2.14.2007

75 – Um peixe chamado Vânia.

Almocei hoje na mesa 19, mas confesso que não sei dar conta do que por lá se passou. Não se deve isto, como alguém poderia supor, a qualquer imoderação da minha parte no uso de bebidas espirituosas, mas tão-somente ao facto de lá ter chegado já em tempo de digestivos, pelo que me limitei a comer e pagar a conta (dispensava bem essa última parte, mas adiante). O almoço foi salmão, o que me deu alguma matéria para pensar.

Serve esta crónica para falar do salmão, das matemáticas a ele associadas, e dos perigos e consequências que tudo isso acarreta. Compreendem, tudo começou há dois dias (dois dias úteis, quero eu dizer), quando constatámos, com gáudio e regozijo, que a ementa nos propunha, em rodapé, salmão grelhado. Compreender-se-á facilmente o nosso alvoroço, quando eu explicar que pouco peixe se pode usualmente encontrar naquele restaurante, sendo esse pouco de um género que nos levaria a hesitar antes de o oferecer a um gato esfaimado, pelo fundado receio de deixar o bichano seriamente ofendido. Achar ali salmão foi, portanto, uma festa para nós.

Consequentemente, imagine-se a nossa consternação, o pasmo e a dor que nos assolaram a alma, ao sermos informados de que havia, precisamente, uma posta de salmão! Como se dava tal fenómeno, uma única posta, exacta e aritmeticamente contada, quando éramos nós os primeiros clientes a chegar? Convocada de imediato a Vânia, interrogámo-la com desassombro. Aprendemos então que a gerência tinha tido o cuidado de adquirir, para prover àquelas centenas de almoços, precisamente três postas do dito peixe. Não se dando por inteiramente satisfeitos com tal medida, contudo, trataram ainda de comer duas delas, antes de abrir as portas ao público.

Como é natural, censurámos severamente a Vânia, por ludibriar desse modo soez os nossos legítimos anseios e expectativas. Intimámo-la, carinhosa mas firmemente, a que não voltasse a anunciar em lista um prato, quando para o satisfazer dispunha apenas de um parco exemplar do manjar proposto. A moça pareceu contrita, e prometeu emendar-se. No dia seguinte, o salmão voltava à lista, estando desta feita disponíveis duas postas.

A princípio, tomámos isto como um progresso, modesto mas estimável, e digno de encorajamento, mas soubemos depois que, desta vez, não tinham sido compradas três postas, mas apenas duas, tendo-se a casa, todavia, abstido de as comer! Todos abanámos a cabeça, num gesto de comiseração, e evitámos comentar o facto.

A nossa sensação de que nem tudo estava bem deve, no entanto, ter sido pressentida, e hoje (terceiro dia, portanto), dispúnhamos já de quatro postas de salmão. Foi aí que se fez luz no meu espírito, e compreendi tudo: eles decidiram passar a comprar o peixe numa progressão geométrica!

A ideia, devo admiti-lo, deixa-me um pouco inquieto. É certamente agradável saber que, nos próximos três dias, contaremos com oito, dezasseis, e trinta e duas postas, respectivamente. Isso é tudo muito bonito, mas, e depois? Quero dizer, eles saberão realmente onde se estão a meter, caso insistam em seguir por este caminho?

A coisa é do mesmo género daquela história que se conta sobre o inventor do xadrez, o qual terá pedido ao rei da Pérsia, como recompensa, um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda, quatro pela terceira, e assim por diante. O rei achou o prémio modesto, e rapidamente empenhou a sua palavra. Feitas as contas à dívida, descobriu-se que seria necessário dar ao inventor toda a produção mundial de trigo, durante vários anos. E eram apenas grãos de trigo, que são assim umas coisas a modos que muito pequeninas. Imaginem a coisa, agora, com postas de salmão.

Se a aritmética me não atraiçoa, o décimo segundo dia brindar-nos-á com duas mil e quarenta e oito postas, o que obrigará cada cliente a comer, pelo menos, uma dezena de doses. Nos dias seguintes, os números disparam, tornando economicamente inviável que se almoce, em toda a área metropolitana de Lisboa, qualquer coisa que não seja salmão. No vigésimo dia, o governo aprovará uma lei, obrigando todo o sector da construção civil a usar postas de salmão, em vez de tijolos. Dois dias depois, os PDM serão revistos, no sentido de aumentar o volume de edificação permitido, a fim de escoar o excesso de matéria-prima.

As sobras da cozinha, ao vigésimo quinto dia, serão ofertadas ao Ministério do Interior, que as usará para construir, ao longo da nossa costa, um vasto atol artificial, que tornará a área de Portugal continental no quádruplo da de Espanha. Com os restos dos dois dias subsequentes, constroem-se as primeiras vias rápidas de ligação entre o continente, e os Açores e Madeira.

Neste meio tempo, George W. Bush interessa-se pela ideia, e compromete-se a livrar-nos do excesso de produção, como contrapartida pelo uso da base das lajes para torturar prisioneiros de guerra. No Pentágono, vivem-se dias de entusiasmo, face à perspectiva de alienar toda a frota da U.S. Navy, e passar a lançar ataques de tanques, directamente a partir da baía de Miami.

Passado um mês, o restaurante abre falência, por falta de fundos para comprar mais salmão. Na mais recente versão do Atlas Mundial, ainda no prelo, poderá ler-se que o nosso planeta é constituído por uma quarta parte de terra, três quartas partes de salmão, e a ribeira de Barcarena.

E quanto à mesa 19, que começou tudo isto? Bem, nós somos um bocado do contra, e, para dizer a verdade, andamos a pensar seriamente em deixar de comer salmão. Só falta agora decidir uma coisa, qual o prato que vamos passar a exigir? Eu voto no faisão trufado (sem frango).

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