1.16.2008

94 – A vingança da mesa 19.

Muitos têm sido os receios, isto para não lhes chamar esperanças, que estas crónicas se tenham já extinto, vitimadas pela mesma lei que fatalmente afastou o autor das mesmas daquele antro libertino de prazeres virginais. Desenganem-se os que tal supunham, o meu ser físico pode bem ter passado a desfrutar um ímpio cigarro com o café que remata o repasto, noutros tascos que, pela liberalidade, rivalizam com a mítica Corinthum que Victor Hugo belissimamente pintou, mas o meu corpo astral (que é uma coisa assim como os signos astrológicos, porque é verdade, e pronto), o meu corpo astral, dizia, lá arranjará maneira de se fazer presente, no seu todo ou apenas em parte. No caso desta sexta-feira, por comprovada impossibilidade do restante organismo, foi apenas o corpo astral da minha perna esquerda que lá conseguiu aparecer, e produziu o seguinte relato:

O restaurante, narrou a perna esquerda, ou antes o seu corpo astral, continua o mesmo, sem que a ausência dos fumadores se faça sentir, e o letreiro “temos vagas” que a gerência planeia colocar em todos os cruzamentos circundantes é apenas um exemplo da exuberância com que festejam a atmosfera finalmente limpa, graças à lei que, está hoje comprovado, constituiu o maior salto qualitativo de que há memória, desde que convenceram o super-homem a usar as casas de banho, em vez de mijar durante o voo. Ainda recentemente, o restaurante levou a cabo uma sondagem: a Vânia perguntou a todos os clientes do estabelecimento se consideravam positiva a nova lei, e ambos responderam que sim.

Mas voltemos à questão de sexta-feira. Nesse dia, a mesa 19 era constituída por, e passo a enumerar, o Carlos. Elenco reconhecidamente curto, mesmo nos tempos actuais, em que é assim mesmo frequente haver dois convivas, e têm-se até chegado a ver três! Nesse dia era só um, que, sem se deixar desencorajar, tomou a sua posição, e começou a fazer merda.

Há que dar algum desconto, e reconhecer que o bacalhau apresentava, na sua totalidade, menos umas quantas gramas de sal do que, digamos, a mousse de chocolate. Conceda-se o ponto, mas pergunto, será isso razão bastante para levar Carlos, um jovem sensato e comedido, a verter sobre si um copo de carrascão, ao ponto de, nas palavras francas do próprio, ter ensopado as próprias cuecas? Honestamente, penso que sim, mas há que pesar as consequências: quem sabe se amanhã ele não se sujeitaria a que um acto íntimo lhe fosse recusado por alguma amiga, sob razão de ser um acto comparável a lamber um garrafão de vinho? Mas a coisa não ficou por aqui.

Numa notável recuperação daquela compostura calma e decidida com que se deve oficiar um bom almoço, o nosso herói tomou os santos óleos, conhecidos naquelas paragens como galheteiro, e dedicou-se conscienciosamente a aspergir o insípido gadídeo. Nisto, deu-se o suave milagre: aquele guardanapo irritante, que de uso faz as vezes de gravata ao frasco do azeite, tinha desaparecido, evaporado, sumido! O êxtase místico terminou abruptamente, com a descoberta do furtivo pedaço de papel, que boiava regaladamente sobre o prato.

Talvez estas linhas transmitam, erradamente, a impressão de que o Carlos almoçava sozinho. A culpa desse erro será eventualmente minha, pelo menos em parte, dado que posso ter veladamente sugerido essa falsa noção, quando afirmei que ele estava a almoçar sozinho. Pois bem, a verdade é que eram dois naquela mesa: a Vânia, compreendendo sagazmente que a casa precisava mais de clientes do que de empregados, aceitou, a bem do estabelecimento, o convite dele para almoçar. É curioso, nunca a Vânia se sentou à nossa mesa, quando eu lá estava. Quero dizer, aceitou agora o convite do Carlos, e almoçou com ele, mas recusou outros convites no meu tempo, e nunca almoçou comigo. É quase como se fosse por eu estar lá, e… ah, pronto, já percebi… desculpem, hoje estou um pouco lento…

Bem, isso agora não interessa nada. A Vânia almoçou na mesa 19, deixou passar sem comentários as já relatadas aventuras, e só reagiu profissionalmente (refiro-me à profissão de psicóloga), quando, já em tempo de digestivos, o Carlos fez saltar entre as tenazes uma pedra de gelo, que divertiu os circunstantes com alguns hilariantes ricochetes. Antes que ela desse voz ao seu diagnóstico, ele assumiu um ar desprendido e mundano, e tentou deitar a segunda pedra de gelo no copo de vinho, por engano. Algures, nos sexy labirintos do freudiano cérebro da Vânia, rodas dentadas giraram num ranger ameaçador, um pequeno interruptor venceu a obsessão-compulsão de sair dali, e uma ficha saltou, com um nítido ícone representando o Carlos de olhos esbugalhados, roendo uma cenoura como um coelho dos desenhos animados, e emitindo sons inarticulados. Para disfarçar (e também por imperativos fisiológicos), o jovem resolveu então ir à casa de banho.

Para encurtar de razões, a torneira do urinol compadeceu-se com o cheiro a vinho que as calças dele exalavam, e decidiu saltar amigavelmente do suporte, e encharcá-lo todo com o seu jacto. O Carlos saiu daquele almoço como se tivesse apanhado uma tareia no estado líquido. Felizmente, não estava a chover.

A Vânia foi-se também embora. Eventualmente, todo o restaurante acabou por se esvair da sua maré de clientes, que como de hábito partiram rumo aos seus afazeres, um para cada lado, e ainda um terceiro que acabou por ir em frente, mas ninguém chegou a perceber quem era. Na sala deserta, só ficou o corpo astral da minha perna esquerda, estendido sobre a mesa 19.

E eis que de repente, prodigiosamente, a mesa ganha vida, e perambula pela casa. Esgueira-se atrás do balcão, remexe nas prateleiras, acaba por voltar com um compacto maço a que rasga o celofane, numa confusão irritada de pequenos pedaços de plástico. Uma faísca, uma chama, e por fim uma nuvem de fumo que se evola, desenha exóticos arabescos, espalha-se até ao tecto. Em flagrante desrespeito pelas leis que nos regem a todos, pelos regulamentos da ASAE, pelos decretos governamentais – a mesa 19, entregue a si própria, fuma um tranquilo cigarro, e acha graça a tudo isto.

1.02.2008

93 – Fin de Saison.

Mais um ano que finda, bla, bla, e as coisas boas que aconteceram, bla, bla, e também as más, bla, bla, e o ano que vem será melhor, tal como este afinal não foi, apesar do cuidado que tivemos em o começar com os mesmíssimos votos, mas pronto, ainda não foi desta, e também não há-de ser da próxima, mas fica na mesma desejado o feliz ano novo, embora bem lhe baste que além de ano seja novo, já é preciso ter lata para ainda lhe estarmos a pedir que seja feliz, o que vale é que isto de desejar ainda vai sendo uma coisa bem diversa de prometer, ou então ainda acabaríamos todos presos. Ou eleitos, se o diabo assim se lembrasse de escolher. Seja como for, e dê lá por onde tiver de dar, Feliz Ano Novo a todos.

Nos blogues, bem assim como nos telejornais, não choca nem destoa que se dediquem os espaços desta época a um resumo, em jeito de balanço, do ano que se despede. Pois façamos também aqui um balanço, não do banal e sobejamente conhecido 2007, mas de algo mais raro, e possivelmente menos documentado. Nada menos do que isto, uma era que finda, e de boamente confia aos bons cuidados do tempo os seus ouros e os seus verdetes, para que de ambos ele faça a estatuária que a há-de imortalizar. Em traço amplo e claro, com pincel descomprometido e jovial, dediquemos aqui um amigável in memoriam à mesa 19.

Cumpre salientar, para que não surdam indesejáveis mal-entendidos, que a mesa 19 não acabou. Ela ainda lá está, rija e duradoura tábua, sobre as suas pernas inflexíveis, e em sua volta ainda se sentam, e continuarão a sentar-se, muitos dos egrégios convivas que, ao longo destes anos, compuseram essa estimável congregação de almoçantes. Mas nem todos lá estarão. Talvez se continue a voltar lá todos os dias, talvez os que faltam não façam realmente falta, mas acredito que não será meramente uma continuação do mesmo, mas o início de algo diferente. Talvez melhor, sem dúvida, mas certamente diferente.

Gostaria de poder dizer que a culpa desta mudança cabe à nova lei sobre o tabaco, mas isso não seria inteiramente verdade. A nova lei, neste caso, apenas ajuda a tornar oficial o falecimento de algo que já não estava realmente vivo, apenas mal enterrado. Muita gente que compôs estas páginas, tanto sentada como sobretudo de pé, tem vindo desde há tempos a deixar de andar por lá, e ultimamente até a Vânia, musa e alma mater destas crónicas, tem tido outra agenda, e só esporadicamente lá aparece, e quando o faz é como visita: está lá, até atende, mas já não pertence. Nem pertence a nós, e nós também lhe vamos deixando de pertencer. Lentamente, pouco perceptivelmente e, de uma forma talvez natural e inevitável, aquilo foi-se tornando apenas num restaurante.

Desmentindo o que afirmei no início desta crónica – prerrogativa indiscutível, e talvez única, do cronista – não vou aqui fazer qualquer resumo de tudo o que foi nestes últimos anos a mesa 19. Se as 92 crónicas que antecederam a presente não são bastantes para tal, não sei então o que o será, mas não é decerto mais uma que vai remediar o problema. Também me recuso a escrever aqui um epílogo dramático e pungente. Caramba, nem o restaurante vai ser destruído por um cometa, nem eu vou emigrar para Timbuctu. Hei-de continuar a almoçar em muitos sítios, incluindo, se deus me guardar vida e frescura de alma, na mesa 19. Talvez o faça muitas vezes, que talvez me pareçam poucas. Que talvez aos outros pareçam demais. Que talvez à casa pareçam o retorno de todas as pragas bíblicas, mas o que se há-de fazer? Apenas como uma dica, a Igreja Católica Apostólica, nossa Santa Madre, inclui o convívio esporádico com a minha pessoa na sua brochura intitulada, “300 maneiras de ganhar o céu, apesar dos meninos do coro”. Penso que a recomendação se manteria, mesmo que a brochura começasse por “3 maneiras…”, ou nem que fosse uma. A utilização repetida da palavra “brochura” neste aparte, já agora, é inteiramente acidental.

Mas também não cometo a hipocrisia de afirmar que apenas troco um restaurante onde não posso fumar por outro onde continuo a desfrutar dessa liberdade. Isso não é verdade, na medida em que omite que aquele não é para mim, simplesmente, “um restaurante”. A mesa 19 foi muito mais do que uma experiência restaurativa. As ligações que criei com todas as pessoas que passaram, ou estiveram relacionadas com a mesa 19, transcendem em muito a mera patanisca de bacalhau, ou o cheirinho acrescentado ao digestivo, e não se vão dissolver se deixarmos de almoçar juntos. A Vânia, com quem começámos por brincar, depois fomos conhecendo mais a sério, sobre quem eu escrevi tantas coisas que sentia, e deixei tantas mais por escrever. O Emplastro, sobre quem escrevi coisas que a Vânia jamais me perdoará, senão pela veracidade, pelo menos pelo resultado final. Os colegas que passaram a amigos, frase banal que me dispenso de aprofundar, sob temor de a indevidamente banalizar, por via de tanas banalizações que correntemente passam por reflexões profundas. E também, sejamos honestos, a patanisca de bacalhau, e os cheirinhos, coisas que ali se não chamam comida e bebida, mas simpatia e amizade.

Hei-de lá voltar em 2008, uma vez ou dez, ou trinta, ou todas. Ouso até imaginar que estarei de certa forma lá, mesmo quando não estiver. Sempre que alguém perguntar o que fica esse resto a fazer na garrafa, será um pouco de mim quem faz a pergunta. Quisesse eu ser dramático, e proclamaria, tenebroso e cavo, Quando um de vós arrotar a despropósito, aí eu estarei, no meio de vós. Preferindo ser pragmático, limito-me a constatar que a minha pessoa, completa em todos os seus acidentes, inclusivamente o hábito de fumar após, e mesmo durante, as refeições, deixou de ser tolerada em alguns estabelecimentos, pelo que, naturalmente, me passo a restringir aos que ainda me permitem manter os meus hábitos. Os factos são estes, e o resto é novela. Mas, as novelas são giras.

A Vânia sugeriu, na amenidade de uma conversa quase fraternal, que não iriam sentir de forma alguma a minha falta, o que me parece razoavelmente lógico. Estamos só a falar de negócios, porque, ali dentro, um cliente vale tanto dinheiro como qualquer outro, e amigos é coisa que podemos continuar a ser em qualquer lado. E isso não vai mudar. A Nicole, pelo seu lado, disse-me taxativamente que ficava muito contente por se ver livre de mim. O que só prova que, aconteça o que acontecer, há sempre alguém que fica feliz. Neste caso, calhou ser a Nicole. Eu, pelo meu lado, fico mais descansado.