais morto, e o anúncio não avisava que isso podia acontecer! Será que essa história do Ano Novo é mais um golpe desses?

Pela dúvida, acho que vou já começar a escrever a minha lista de desejos para o Pai Natal. No topo de tudo, claro, está a fortuna do euromilhões, que é para poder mandar certos gajos passear.

Segue-se a anexação de Portugal por um país estrangeiro, como um Emirato Árabe, por exemplo. Isso permitia-me ir trabalhar lá para longe, para o deserto, por um ordenado dez vezes superior. E sempre aproveitava para mandar certos gajos passear.

É claro que não podiam faltar, na minha lista, alguns sacos de explosivos de elevada potência, com que eu pudesse arrasar certos gajos. Quando tivesse acabado de os desfazer, mandava-os todos passear.

Mas, pronto, o Pai Natal não existe, e não há de haver lista que nos valha. Resta-me formular as minhas resoluções para o Ano Novo, às quais espero corresponder.

Estou firmemente decidido a encarar a vida mais a sério, tornando-me assim num elemento útil da sociedade. Conjuntamente, espero conseguir morigerar a mesa 19, que abandonará também os seus hábitos desbragados. Quando todos nos tivermos convertido em cidadãos modelo, honestos e regrados exemplares de vida casta e sóbria, talvez nos juntemos todos, e mandemos certos gajos passear. Ou, então, talvez o façamos ainda antes disso, não vá o resto não vir a acontecer nunca.