11.04.2010

96 – Reviver o Passado na Mesa 19

A mesa 19 voltou hoje a reunir-se. Portentoso evento, este, que só a tremenda fleuma do narrador, aquela impassibilidade característica dos seus nervos de aço, que chega mesmo a bordejar a imbecilidade, permite contar neste chão e comezinho tom, assim dizendo, A mesa 19 voltou hoje a reunir-se. Comove-nos esta simplicidade de espírito, esta parcimónia de vocábulos, como se a terra não tremesse de cada vez que a mesa 19 se reúne.

O restaurante pouco mudou nestes dois anos em que lá não fiz qualquer falta. Inúteis, claro, as saudades de uma Vânia, mesmo de uma Marta ou Lana, que essas abandonaram o jogo ainda antes de nós. Sobrevive dos dias de antanho o eterno Vítor, sempre imune ao passar dos anos que não poupam tantos outros. Lá o cumprimentámos com alacridade e gosto, a esse amigo, companheiro, palhaço deste circo que é a vida, e também o negócio da restauração. Coadjuvava-o uma jovem lindíssima, a merecer honras de novo parágrafo, o que desde já se concede.

Atrevi-me a inquirir o seu nome, sem que de modo algum me animassem intenções menos honestas, mas tão-somente um fundado receio de ver entrar em matilha todos aqueles empregados que tenho conhecido, e que partilham invariavelmente o estranho nome de “Oh faxavor!”. Não era o caso desta, que cortesmente declinou o cristianíssimo nome de Fátima. Algo nela, contudo, denunciava uma origem exoticamente africana, um je ne sais quoi difícil de identificar. Seria talvez a doçura comedida da sua voz, porventura a misteriosa profundidade do seu olhar, quiçá o suave meneio dos seus gestos, talvez apenas, eventualmente, o simples facto de ser mulata. Certo é que a mesa 19 aprovou irrestritamente a Fátima.

E a Fátima, pelo seu lado, começou de imediato a fazer jus à mesa 19. Encomendando o Catarino meia dose de dobrada, sem frango, ouvimo-la escrever em voz alta, naquele modo laborioso e silabado de quem se corre de qualquer engano, “meia dose de frango”. Corrigido que foi o lapso, voltaria em final de repasto a dar novas provas desse peculiar sentido de humor. Sendo pedido um brandy Croft, arvorou uma expressão de dúvida, e inquiriu se se tratava de um whisky. Explicámos-lhe que sim, que “brandy” era uma marca de whisky, mas se não houvesse podia trazer Macieira. Quando a garrafa de Macieira compareceu a terreno já nós tínhamos dominado o mecanismo da coisa, e limitámo-nos a perguntar se não tinha mais nada. Afastou-se então, para regressar pouco depois com a garrafa de brandy Croft. All’s well that ends well, como costumava dizer o bardo imortal.

Que não se depreenda daqui qualquer julgamento menos positivo sobre a Fátima, uma verdadeira LEEP (Linda Empregada de Elevado Potencial), apenas verde demais para lidar com esse ninho de cucos que é a mesa 19. Pois se até a Vânia precisou de uma licenciatura em psicologia para concluir que não nos consegue entender, seria porventura legítimo esperar mais de uma esforçada jovem que desta vida não leva mais do que escassas semanas? Nada, os meus parabéns à Fátima, para quem peço o vosso aplauso: por qualquer razão, suspeito que ela só dormirá bem esta noite se recorrer ao seu ursinho de peluche favorito, e a uma boa garrafa de vodka.

Mas então, pergunta-me o paciente leitor, e a mesa 19 em si mesma? Pois bem, uma vasta maioria compareceu à chamada, até mesmo o Santola, vejam bem, e não há a lamentar senão um par de deserções: o Taliban, sob razão de ter entre ele e a mesa 19 o rio Tejo, e o Zé Eduardo, sob razão de ser um gajo do contra, o que condiz inteiramente com o espírito da mesa. É com alegria que registamos a adesão do Rui Matos, jovem que temos vindo pacientemente a perverter, comparsa da mesa 19 por interpostas crónicas que se tem dado ao trabalho de ir lendo. É com todo o prazer que declaro mais este Rui, desde esta data e até ao fim dos tempos, membro de pleno direito da mesa 19.

Mas nós é que não somos já os mesmos, helás. Logo à chegada, quedei-me no exterior do edifício, fumando na companhia do Catarino o cigarro que me era vedado lá dentro. Eis que de rompante se abre a porta do estabelecimento, da qual surde a patroa, ávida de me saudar com beijos e abraços, Que era feito de mim, que mais ninguém me voltara a ver, e que saudades, Deus seu. Correspondo em tom a condizer, mas não me consigo impedir de recordar outros tempos mais felizes, em que apenas uma coisa me distinguia do diabo, e que era o facto deste almoçar noutro restaurante, tempos em que a casa me via como um corruptor de jovens, baixel de iniquidade, a encarnação de todos os vícios, enfim; um pulha infame, capaz de qualquer baixeza, desde largar pesados e tonitruantes vernáculos, até debruçar-me sobre o balcão para ver as pernas à Marta, que nesse dia viera de calções. Comparo esses tempos com a recepção festiva de hoje, e concluo que estou velho.

Ou talvez estejamos todos velhos. O Carlos Santos, famoso pelas dezenas de bolinhas arremessadas sobre o ar condicionado, não foi hoje além de me arrojar à face um pedaço de papel metalizado, que não chegou sequer a vazar-me uma vista, embora por pouco. O Cardoso limitou-se a cagar a mesa de uma forma mole e displicente, mero pedaço de dobrada caído sobre a toalha, coisa que nem chega sequer a chamar-se arte, de tanto que está ao alcance de qualquer um. Que profunda, que lancinante saudade dos tempos em que o víamos espalhar todo um bacalhau à minhota ao largo e ao comprido da toalha, numa produção artística capaz de levar o próprio Picasso a lamentar não ter optado pelo refogado, em vez da tinta de óleo. Hoje, o Rui é o que se vê: um pedacito de dobrada na toalha, e façam o favor de serem felizes.

Salvou-nos a tarde a turma do Harry Potter, que se sentou na mesa 18 (com perdão da má palavra, que até se me horroriza o esfíncter só de falar em tal mesa), tendo a professora Sprout seleccionado com todo o cuidado a cadeira directamente por trás da minha, costas coladas com costas. Após uma manobra digna de um petroleiro aportando a Cacilhas, apenas para me conseguir levantar no intuito de ir à casinha dos meninos, partiram da mesa 19 as palavras prenhes de ressentimento, “ A gaja nem sequer se mexe”, num murmúrio que não deve ter sido ouvido em praticamente mais nenhum restaurante. A criatura dardejou um olhar furibundo na nossa direcção, mas ninguém se transformou numa couve. E naquele breve olhar, naquela justa indignação de quem se vê privado do respeito que lhe é devido, e mesmo da possibilidade de usufruir um almoço sem ser insultado, nesse olhar chamejante, dizia, logrei captar um breve lampejo da velha mesa 19.