6.14.2007

85 - Crónica gastronómica.

Hoje, a mesa 19 foi passear. Não, não foi ainda desta vez que a Vânia perdeu a cabeça (ou a recuperou), e nos mandou a todos passear, nós é que decidimos, de moto próprio, experimentar um novo comedouro. Afinal de contas, até gente como nós necessita, vez por outra, de refocilar em gamela diferente da habitual. Essas excursões que nos afastam da mesa 19, de resto, são um pouco como as antigas cruzadas, em que afoitamente se corriam as terras bárbaras, para melhor sentir a glória do torrão pátrio.

Fiel ao meu velho princípio de proteger a identidade dos culpados, não divulgarei nestas páginas o nome da casa onde acabámos por almoçar. Mas, caso aconteça um dia ao leitor entrar num estabelecimento cujo nome o faça pensar numa cidade espanhola, numa gema preciosa, e numa arma de guerra, saberá que é exactamente aí.

A ideia foi-nos apenas sugerida, mas trazia assim mesmo uma poderosa publicidade atrás de si. É que eminentes figuras, como o Zé e o Carlos, refiro-me aqui ao Silva, têm conferido a sua preferência ao local, que por uma longa semana vêm a patrocinar com a sua ilustrada frequência. Foi isto, apenas isto, note-se, que nos foi dito. Não houve aqui pretensões a templo gastronómico, ninguém gabou a excelência da arte culinária, o excelso nome de Brillat-Savarin jamais ecoou nessas conversas. Não estamos aqui em presença, seja em que acepção for, de publicidade enganosa. Mas, será a publicidade enganosa a única que pode levar a uma má escolha?

Muito se fala, nos nossos dias, acerca de publicidade enganosa. É preciso notar, todavia, que há mais publicidade má no mundo, para além da publicidade enganosa. Ainda há poucos dias, por exemplo, notei um grande cartaz de exterior, cujo único objectivo neste mundo parecia ser o de me convencer a tomar determinado laxante, cuja marca me dispenso de aqui publicitar. A composição consistia na imagem de uma grande cama, e em três frases que, em três linhas de letras garrafais, assim bradavam: “Prisão de ventre? Durma sobre o assunto! XXX, o laxante suave, que actua da noite para o dia!

Ora bem, não se pode afirmar que se trate de publicidade enganosa. Com efeito, estando em causa prisão de ventre, o assunto é, claramente, caca, e é extremamente provável que me aconteça acabar por, literalmente, dormir sobre esse assunto, caso cometa a idiotice de tomar um laxante antes de me deitar. Ainda para mais um que, alegadamente, actua “da noite para o dia”. Isto é, vou passar a noite a dormir sobre o assunto, e começo o dia atolado nele. Sempre tem a vantagem de estar quentinho, mas não deixo de estar atascado em trampa.

Mas, dir-se-á, o laxante resolveu o problema. Não, não resolveu. O problema continua lá. É verdade que agora está do lado de fora, mas não deixa de ser um problema. Aliás, nem sequer está todo do lado de fora, continuo a sentir qualquer coisita cá dentro. De resto, no estado em que já estou, porque não… quero dizer, já agora… mmmmm… aaaaaaahhh… agora sim, sinto-me completamente aliviado. E, nestas condições, que diferença faz mais meio quilo de merda a transbordar das calças do pijama? Excelente laxante, este, de facto. Agora só tenho de descobrir um meio de me levantar daqui, e decidir se queimo o colchão ao fundo do jardim, ou se o ofereço a alguma instituição de caridade.

Também no caso do restaurante, a publicidade não foi enganosa, mas teve, ainda assim, o infeliz resultado de nos levar até lá. Não quero ser injusto para com a ilustre casa, pode até dar-se o caso de termos tido algum azar, mas manda a verdade dos factos que se esclareça não ter sido a performance de molde a convocar um “bis”. Caso me coubesse fazer a crítica do estabelecimento em questão, ver-me-ia irresistivelmente compelido a parafrasear aquele crítico de teatro que sobre uma peça escreveu, sucintamente, “Prefiro não comentar, porque, quando assisti ao espectáculo, as condições não eram favoráveis: a cortina estava levantada”.

O problema, creio eu, foram as bebidas. A comida mostrou-se perfeitamente à altura das baixas expectativas induzidas pela ementa, e que o preço módico do menu completo sugeria. Mas o menu completo permitia supor, por exemplo, que o vinho servido com o almoço seria, já não digo melhor do que uma zurrapa, mas pelo menos bebível. O total incumprimento deste item elementar forçou à aquisição de uma garrafa de algo mais relacionado com a vinha do que com a água do mar, por um preço ligeiramente inferior ao da hipoteca do edifício, e lá se foi a economia para o galheiro.

Paciência, pensámos, vingamo-nos nos digestivos. Pobres inocentes que nós fomos, e quão mal sabíamos onde nos estávamos a meter. O espectáculo começou, discretamente, com a simpática jovem que nos servia a obter de todos os bebedores de whisky a confirmação da sua preferência pela marca habitual, apenas para perversamente os informar de que não dispunha de qualquer garrafa dessa marca. Eu, com a confiante arrogância que por vezes nos assola, pedi o meu brandy costumeiro. Não havia, mas ela propôs-me Napoleon, o equivalente restaurativo de um assalto com dolo e recurso à violência. Perante a garantia de que não dispunham de quaisquer brandies correntes, optei por algo de diferente e aventuroso, um bourbon que inopinadamente compareceu à liça. Como um bom palerma que sou, senti-me satisfeito.

Soube-me bem, na realidade, tão bem que me afoitei mesmo a pedir outro. Não havia outro! Como, não havia outro? Pois, é que era a última garrafa, e estava já no fim, mas podiam trazer-me outra coisa. Veio então, para meu espanto, uma garrafa do brandy que primeiramente encomendara, e que afinal já tinham. Que diabo, eu sei bem que tenho esta cara de estúpido, mas incomoda-me quando os outros dão por isso.

Tudo isto, dir-me-ão, pode quotidianamente acontecer, tudo isto acontece de facto, no nosso restaurante habitual. Pois bem, é verdade, e no entanto é diferente. O nosso restaurante é nosso, é o restaurante da mesa 19, e nada do que por lá se passa significaria o mesmo, caso se passasse noutro lado qualquer.

Entramos noutros restaurantes como qualquer cliente, dos que vêem a lista e escolhem, e depois pedem umas coisas, exigem outras, e no fim de tudo almoçam. Mas, no nosso restaurante, entramos como quem volta a sua casa, tão dispostos a exigir o que não é nosso, como a pedir aquilo a que toda a gente tem direito. Não levamos bifes na ideia, mas morangos na alma, os morangos com chantilly do olhar da Vânia, que até na fúria se adoça, os Morangos com Açúcar da juventude esgrouviada e espalhafatosa da Marta, os Morangos Silvestres, misteriosos e secretos, do olhar belo e eslavo da Lana, a provar que nem toda a ambiguidade se esgota no cinema de Bergman. Depois brincamos, e fazemo-nos palhaços para provar que não o somos. No fim da refeição, não bebemos o que o restaurante tem para oferecer, apenas bebemos o que queremos. E saímos, tardios e a galhofar. Não temos sequer a certeza de ter almoçado, mas sabemos que vamos satisfeitos. Talvez não levemos bifes no estômago, mas levamos morangos na alma.

Saímos dos outros restaurantes fartos e alimentados, isso quando calha. Daqui, saímos sempre como calha, e pronto. Mas nunca deixamos de sair bem daqui, seja o que for que nos calhe. Porque a mesa 19, ao contrário do que se poderia pensar, não é um estado do estômago. A mesa 19 é, sempre foi, um estado de espírito.