10.26.2007

90 – Mudam-se os tempos, que farão as vontades?

Ao longo destes aborrecidos milénios em que tem decorrido a história do género humano, pensadores e cientistas têm-se em vão esforçado por dar resposta à mais momentosa das humanas questões: haverá vida depois da mesa 19? Teólogos postulam que sim, filósofos argumentam que não, agnósticos decidem que talvez, e psicólogos variados, com a determinação que sempre os caracteriza, decidem pintar o tecto de bege. Enquanto isso a mesa 19, paulatinamente, vai morrendo de tanto estar viva.

Nada existe no vácuo, e as criaturas só subsistem se inseridas num ambiente adequado. O ambiente é um factor decisivo, como bem podem testemunhar biólogos, ecologistas, sociólogos, e qualquer pessoa que já tenha tentado ter sexo (sobretudo, quando se trata de ter sexo com outra pessoa). No caso do sexo, mais do que em qualquer outro, o ambiente é fundamental para que a tentativa seja coroada de sucesso. Tenho várias vezes constatado, no meu caso particular, que o método infalível consiste numa boa luz ambiente, bem velada, música romântica num volume adequado, uma ou duas bebidas para descontrair, e outro gajo qualquer em vez de mim. Mas o sexo, seja como for, não serve senão para perpetuar a espécie, e eu já fiz a minha parte.

Pois também a mesa 19 nasceu e medrou... (sim, esse trocadilho teve muita piada, mas o texto ainda continua, sabem?), nasceu e medrou, dizia eu, num ambiente acolhedor e propício, e vai agora morrendo da morte lenta dessa acostumada envolvente. A mesa 19 é aparentemente a mesma, embora reduzida ao seu núcleo duro, mas começa a tornar-se uma relíquia, sobrevivente de tempos defuntos, e talvez melhores. Em jeito de reportagem, ponhamos em dia o censo daquele restaurante.

A Lana, como seria sabido dos fiéis leitores destas crónicas, se acaso os houvesse, partiu há meses para outras paragens, trocando covardemente o cuidado dos aparelhos gastrointestinais pela questiúncula das unhas, maneira esta assaz original, e um bocadinho nojenta, de dizer que ela se fez manicura. Mais recentemente, a Marta foi-se também. Cessaram os piu’s a despropósito, nunca mais nos pediram 500 euros por coisa nenhuma, e, se algum miau acaso ecoa naqueles claustros sombrios de luto, é por certo um gato vadio que anda perdido, e que o cão ainda não conseguiu comer. Para completar o descalabro, a Vânia anda com a mania de vir a exercer psicologia, e ameaça deixar-nos também.

Mas, costuma-se dizer, the show must go on. Não chega sequer a ser verdade, mas os patrões daquele emérito estabelecimento parecem julgar que sim, e contrataram já um número suficiente de actores substitutos. Vejamos então o elenco, por ordem de entrada em cena.

Veio primeiro uma brasileira chamada Mara. De modo nenhum me oponho a que ela se chame Mara. Afinal de contas, até as brasileiras se têm de chamar alguma coisa, e Mara parece-me um nome adequado. Sobretudo para uma brasileira. Não sei se já tinha mencionado isto, mas a Mara é brasileira.

A actriz é de gabarito, mas parece-me deslocada neste filme. O que é uma pena, já que ela teria amplas condições para reclamar um Óscar numa produção mais consentânea com os seus dotes, algo assim como “A maldição do cemitério índio”. Na cena crucial do filme, ela surgiria imponentemente envolta na sua manta de missangas, com a devida caracterização, isto é, igual aos outros dias todos, e em voz profunda e rouca preconizaria tragedias sem fim aos profanadores do solo sagrado dos seus antepassados. Duvido, todavia, que a tirada se concluísse com a frase, “A sopa do dia é de feijão verde, e as almôndegas estão muito boas”. Em suma, trata-se de um erro de casting.

Veio depois a Elisabete. Ela que me perdoe a familiaridade deste tratamento, a Elisabete, mas acontece que se trata da única das novas aquisições que me parece adequada. Trata-se de uma jovem mais amadurecida do que é ali habitual, e isto de juventude é como o tricot, quantos mais anos de prática, melhor. Depreendi ainda, pelo seu dedo anular, que pertence a essa imensa maioria das que empenharam a sua disponibilidade no altar dos valores tradicionais, o que nenhum óbice constitui, já que a mesa 19 é fundamentalmente platónica. Os parcos contactos até agora tidos deixam suspeitar uma mente ponderada mas ágil, e um sentido de humor que se recata, mas não se demite. Se é ela a nossa última esperança, e está destinada a ser o nosso futuro, o futuro parece-me risonho. De resto, recordando o hábito americano de baptizar as naves espaciais com nomes de barcos, atrevo-me a reformar o velhinho Enterprise, e presto, temos o nome do filme: “Mesa 19: The next generation – Starship Queen Elisabeth”.

Last, and indeed the least – o Superboy! O Superboy é um rapazinho muito comme ill faut, com excelentes maneiras, de quem não há absolutamente nada a dizer. A nossa recomendação – substituam-no, urgentemente, por um gajo de quem haja algo a dizer! Este, coitado, não passa de uma versão pelintra do Clark Kent, sem a emoção de se transfigurar quando tira os óculos, ou a rebeldia javarda de usar as cuecas fora das calças. Mais uma dose de super-heróis deste calibre, e eu é que vou para lá servir às mesas. Mal por mal, acabava por ser mais eficiente, e sempre dava à patroa um pretexto legítimo para usar as ambulâncias do SNS, tipo três ataques cardíacos consecutivos.

E pronto, é isto que o futuro nos reserva. Quanto ao presente, é caso para dizer que, enquanto o pau vai e vem…

Confrontada com o meu pedido de mousse de chocolate, bem contrário à dieta que tento manter, a Vânia piorou um pouco as coisas, com uma proposta de guarnição de chantili. Trazendo a ominosa sobremesa, fez questão de esclarecer: “está um bocado mole, mas dá para matar o desejo”. Oh Vânia!!! Aquilo é um doce à base de chocolate, não é uma menina de casa de alterne! Qualquer dia destes, nós levamos lá uma menina de casa de alterne, para veres a diferença.

E há outros sinais de degradação por aquelas bandas. Ontem, por exemplo, a nossa sala foi invadida por espanhóis. A sério, uma manada deles, apascentados por uma menina portuguesa, uma coisa redonda, fofinha e esparvoada. Algo assim como uma avestruz, mas sem a elegância do porte, e a forma inteligente de estar na vida. Entre os nuestros hermanos avultava um cornudo, assim careca por dentro e por fora, que se deu ao desfastio de insultar a nossa Vânia, a pretexto de ela não ter percebido um qualquer pedido dele, certamente de cariz homossexual, formulado naquele linguajar de trapos de que os cabrons usualmente se servem. A Vânia, caridosamente, lá lhe foi trazendo as coisas que o capado demandava, mas até aposto que vinham todas moles, e duvido que tenham chegado para lhe matar o desejo.

Ainda bem, pode ser que se desgostem do estabelecimento, e futuramente se vão fazer sodomizar noutro lado qualquer. É que ali não se precisa de clientes mal-educados e abusivos, que se entretém a insultar o pessoal. Para isso, está lá a mesa 19!

89 – Do you understand quand je dis ça?

Há muitos milénios atrás, quando Deus decidiu que era melhor parar de fingir que existia, e deixar o macaco evoluir em paz e sossego, só para ver o que é que aquilo dava, levantou-se, naturalmente, o problema da comunicação. A questão foi lançada a debate no dia em que um dos proto-homens tomou um pernil de dinossauro e declarou, após prolongada reflexão, “Ghrung”. O segundo hominídeo indicou a sua decidida discordância, apontando para o mesmíssimo pernil, ao mesmo tempo em que pronunciava, com estudada ironia, “Gharogh”. Apontou em seguida uma árvore próxima, e silabou, triunfantemente, “Ghrung”. O primeiro macacóide considerou a clara insuficiência do argumento, e sentiu-se obrigado a discordar, o que fez pela via epistemológica de rachar o crânio do opositor com o pernil em causa. Quando o segundo troglodita recobrou os seus debilitados sentidos, contemplou com receio o pernil semi-desfeito, e resmungou submissamente, “Ghrung”. Estava inventada a comunicação.

Desde esta data histórica, ficou em definitivo estabelecida a importância da correcta correspondência entre significante e significado. A própria bíblia viria a demonstrar, no seu divertido mito da torre de Babel, a risível futilidade de pronunciar, à toa, sons a que ambas as partes não hajam acordado conferir um mesmo sentido. O princípio norteou a humanidade durante séculos, e não faltam referências a ele em toda a literatura disponível. Humberto Eco, no livro que nomeia a flor impossível de nomear, estigmatiza a inanidade irrisória do homem que dissesse “bilrribiti”, e Art Buchwald narra o caso de um poeta vanguardista que se não consegue fazer entender sobre o conceito de “castanho”, termo que para ele designa uns biscoitos fenomenais, com sabor a sardinha. Até aqui, portanto, nada de novo.

Mas a idade moderna veio dar uma volta a isto, e acabou por relançar a torre de Babel. Só na segunda metade do século XX, Nixon redefiniu a palavra “honestidade”, a guerra do Vietname deu novo sentido à palavra “vitória”, e, em Portugal, o estado novo reescreveu “democracia” (e também mudou o significado a “ditadura”, mas disso já ninguém se lembra). Mais tarde, o 25 de Abril tomou a seu cargo o sentido da palavra “revolução”, o Copcon o do termo “processo pacífico”, a AR usou “transparência” em acepções que teriam lançado um linguista em demenciais convulsões de riso, e o senhor Sócrates catapultou a palavra “engenheiro” para baixios que a desgraçada jamais conhecera, ao ponto de os actuais licenciados em engenharia preferirem hoje ser identificados por títulos alternativos, do tipo, “construtor mestre e burlesco de sua majestade, a rainha de copas”, de preferência a ostentarem o étimo soez.

Em todos os meios se verifica este movimento desconstrutivo da capacidade humana de comunicação. Em literatura, por exemplo, a coisa atingiu o seu pico com “Finnegans Wake”, proclamado o livro mais ilegível de todos os tempos. Na vida real, o troféu cabe indiscutivelmente à Vânia, com a sua chef-d’oeuvre, “O Anhuca da Mesa 19”. O princípio que norteia aquela pequena mente, já muito frita por anos poli-saturados de psicologia, é tão simples como asinino: se eles já sabem que há um anhuca, posso dizer impunemente o que me der na bolha (e o que dá naquela bolha, santo Deus, não está nem na Divina Comédia, apesar do cuidado que Dante pôs na sua compilação). A imbecilidade do conceito foi-lhe cabalmente demonstrada com um simples SMS, que a deixou a apanhar os bonés que nos eram destinados. Bastou assinar, Anhuca, e era vê-la, qual barata tonta, a perguntar qual de nós era o Anhuca. Qual era o Anhuca? Mas, não era ela que sabia isso? Dããã!

Mas houve um dia em que ela me irritou. É algo que só muito raramente me acontece, irritar-me, e geralmente prenuncia um cataclismo do género daquele que destruiu os dinossauros, ou, pelo menos, que o touro prodigioso de Minos está em vias de encontrar Ísis, a vaca sagrada, em conúbio lésbico com a cabra do Zodíaco, no que será o prólogo agoirento de uma bela chanfana. Teve a distinta lata, a nossa menina, de nos informar, com um daqueles sorrisos irritantes, tão comuns nas gárgulas e nos filmes com gajas nuas a matar gajos amaricados, um daqueles sorrisos que só um picador de gelo espetado na têmpora consegue amenizar, mas teve a lata, dizia eu, de nos informar que o pessoal da cozinha mandava os seus cumprimentos ao Anhuca. O picador de gelo falhou a sua entrada em cena, ela retirou-se, lampeira, e eu rosnei com os meus botões, Isto ainda vai dar merda.

A Vânia dá-se ao luxo de soberanamente ignorar o pacto dos dois macacos primitivos, e usar a seu bel-prazer uma palavra arbitrária, cuja chave nós não possuímos, facto que ela não ignora, já que é ela que se nega a fornecê-la. Pois bem, quem somos nós, brutos e incultos, para argumentar com a sua universitária sapiência? Uma mulher capaz de saber, a um mesmo tempo, o significado de “déspota” e “anal-retentivo”, não é pessoa com quem se discuta de ânimo leve. Sejam então válidas as regras dela: o significado de uma palavra é um assunto particular de quem a usa, e os destinatários que se lixem. Se não perceberam nada, é porque talvez não fosse mesmo para perceberem. Posto isto, a crónica começa aqui.

E acaba, também, exactamente no mesmo ponto. Não é que o texto não exista, é só que eu não o vou escrever. Caramba, até o meu descaramento acaba por ter um limite, e não poderia voltar a encarar a Vânia, depois de escrever aquilo. Mas não é porque seja mentira, uma vez que, pelas regras dela, nada há que seja mentira; o que se diz pouco interessa, interessa só o significado, e esse, não há quem o conheça. Vendo as coisas assim, eu até lhe podia chamar lambreta azeda. O que quer dizer isto? Como já afirmou o bardo imortal, That, my friend, is the question. Mas pronto, ficamos por aqui, e ela que me perdoe por todas as coisas que não cheguei a escrever. Caramba, como é que eu fui capaz de me lembrar daquilo? O pormenor do chantili, sobretudo, foi francamente excessivo!

O último parágrafo é confuso? Não dá para se perceber nada? Pois bem, a coisa é assim mesmo: eu sei o que quero dizer, e os outros, se quiserem, podem entreter-se a imaginá-lo. Será isto chato? É, pois, é sempre chato não perceber. Por muito menos do que isso, até já houve quem ficasse completamente anhuca!