5.03.2007

84 – O mundo está perigoso.

É um facto consensual, e amplamente sabido das pessoas que me conhecem bem (os meus amigos, colegas de trabalho, a associação cristã contra a imoralidade, a polícia judiciária, etc.), que eu sou, via de regra, uma pessoa descontraída e bem disposta, dotada de um carisma peculiar, que tem a um tempo a leveza subtil do sorriso da hiena, e a profundidade abissal de uma poça de lama. Os poucos assuntos capazes de despertar as minhas preocupações, se excluirmos temas básicos, como bebidas e sexo, relacionam-se tipicamente com problemas de cariz mundano, tais como, Qual a melhor bebida para tomar depois do sexo, Conseguirei ter sexo com ela, se lhe pagar outra bebida, ou, Não me fará mal ter sexo, depois de tantas bebidas? Hoje, contudo, tivemos uma prolongada conversa em torno da mesa 19, e eu fiquei preocupado.

Falou-se, sobretudo, na legislação que o governo tem na forja, tendo em vista o combate ao tabagismo. O tema, admito-o, tem escassa relação com os que atrás mencionei, excepto pelo facto de que eu sou fumador, e o governo, por via desta lei, está novamente a tentar ter sexo comigo, passe o eufemismo. O que se pretende aqui decretar é algo de muito simples: os fumadores são cidadãos de terceira categoria, párias de um sociedade que vai fazendo o favor de os ir tolerando, na estrita condição de não pretenderem arrogar-se quaisquer direitos. A dar-se tão vergonhosa eventualidade, o assunto será severamente julgado por um júri de cidadãos decentes, isto é, que não fumem. Poderão integrar tal júri todos os cidadãos correctos, independentemente do cadastro criminal, ofensas sexuais registadas contra menores, hábitos de consumo de droga, indigência mental aguda e crónica, ou mesmo serem do Benfica. Não podem é ser fumadores.

Isto é portentoso. O nosso governo, com a ligeireza de quem fuma um casual cigarro (isto ainda se pode escrever, mas é por pouco tempo), faz tábua rasa das lições mal aprendidas de línguas clássicas, esquece tudo o que os gregos tinham em mente, quando cunharam a palavra “democracia”, e arvora-se em todo-poderoso, numa ditadura teológica e paternal. Já não temos o ministro, temos Jesus de novo ressuscitado, proclamando, em adenda ao Sermão da Montanha, Bem-aventurados os que não fumam, porque deles é o reino de Portugal. É urgente mudar as fórmulas oficiais, e substituir “o senhor ministro” por algo como, “o senhor fulano de tal, ministro de todos nós pela graça de Deus”. Está por fim instituída essa coisa nova e espantosa, a democracia de direito divino. Oremos.

Para os que cuidam que exagero, verto aqui, à vossa consideração, o meu modesto caso. Fumador há várias décadas, declaro sem rebuço que sempre fumei pelo meu prazer (e vício), e não me lembro de jamais ter fumado “contra” alguém. Nunca tive qualquer empenhamento, militante ou de outro género, nesse fenómeno a que modernamente se chama o “fumo passivo”. A coisa, de resto, parece-me evidente: eu compro as minhas camisas para as usar, compro a minha cerveja para a beber, e não vou certamente comprar tabaco para que outros o fumem, passivamente ou não. Pode ser uma falha no meu carácter, mas não levo, de facto, a filantropia até esse extremo. O termo “fumador passivo”, aliás, parece-me um galardão extremamente discutível. Basta pensar em expressões como “sujeito passivo”, nos impostos, e “homossexual passivo”, que, no fundo, querem dizer a mesmíssima coisa, excepto que um deles se diverte mais do que o outro.

Mas os talibãs bem-pensantes do nosso país continuam a apertar o cerco. Agora, também me querem proibir de fumar aquele cigarro que centenariamente acompanha a bica, desde que a dita seja consumida em lugar público, seja esse um café, um bar, ou o restaurante onde almocei. O cigarro depois do almoço, porra? O tradicional cigarro depois do almoço? Então, onde é que está o tão apregoado respeito pelas tradições? Não é justo, caramba, assim não brinco. Ou bem que estamos em Portugal, ou bem que não estamos. Tenho de resto a certeza de que me deixariam fumar os cigarros que eu quisesse, caso eu fosse, por exemplo, um simples touro de Barrancos.

Mas dizem-me que o meu fumo incomoda as pessoas em volta. Batatas! E as pessoas que cheiram mal? Alguém já falou nas pessoas que cheiram mal? É que essas também me incomodam, sabem? Mas, se a questão acaso se levantasse, estou certo de que seria tratada com muita delicadeza, até porque algumas dessas pessoas são, bem, como direi, nem por isso brancas, e todo o cuidado é pouco, em temas de natureza tão sensível. Para resolver o problema do cheiro, que nem sequer é “mau”, é apenas “diferente”, temos exaustores, ventoinhas, o diabo a sete. E para o tabaco, isso não funcionaria, também? Talvez, mas seria gastar boa cera com ruim defunto, está já estabelecido que os fumadores são párias, e acabou-se. O fumador é o preto, numa sociedade que fingiu abolir o racismo, mas que se limitou a reciclá-lo.

Outro argumento favorito tem a ver com uma coisa ambígua, um conceito assim montado à pressa, a que chamam, pomposamente, “o custo do fumador para a sociedade”. É usual, nesta vertente, quantificar o que cada cidadão contribuinte paga pelo tratamento de uma doença induzida pelo tabaco. Os fumadores, por norma, ripostam que esse mesmo doente contribuiu, ao longo de uma vida repleta de tabagismo, com uma relevante percentagem do seu vício, para o erário público. O argumento é sem dúvida pertinente, mas fica estranhamente esquecida uma questão muito mais importante. Essa questão, que não me lembro de ter já visto discutida, é a seguinte: desses cidadãos, que abnegadamente pagam o tratamento de um enfisema, ou de um cancro no pulmão, quantos não serão, eles próprios, fumadores. E esses, que têm decerto uma palavra a dizer sobre o assunto, já que também pagam, serão supostos objectar ao tratamento de uma doença que os pode, amanhã, afectar da mesma forma? E, entre os não fumadores, que dizer dos alcoólicos com doenças de fígado, dos obesos por culpa própria que têm problemas cardíacos, dos amantes de praia, vitimados pelo cancro de pele? Devemos ser nós a pagar-lhes os tratamentos? O problema do messianismo é que, geralmente, só funciona bem para os seguidores do Messias.

Mas pronto, isto são voos altos demais, para uma cavalgadura como eu. O mundo está perigoso, e não há nada a fazer. Como dizia o Leonard Cohen, “I’ve seen the future, baby: it is murder”. Passando a assuntos mais íntimos e pessoais, a mesa 19 anda fascinada com um novo mundo, recém-descoberto. Concretamente, andamos a descobrir a Vânia.

Aquela miúda é um universo. Sob o lago plácido que é aquele exterior pacato e discreto, há abismos profundos, turbulências insuspeitas, fundos que só a custo se entrevêem, e apenas de relance. Agora, cada vez que olho para aquele rosto angelical de adolescente tímida, só consigo ver uma vampe, de misteriosas pinturas, cigarro ao canto da boca, blusa curta, a marcar uma distância desdenhosa da brevíssima mini-saia, falando de tudo o que não era para dizer, num vocabulário que a torna apta a conduzir um camião TIR daqui até ao Algarve. Será que ela é mesmo assim, ou é precisamente o contrário disto, ou mesmo ambas as coisas? Serão mistérios que não compete ao homem desvendar, apesar do que dizem os psicanalistas?

Não sei, palavra de honra que não sei, realmente. Mas uma coisa há, que não me deixa dúvidas. É que o mundo está mesmo perigoso.