7.18.2007

86 – Cambada de Anhucas.

Já o filósofo afirmou um dia, na sua basta sapiência, que tudo o que é bom tem um fim, menos a salsicha, que tem dois. Pois também eu, após três semanas empregadas a demonstrar que não faço realmente falta, e que bem me podiam dar já a reforma, regresso ao trabalho. Volto, mas, que fique bem entendido, volto contrariado. Enfim, as férias acabaram, e as crónicas estão de volta.

Existe uma certa escola de pensamento que mantém e sustenta, com toda a seriedade, que a mesa 19 continua a existir, mesmo na minha ausência. Eu não estou bem certo de que isso seja verdade, assim como também não sei se uma árvore que cai na floresta faz ruído, quando não estou lá para a ouvir, mas, pela dúvida, sempre vou dizendo que sim a ambas as teorias. Afinal de contas, até é possível que o mundo não gire de facto à minha volta, se bem que não perceba à volta de quê gira ele, nesse caso. A dar crédito à mencionada hipótese, noto que correm temerosos rumores, sobre portentosos sucessos, que se terão dado na mesa 19, durante as minhas férias.

To cut a long story short, a mesa descobriu que as cozinheiras, qual sapateiro que, desdenhando a chinela, se pusesse a fazer chapéus, haviam tido a ousadia de roçar os seus grossos dedos, profanos das frituras e do peixe por amanhar, nas fímbrias do elevadamente sagrado, permitindo-se colocar alcunhas aos membros da mesa 19. Nem mais, alcunhas! Ora, digam-me lá, pode isto admitir-se?

Dirão alguns, e sem mentir, que também nós pomos alcunhas a outras pessoas. Apontarão mesmo, e sempre dentro da verdade, que passamos efectivamente o tempo todo a fazê-lo. Quem não esqueceu ainda a Miss Piggy, a turma do Harry Potter, os Pet Shop Boys, verá nisto um poderoso argumento – e estará todavia errado.

Todas essas alcunhas se referem a uma única qualidade de pessoas – os outros clientes. E está certo pôr alcunhas aos outros clientes, tal como pisar-lhes os pés, ou dar-lhes um tiro. Porque eles são “os outros clientes” – e não tem nada que haver outros clientes por ali. Nós já não somos a mesa 19 daquele restaurante, aquilo é que é o restaurante da mesa 19. E os “outros”, que se aguentem.

Nós nunca pusemos alcunhas às pessoas realmente importantes ali dentro, nomeadamente aquelas que nos proporcionam as nossas refeições. Já alguém nos ouviu referir, com menos respeito, a Transmontana aos Saltos, a Manicura Comuna, ou a Lady Frankenstein dos Piercings, com o seu Cabelo Psicologicamente Oxigenado? E mesmo as próprias cozinheiras, que, com os seus barretes, fazem lembrar um cesto de couves-flor – e não é por causa dos barretes? Mas, quando é que eu lhes chamei isso? Hein? Quando?

(As alcunhas constantes do parágrafo anterior são apenas exemplos de coisas que eu não disse, e não devem ser tomadas como algo que eu tenha efectivamente dito. Isto explicado, continuemos).

Mas a Vânia, muito pressionada, acabou por partilhar connosco uma parte daquilo a que ela chama “ A Verdade” (o termo, como é sabido, tem diversas acepções, e pode até ser tomado num sentido jocoso). Segundo ela, haverá apenas duas alcunhas. Uma, a designar o grupo, “Os Irmãos Metralhas”. A outra designa um indivíduo em particular, “O Anhuca”. De que indivíduo se trata, eis o que ela se recusa a desvendar.

E pronto, eis-nos lançados em consternada perplexidade. As perguntas, inquietas, sucedem-se em catadupa: Qual de nós é o Anhuca? Serei porventura eu o Anhuca? Qual a razão, o que foi que os levou a decidir que eu era um Anhuca? Porque não o Rui, que é muito mais Anhuca do que eu? E, acima de tudo, o que raio é um Anhuca?

O que será, com efeito, um Anhuca? Dos vários dicionários consultados, nenhum autoriza o uso de semelhante termo, e o Google não se mostra muito mais prestável. O étimo é de facto empregue num ou noutro sítio, mas sempre por gente que não parece sequer saber o significado da palavra “déspota”. Oh, desespero, o que será um Anhuca?

Debalde a minha mente se debate em desconstruções linguísticas. O termo tanto parece evocar Anúbis, o cabeça de chacal dos velhos egípcios, como uma espécie de cruzamento bastardo entre “Anho” e “Ranhoca”. A melhor leitura a que consigo chegar é, “Ser superior, verdadeiro deus na cama, que vale que os vermes valeriam, se acaso houvesse vermes feitos de merda”. Paira no ar, por outro lado, uma sugestão de que Anhuca significaria, simplesmente, uma pessoa estúpida. Nesse caso, somos todos potenciais candidatos a Anhucas, basta ver-se há quantos anos temos vindo a patrocinar aquele estabelecimento.

Vivemos, é claro, num país livre, e toda a gente tem o direito de se referir sejas a quem for, usando qualquer espécie de termos, incluindo palavras inventadas. Até mesmo eu próprio, quantas vezes tenho visto a Vânia abrir a gulacha para um cliente, e aguardar, expectante, que ele lhe peça algo. Depois de o ter schmorfado, retira-se, com a boca cheia de goshma, mostrando bem as suas malamankas. Poça, assim também eu, e nem sequer falei no rabo dela.

(Nota: gulacha=ementa; schmorfar=escutar; goshma=sorrisos; malamankas=boas maneiras. Acho eu… Escusava-se, no entanto, o uso da palavra rabo).

Não, deixem-se lá dessa treta do skánevassefaziaskaski. Se há mesmo que nomear a besta, de que adianta perder tempo a chamar-lhe “animal irrequieto”? Nada, os indícios apontam para várias alcunhas, uma para cada um de nós, como é de resto justo (somos clientes antigos). Esta história de haver um só, individualizado, um Anhuca, não nos convence. Se foi de facto apenas isto que as cozinheiras fizeram, apelidar um de nós de Anhuca, tanto pior! Lá se foi a nossa última esperança de as ver, finalmente, fazer alguma coisa bem feita.

Quanto à alcunha colectiva, Os Irmãos Metralhas, confesso que a referência me escapa. Poderemos possivelmente lá chegar, desde que passemos a usar mascarilhas pretas, camisas cor-de-laranja, números tipo 162-621, colados no peito, e ostentemos um ar estúpido, só que isto não explica de onde surgiu a ideia. Mas pronto, sejamos, assim mesmo, os Metralhas. Isso faz do pai Pinto um coronel Cintra, sendo os dois Vítores o Pateta e o Mickey. O emplastro, rondando nas trevas, é o Mancha-Negra, e as cozinheiras vêem-se, por fim, remetidas ao seu verdadeiro papel – são a Clarabela, e a Clara-de-Ovos.

Mas, sendo assim, haja pelo menos democracia. Que a todos seja dada a liberdade de alcunhar seja quem for, sem razões ou explicações. Nesse espírito, eu desde já instituo a alcunha que sempre me pareceu mais adequada para aquelas três meninas: Pirolitos Sem Bola. Assim mesmo, sem quaisquer razões ou explicações. Trata-se de uma alcunha adequada, e, tal como a nossa, ninguém sabe muito bem porquê. O facto é que elas parecem isso mesmo, coisa que se não pode já dizer sobre os Anhucas.

P.S. Uma pergunta se impõe, hors de concours. Terá esta fantasia, das cozinheiras que se permitem ter opiniões sobre nós, origem num qualquer trauma profissional? Afinal de contas, falamos aqui de pessoas que, dia após dia, cortam e estripam peixe, retalham porco, fatiam vitela. Poderá este domínio continuado sobre animais que lhes são superiores, tê-las levado a ilusões de grandeza? Quem sabe? De uma coisa estamos certos, a Vânia sabe. É que ela é doutora, e sabe muitas coisas, só que não as conta. É também um bocado Anhuca, mas isso, reparem, é segredo. A sério, foi a Vânia que disse.