11.14.2007

92 – A queimar borracha...



Tivesse eu os dotes literários, a fluência no domínio da língua pátria, a agilidade dúctil de expressão que é o apanágio dos grandes vultos das nossas letras, e faria desta crónica uma homenagem a essa coisa tão bela e tão versátil, a língua portuguesa. Na falta de tão ambicionadas qualidades, seria mais justo fazer como a serpente, que rasteja porque não sabe voar. Seria, mas eu é que não me resigno à poeira desses trilhos ásperos da mediocridade, e decido, com dotes ou sem eles, fazer desta crónica, seja lá como for, uma homenagem a uma coisa também bela e versátil: a Vânia. Ou, melhor ainda, uma homenagem ao uso distinto e peculiar que a Vânia, essa bela e versátil jovem, faz da bela e versátil língua portuguesa. Talvez não saia daqui coisa muito bela, mas aposto que será bastante versátil.

É possível que eu não tenha ainda mencionado isto mais de 9 ou 10 vezes, mas a Vânia é psicóloga. Ou seja, é mais uma daquelas infelizes criaturas que, por imperativo profissional, se vêem forçadas a encarar o mundo pela retorcida perspectiva desse perverso doutor austríaco que um dia resolveu todos os problemas da raça humana com uma simples palavra: sexo! Desde essa data memorável, tudo na nossa vida se simplificou. Um indivíduo anda a marrar com a cabeça nas paredes porque perdeu o emprego, a mulher empalitou-o, e os filhos metem-se na droga? Isso são detalhes que facilmente se resolvem, a questão de fundo é o sexo. Preciso de cortar a perna que gangrenou, por ter um dia espetado um prego num pé? Ora, o prego é evidentemente um símbolo fálico, o que faz disto um problema de profundo cariz sexual. Um petiz leva um ramo de flores à sua mãezinha, no seu aniversário? Pois, pois, o que o puto quer é saltar-lhe para cima, e nem admira, que a senhora ainda é jeitosa. Ou eu, por exemplo, enquanto me sento naquele restaurante, levo o tempo todo a olhar para as meninas que entram? Não tem dúvida, logo o bom doutor esclarece que eu estou é a pensar no truca-truca! Bem, por acaso, aqui ele até tem razão, mas pronto, isso não prova nada. Alguma vez o gajo havia de acertar, senão jamais conseguiria chegar onde chegou.

A questão é que a língua portuguesa é uma língua extremamente sexual (isto de língua extremamente sexual também tem muito que se lhe diga, mas adiante). A título de exemplo, tirem-se do parágrafo anterior as palavras “marrar”, “metem-se”, “espetado”, “profundo”. Pensem bem nelas, e digam lá se não me estão já a chamar ordinário. Estão, não estão? Pois é, a coisa é assim mesmo. E se isso se dá connosco, o que não será com uma psicóloga. A Vânia, por exemplo, que anda ultimamente muito ocupada, e o cansaço vai-lhe dando (hmmm, vai-lhe dando...), vai-lhe dando, dizia eu, para os actos falhados. Eu exemplifico:

Já decorreu mais de um mês desde que ela nos afirmou, peremptoriamente, que nunca se esquece do nosso grupo, e até nos seus sonhos se lembra de nós. Depois tentou retractar-se, e explicar que se tratava na realidade de pesadelos, mas sonhos são sonhos, e todos sabemos bem o que pensava deles o bom doutor de Viena. Quando se sonha com alguém, a coisa ainda é mais séria do que espetar um prego sei lá onde, ou levar flores à mãe. Tem tudo a ver com... sim, digam lá... todos em coro... isso mesmo, eu é que estava com vergonha de dizer a palavra. Nem de propósito, afirmou a um de nós (não recordo já qual), logo no dia seguinte, “não me venha com essas balelas, que eu sei-as todas”. É claro que ficámos em pulgas para conhecer melhor os tais sonhos. A coisa já seria interessante se ela fosse ingénua, e muito melhor se torna a partir do momento em que ela as sabe todas. Aquilo deviam ser sonhos com imagem digital e som surround, mais os acessórios todos da praxe.

Hoje, a coisa descambou. Tudo começou da forma costumeira, outra vez com uma mousse de chocolate (o que diria o Freud acerca do chocolate?), e logo derivou para as habituais coisas moles que mal conseguem matar o desejo. Isto levou a nossa menina a elogiar a nova marca de chocolate, que parece que é mais duro e mais escuro, como ela gosta (palavras dela), e eu caí na asneira de falar em coisas grandes demais, que nem sempre eram boas. A resposta esmagadora foi, “tudo o que é grande demais, ou leva tempo demais, não interessa. Queimar borracha por tempo ilimitado também chateia”. Os meus genitais treparam assustadamente pela espinha acima, e foram-se aninhar em volta da traqueia, assim como uma cria que busca a protecção da mãe (embora o Freud insista que o que a cria quer é sexo, mas pronto). Queimar borracha? Santo nome de um ornitorrinco gago, queimar borracha? Uma dessas, acho que era capaz de engasgar até o bom doutor.

O resto do almoço decorreu como seria previsível, num crescendo de desvario, a oscilar entre o delírio e a demência. Os episódios foram-se tornando gradualmente mais escabrosos, e as nossas expressões faciais já estavam para além de qualquer veleidade de controlo, quando ouvimos a Vânia dizer a um cliente, “não é esburacado de dedo, é de murmúrio-qualquer-coisa-qualquer-coisa. Ficou a dúvida sobre o que seria a qualquer coisa, mas ela já estava a ficar farta, e gritou, alto e bom som, “Nuno, já chega”. Há quanto tempo, meu Deus, eu não ouvia estas palavras…

O sexo é daquelas coisas assim como ser político, ou pedófilo, ou um político pedófilo: há quem o pratique, e há quem fale muito disso. Desconfio que o verdadeiro drama dos psicólogos é que, no fim de contas, acabam por não se interessar realmente pela coisa, tal como os porteiros de clubes nocturnos raramente apreciam dançar, e os guardas florestais são pouco amigos de ir acampar nas férias. Conhecer muito bem um assunto pode provocar desinteresse. Visto por esse ângulo, ela até tem razão. De facto, já chega.

Por último, resta-me acrescentar um pormenor muito importante. A Vânia faz questão que eu esclareça, coisa que solenemente aqui faço, que tudo o que atrás fica escrito é inteiramente fictício, que nada disto se passou, e que se trata somente de um mero fruto pateta e patético da minha exaltada imaginação. Por outras palavras, tudo isto é inteiramente mentira. A sério, verdade. Verdade mesmo.

11.08.2007

91 – Tourada.

Anda alguma coisa no ar. Alguma coisa grande, notória e proeminente. Algo assim comprido e aguçado. Digam lá o que disserem, ninguém me tira isto da cabeça.

Os sinais acumulam-se: quando vamos de carro para o restaurante, o tecto aparece todo esburacado. Ao entrar pela porta, essa porta que antes cruzávamos erectos e altivos, começamos a ter de nos baixar. Já nem nos olhamos de frente, com medo de vazar um olho a alguém. A conclusão impõe-se, concreta e inequívoca: a Vânia, depois de muito ameaçar que fazia, e que acontecia, e que um dia destes íamos ver, acabou mesmo por cumprir as ameaças, e pôs-nos os cornos!

Dado o serviço restaurativo a que ela por tantos anos nos habituou, ainda acalentámos a esperança de que se limitasse a pôr-nos uns meros palitos, coisa mais usual nestes templos devotos dos comeres e beberes. Mas quais palitos, quais quê, foram mesmo cornos a sério, grossas e incómodas galhadas, daquelas feitas com mais cálcio que um pacote concentrado de leite Matinal, e assim na base de um par a cada um. Agora, quando chegamos, as empregadas já não trazem a correr um jarro de vinho, vão mas é à gaveta buscar as bandarilhas. Se nos queixamos, perguntam-nos se estamos a querer marrar com elas, e nós lá nos deixamos ficar, bovinamente silenciosos, sob um mar de ominosas armações. Não há que duvidar, a mesa 19 está mais cabisbaixa, e isso é uma coisa que nos pesa.

A menina, depois de correr com todo o material recreativo que ainda subsistia por ali, coisas tipo a Lana e a Marta, deu por fim o golpe de misericórdia no nosso regalo visual, correndo consigo própria. Para melhor nos enganar (isto de enganar é algo intrínseco ao acto de pôr os cornos), foi dizendo que não, que continuava por lá, só se ausentava às segundas-feiras. Pois, mas agora parece que todo o dia é segunda-feira. Nós para ali ficamos, sozinhos e cornudos, e ela anda lá longe, espojando-se na iniquidade badalhoca da sua traição, pelas terras depravadas da Porcalhota. Quer dizer, ela peca e diverte-se, e nós, cornos. Ora gaita, devíamos ter combinado isto ao contrário!

Mas talvez seja exagerado dizer que ficámos sozinhos. Não estamos nada sozinhos, não senhores. Nestes dias duros e longos, em que nos temos esforçado por nos adaptar à nova decoração das nossas testas, temos sido competentemente servidos pelo irmão da nossa infiel Messalina. O supracitado irmão, moço excelente e impecável, de trato fácil e cordato, é assim um rapaz grande e musculado, que faz irresistivelmente pensar no que seria o resultado se, um dia, o Silvester Stalone resolvesse fazer um filho ao Leonardo di Caprio. Ser musculado e bem-parecido pode até resultar numa combinação interessante, mas apenas em certos bares, e só depois das 11 da noite. Além disso, o rapaz tem o sério defeito de não ser uma moça jeitosa, por mais que tentemos dar asas à imaginação. É que a nossa imaginação, há que ser realista, não tem asas, nem nada que se pareça. Tem é cornos.

O resto é paisagem. Lá anda a Queen Elizabeth, que não desgostaria de aportar vez por outra à mesa 19, mas vai sendo mantida convenientemente ao largo pelo já descrito Tarzan Taborda, ainda mais ciumento do que a mana alguma vez foi. O Superboy também nunca mais se chegou a nós, mas isso é fraco consolo, no meio da nossa chifruda tragédia. E o nosso drama não é o excesso de cálcio nas extremidades, é mesmo a falta da Vânia.

Pois é. Quando julgávamos que tudo tinha sido já dito, na longa insanidade de 90 crónicas, eis que surge agora algo de completamente novo: temos saudades da Vânia. Eu sei que parece que estou a gozar, mas não, é mesmo verdade. Vá-se lá saber porquê, mas acho que já nos habituámos àquela loura surpreendentemente concentrada, mais os seus miolos fritos por anos poli-saturados de psicologia.

Isto não é tudo, nem pouco mais ou menos, mas agora tenho de ir almoçar. Por isso, e em jeito de resumo, aqui fica a mensagem: Vânia, podes voltar, a gente gosta de ti. Gostamos mesmo de ti, a sério. Palavra de corno.