2.06.2007

73 – Razão.

Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.

És um idiota, disse-me recentemente uma pessoa amiga, presumivelmente com alguma intenção construtiva. És um idiota, repetiu, e não tens razão nenhuma. A realidade factual não se conseguiu pôr à altura das eventuais intenções construtivas, e, da diatribe, sobejou apenas o juízo de valor, eu sou um idiota, e não tenho razão nenhuma.

Isto de ser um idiota não me preocupou em demasia. Eu próprio, seja como for, já há muitos anos acalentava essa suspeita, pelo que a sentença ferina não me causou mossa de grande monta. A questão de não ter razão nenhuma, no entanto, deu-me em que pensar.

Tenho pelo menos o conforto de não estar só, neste deserto de não ter razão nenhuma. Já há muitos séculos o grande Catão se queixava do mesmo, e também não lhe ligavam nenhuma. A frase que abre esta crónica, traduzida (para todos menos um, como diria o Catarino), vem a significar, “A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida a Catão". O homem era de facto um paladino das causas perdidas, e via-se com frequência acusado de não ter razão. A coisa, tanto quanto se sabe, nunca o incomodou muito.

Nestes dias que antecedem o famoso referendo, um tema que está na berlinda é a liberdade de escolha. Fala-se, ad nauseam, dos direitos que detém a mulher que concebeu um filho, e da sua liberdade de o não gerar. Discutem-se com calor pontos delicados, como a diferença subtil entre a liberdade de escolher matar um filho, e a liberdade de escolher não o conceber. Mas começa a parecer-me, a mim, que todo este festival de liberdades se esgota na paridura. Se não é isso que está em causa, não se fala mais de liberdade, e pronto.

Serve esta crónica para defender a liberdade de escolha, mesmo nos casos, bem distintos do aborto, em que essa escolha que se pretende tomar em liberdade é impopular, ou, no mínimo, raras vezes debatida, pelo que não dispõe de uma falange de apoiantes, publicamente assumidos. Está neste caso, por exemplo, a escolha, feita com objectividade e consciência, de não se ter razão, mesmo nenhuma.

Por certo que o direito a não ter razão é bem mais defensável do que o direito ao aborto por opção. Tal como no caso da interrupção voluntária, tem os seus casos de isenção excepcional, como sejam os imbecis, os doentes mentais, todos aqueles que não têm, plausivelmente, aquele mínimo de condições exigível para se ter razões. Também se aplica a este direito um dos argumentos mais queridos dos liberais, “Quem é que nunca o fez?”. Bem, no caso do aborto, julgo que muita gente, mas não creio que haja alguém capaz de se gabar de nunca se ter visto na situação de não ter razão.

Nunca Catão se preocupou com as razões dos outros. Ele tinha as suas próprias razões, e é irrelevante discutir se tinha ou não razão. Defendeu bravamente os seus pontos de vista, até que o mataram, mas isso foi só para lhe darem razão. Bem diz o povo que, neste mundo, quem tinha razão era o outro, e o outro é sempre o morto. Desde esse dia, nunca mais Catão deixou de ter razão.

(É importante não confundir Catão com Catilina, a quem um dia perguntaram, “Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?”, o que vem a dar, em língua,”Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”. Isto deu origem a um étimo, Catilinária, que mais tarde degenerou em Calinada).

O fundamental, aqui, é a liberdade. Na minha opinião – e há liberdade de opinião, ou assim espero – na minha opinião, dizia, não deveríamos estar a referendar o mero caso da interrupção voluntária da gravidez, mas sim a questão mais vasta da liberdade de escolha, fundada, evidentemente, na liberdade de crença. Afinal de contas, faz algum sentido que uma mulher tenha a liberdade de matar o seu filho, fundada na crença de que ele não é ainda uma pessoa, e me seja negada a mim a liberdade de matar o meu chefe, que eu creio sinceramente que é uma abóbora assassina, vinda de Marte para me lixar o juízo?

Como diz o professor Martelo, assim não! Conceda-se livremente o direito de abortar, seja às 10 semanas, seja logo após o nascimento – estou convencido que, para o feto, não fará grande diferença –, mas não me privem a mim do direito de faltar sistematicamente ao emprego, porque acredito firmemente (e, de igual modo, sem qualquer razão válida), que o meu patrão é uma grande tangerina azul, e eu sou alérgico a tangerinas dessa cor.

A minha tese é absurda, mas não deixaria de colher argumentos a seu favor, caso fosse a debate público. Espero que toda a gente concorde que a lei deverá ser mudada, no dia em que a liberdade de ser irrazoável, inimputável e inconsequente for favoravelmente referendada pela maioria da população. Nessa altura, talvez se calem por fim com a história de quando um feto é uma pessoa. Tenha a idade que tiver, ele ou é meu, ou não é. Se não for, a minha responsabilidade é nula. Se for, posso fazer dele o que quiser. De uma forma ou de outra, mato-o, por ser meu filho ou por ser meu chefe, o que é que isso interessa?

Ou será que acham que eu não tenho razão? É que, se quiserem, também podemos falar sobre isso.

P.S. A mesa 19 também às vezes não tem razão, e isso não nos incomoda. Mesmo quando nos falta a razão, nós cá temos as nossas razões.

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