11.14.2007

92 – A queimar borracha...



Tivesse eu os dotes literários, a fluência no domínio da língua pátria, a agilidade dúctil de expressão que é o apanágio dos grandes vultos das nossas letras, e faria desta crónica uma homenagem a essa coisa tão bela e tão versátil, a língua portuguesa. Na falta de tão ambicionadas qualidades, seria mais justo fazer como a serpente, que rasteja porque não sabe voar. Seria, mas eu é que não me resigno à poeira desses trilhos ásperos da mediocridade, e decido, com dotes ou sem eles, fazer desta crónica, seja lá como for, uma homenagem a uma coisa também bela e versátil: a Vânia. Ou, melhor ainda, uma homenagem ao uso distinto e peculiar que a Vânia, essa bela e versátil jovem, faz da bela e versátil língua portuguesa. Talvez não saia daqui coisa muito bela, mas aposto que será bastante versátil.

É possível que eu não tenha ainda mencionado isto mais de 9 ou 10 vezes, mas a Vânia é psicóloga. Ou seja, é mais uma daquelas infelizes criaturas que, por imperativo profissional, se vêem forçadas a encarar o mundo pela retorcida perspectiva desse perverso doutor austríaco que um dia resolveu todos os problemas da raça humana com uma simples palavra: sexo! Desde essa data memorável, tudo na nossa vida se simplificou. Um indivíduo anda a marrar com a cabeça nas paredes porque perdeu o emprego, a mulher empalitou-o, e os filhos metem-se na droga? Isso são detalhes que facilmente se resolvem, a questão de fundo é o sexo. Preciso de cortar a perna que gangrenou, por ter um dia espetado um prego num pé? Ora, o prego é evidentemente um símbolo fálico, o que faz disto um problema de profundo cariz sexual. Um petiz leva um ramo de flores à sua mãezinha, no seu aniversário? Pois, pois, o que o puto quer é saltar-lhe para cima, e nem admira, que a senhora ainda é jeitosa. Ou eu, por exemplo, enquanto me sento naquele restaurante, levo o tempo todo a olhar para as meninas que entram? Não tem dúvida, logo o bom doutor esclarece que eu estou é a pensar no truca-truca! Bem, por acaso, aqui ele até tem razão, mas pronto, isso não prova nada. Alguma vez o gajo havia de acertar, senão jamais conseguiria chegar onde chegou.

A questão é que a língua portuguesa é uma língua extremamente sexual (isto de língua extremamente sexual também tem muito que se lhe diga, mas adiante). A título de exemplo, tirem-se do parágrafo anterior as palavras “marrar”, “metem-se”, “espetado”, “profundo”. Pensem bem nelas, e digam lá se não me estão já a chamar ordinário. Estão, não estão? Pois é, a coisa é assim mesmo. E se isso se dá connosco, o que não será com uma psicóloga. A Vânia, por exemplo, que anda ultimamente muito ocupada, e o cansaço vai-lhe dando (hmmm, vai-lhe dando...), vai-lhe dando, dizia eu, para os actos falhados. Eu exemplifico:

Já decorreu mais de um mês desde que ela nos afirmou, peremptoriamente, que nunca se esquece do nosso grupo, e até nos seus sonhos se lembra de nós. Depois tentou retractar-se, e explicar que se tratava na realidade de pesadelos, mas sonhos são sonhos, e todos sabemos bem o que pensava deles o bom doutor de Viena. Quando se sonha com alguém, a coisa ainda é mais séria do que espetar um prego sei lá onde, ou levar flores à mãe. Tem tudo a ver com... sim, digam lá... todos em coro... isso mesmo, eu é que estava com vergonha de dizer a palavra. Nem de propósito, afirmou a um de nós (não recordo já qual), logo no dia seguinte, “não me venha com essas balelas, que eu sei-as todas”. É claro que ficámos em pulgas para conhecer melhor os tais sonhos. A coisa já seria interessante se ela fosse ingénua, e muito melhor se torna a partir do momento em que ela as sabe todas. Aquilo deviam ser sonhos com imagem digital e som surround, mais os acessórios todos da praxe.

Hoje, a coisa descambou. Tudo começou da forma costumeira, outra vez com uma mousse de chocolate (o que diria o Freud acerca do chocolate?), e logo derivou para as habituais coisas moles que mal conseguem matar o desejo. Isto levou a nossa menina a elogiar a nova marca de chocolate, que parece que é mais duro e mais escuro, como ela gosta (palavras dela), e eu caí na asneira de falar em coisas grandes demais, que nem sempre eram boas. A resposta esmagadora foi, “tudo o que é grande demais, ou leva tempo demais, não interessa. Queimar borracha por tempo ilimitado também chateia”. Os meus genitais treparam assustadamente pela espinha acima, e foram-se aninhar em volta da traqueia, assim como uma cria que busca a protecção da mãe (embora o Freud insista que o que a cria quer é sexo, mas pronto). Queimar borracha? Santo nome de um ornitorrinco gago, queimar borracha? Uma dessas, acho que era capaz de engasgar até o bom doutor.

O resto do almoço decorreu como seria previsível, num crescendo de desvario, a oscilar entre o delírio e a demência. Os episódios foram-se tornando gradualmente mais escabrosos, e as nossas expressões faciais já estavam para além de qualquer veleidade de controlo, quando ouvimos a Vânia dizer a um cliente, “não é esburacado de dedo, é de murmúrio-qualquer-coisa-qualquer-coisa. Ficou a dúvida sobre o que seria a qualquer coisa, mas ela já estava a ficar farta, e gritou, alto e bom som, “Nuno, já chega”. Há quanto tempo, meu Deus, eu não ouvia estas palavras…

O sexo é daquelas coisas assim como ser político, ou pedófilo, ou um político pedófilo: há quem o pratique, e há quem fale muito disso. Desconfio que o verdadeiro drama dos psicólogos é que, no fim de contas, acabam por não se interessar realmente pela coisa, tal como os porteiros de clubes nocturnos raramente apreciam dançar, e os guardas florestais são pouco amigos de ir acampar nas férias. Conhecer muito bem um assunto pode provocar desinteresse. Visto por esse ângulo, ela até tem razão. De facto, já chega.

Por último, resta-me acrescentar um pormenor muito importante. A Vânia faz questão que eu esclareça, coisa que solenemente aqui faço, que tudo o que atrás fica escrito é inteiramente fictício, que nada disto se passou, e que se trata somente de um mero fruto pateta e patético da minha exaltada imaginação. Por outras palavras, tudo isto é inteiramente mentira. A sério, verdade. Verdade mesmo.

11.08.2007

91 – Tourada.

Anda alguma coisa no ar. Alguma coisa grande, notória e proeminente. Algo assim comprido e aguçado. Digam lá o que disserem, ninguém me tira isto da cabeça.

Os sinais acumulam-se: quando vamos de carro para o restaurante, o tecto aparece todo esburacado. Ao entrar pela porta, essa porta que antes cruzávamos erectos e altivos, começamos a ter de nos baixar. Já nem nos olhamos de frente, com medo de vazar um olho a alguém. A conclusão impõe-se, concreta e inequívoca: a Vânia, depois de muito ameaçar que fazia, e que acontecia, e que um dia destes íamos ver, acabou mesmo por cumprir as ameaças, e pôs-nos os cornos!

Dado o serviço restaurativo a que ela por tantos anos nos habituou, ainda acalentámos a esperança de que se limitasse a pôr-nos uns meros palitos, coisa mais usual nestes templos devotos dos comeres e beberes. Mas quais palitos, quais quê, foram mesmo cornos a sério, grossas e incómodas galhadas, daquelas feitas com mais cálcio que um pacote concentrado de leite Matinal, e assim na base de um par a cada um. Agora, quando chegamos, as empregadas já não trazem a correr um jarro de vinho, vão mas é à gaveta buscar as bandarilhas. Se nos queixamos, perguntam-nos se estamos a querer marrar com elas, e nós lá nos deixamos ficar, bovinamente silenciosos, sob um mar de ominosas armações. Não há que duvidar, a mesa 19 está mais cabisbaixa, e isso é uma coisa que nos pesa.

A menina, depois de correr com todo o material recreativo que ainda subsistia por ali, coisas tipo a Lana e a Marta, deu por fim o golpe de misericórdia no nosso regalo visual, correndo consigo própria. Para melhor nos enganar (isto de enganar é algo intrínseco ao acto de pôr os cornos), foi dizendo que não, que continuava por lá, só se ausentava às segundas-feiras. Pois, mas agora parece que todo o dia é segunda-feira. Nós para ali ficamos, sozinhos e cornudos, e ela anda lá longe, espojando-se na iniquidade badalhoca da sua traição, pelas terras depravadas da Porcalhota. Quer dizer, ela peca e diverte-se, e nós, cornos. Ora gaita, devíamos ter combinado isto ao contrário!

Mas talvez seja exagerado dizer que ficámos sozinhos. Não estamos nada sozinhos, não senhores. Nestes dias duros e longos, em que nos temos esforçado por nos adaptar à nova decoração das nossas testas, temos sido competentemente servidos pelo irmão da nossa infiel Messalina. O supracitado irmão, moço excelente e impecável, de trato fácil e cordato, é assim um rapaz grande e musculado, que faz irresistivelmente pensar no que seria o resultado se, um dia, o Silvester Stalone resolvesse fazer um filho ao Leonardo di Caprio. Ser musculado e bem-parecido pode até resultar numa combinação interessante, mas apenas em certos bares, e só depois das 11 da noite. Além disso, o rapaz tem o sério defeito de não ser uma moça jeitosa, por mais que tentemos dar asas à imaginação. É que a nossa imaginação, há que ser realista, não tem asas, nem nada que se pareça. Tem é cornos.

O resto é paisagem. Lá anda a Queen Elizabeth, que não desgostaria de aportar vez por outra à mesa 19, mas vai sendo mantida convenientemente ao largo pelo já descrito Tarzan Taborda, ainda mais ciumento do que a mana alguma vez foi. O Superboy também nunca mais se chegou a nós, mas isso é fraco consolo, no meio da nossa chifruda tragédia. E o nosso drama não é o excesso de cálcio nas extremidades, é mesmo a falta da Vânia.

Pois é. Quando julgávamos que tudo tinha sido já dito, na longa insanidade de 90 crónicas, eis que surge agora algo de completamente novo: temos saudades da Vânia. Eu sei que parece que estou a gozar, mas não, é mesmo verdade. Vá-se lá saber porquê, mas acho que já nos habituámos àquela loura surpreendentemente concentrada, mais os seus miolos fritos por anos poli-saturados de psicologia.

Isto não é tudo, nem pouco mais ou menos, mas agora tenho de ir almoçar. Por isso, e em jeito de resumo, aqui fica a mensagem: Vânia, podes voltar, a gente gosta de ti. Gostamos mesmo de ti, a sério. Palavra de corno.

10.26.2007

90 – Mudam-se os tempos, que farão as vontades?

Ao longo destes aborrecidos milénios em que tem decorrido a história do género humano, pensadores e cientistas têm-se em vão esforçado por dar resposta à mais momentosa das humanas questões: haverá vida depois da mesa 19? Teólogos postulam que sim, filósofos argumentam que não, agnósticos decidem que talvez, e psicólogos variados, com a determinação que sempre os caracteriza, decidem pintar o tecto de bege. Enquanto isso a mesa 19, paulatinamente, vai morrendo de tanto estar viva.

Nada existe no vácuo, e as criaturas só subsistem se inseridas num ambiente adequado. O ambiente é um factor decisivo, como bem podem testemunhar biólogos, ecologistas, sociólogos, e qualquer pessoa que já tenha tentado ter sexo (sobretudo, quando se trata de ter sexo com outra pessoa). No caso do sexo, mais do que em qualquer outro, o ambiente é fundamental para que a tentativa seja coroada de sucesso. Tenho várias vezes constatado, no meu caso particular, que o método infalível consiste numa boa luz ambiente, bem velada, música romântica num volume adequado, uma ou duas bebidas para descontrair, e outro gajo qualquer em vez de mim. Mas o sexo, seja como for, não serve senão para perpetuar a espécie, e eu já fiz a minha parte.

Pois também a mesa 19 nasceu e medrou... (sim, esse trocadilho teve muita piada, mas o texto ainda continua, sabem?), nasceu e medrou, dizia eu, num ambiente acolhedor e propício, e vai agora morrendo da morte lenta dessa acostumada envolvente. A mesa 19 é aparentemente a mesma, embora reduzida ao seu núcleo duro, mas começa a tornar-se uma relíquia, sobrevivente de tempos defuntos, e talvez melhores. Em jeito de reportagem, ponhamos em dia o censo daquele restaurante.

A Lana, como seria sabido dos fiéis leitores destas crónicas, se acaso os houvesse, partiu há meses para outras paragens, trocando covardemente o cuidado dos aparelhos gastrointestinais pela questiúncula das unhas, maneira esta assaz original, e um bocadinho nojenta, de dizer que ela se fez manicura. Mais recentemente, a Marta foi-se também. Cessaram os piu’s a despropósito, nunca mais nos pediram 500 euros por coisa nenhuma, e, se algum miau acaso ecoa naqueles claustros sombrios de luto, é por certo um gato vadio que anda perdido, e que o cão ainda não conseguiu comer. Para completar o descalabro, a Vânia anda com a mania de vir a exercer psicologia, e ameaça deixar-nos também.

Mas, costuma-se dizer, the show must go on. Não chega sequer a ser verdade, mas os patrões daquele emérito estabelecimento parecem julgar que sim, e contrataram já um número suficiente de actores substitutos. Vejamos então o elenco, por ordem de entrada em cena.

Veio primeiro uma brasileira chamada Mara. De modo nenhum me oponho a que ela se chame Mara. Afinal de contas, até as brasileiras se têm de chamar alguma coisa, e Mara parece-me um nome adequado. Sobretudo para uma brasileira. Não sei se já tinha mencionado isto, mas a Mara é brasileira.

A actriz é de gabarito, mas parece-me deslocada neste filme. O que é uma pena, já que ela teria amplas condições para reclamar um Óscar numa produção mais consentânea com os seus dotes, algo assim como “A maldição do cemitério índio”. Na cena crucial do filme, ela surgiria imponentemente envolta na sua manta de missangas, com a devida caracterização, isto é, igual aos outros dias todos, e em voz profunda e rouca preconizaria tragedias sem fim aos profanadores do solo sagrado dos seus antepassados. Duvido, todavia, que a tirada se concluísse com a frase, “A sopa do dia é de feijão verde, e as almôndegas estão muito boas”. Em suma, trata-se de um erro de casting.

Veio depois a Elisabete. Ela que me perdoe a familiaridade deste tratamento, a Elisabete, mas acontece que se trata da única das novas aquisições que me parece adequada. Trata-se de uma jovem mais amadurecida do que é ali habitual, e isto de juventude é como o tricot, quantos mais anos de prática, melhor. Depreendi ainda, pelo seu dedo anular, que pertence a essa imensa maioria das que empenharam a sua disponibilidade no altar dos valores tradicionais, o que nenhum óbice constitui, já que a mesa 19 é fundamentalmente platónica. Os parcos contactos até agora tidos deixam suspeitar uma mente ponderada mas ágil, e um sentido de humor que se recata, mas não se demite. Se é ela a nossa última esperança, e está destinada a ser o nosso futuro, o futuro parece-me risonho. De resto, recordando o hábito americano de baptizar as naves espaciais com nomes de barcos, atrevo-me a reformar o velhinho Enterprise, e presto, temos o nome do filme: “Mesa 19: The next generation – Starship Queen Elisabeth”.

Last, and indeed the least – o Superboy! O Superboy é um rapazinho muito comme ill faut, com excelentes maneiras, de quem não há absolutamente nada a dizer. A nossa recomendação – substituam-no, urgentemente, por um gajo de quem haja algo a dizer! Este, coitado, não passa de uma versão pelintra do Clark Kent, sem a emoção de se transfigurar quando tira os óculos, ou a rebeldia javarda de usar as cuecas fora das calças. Mais uma dose de super-heróis deste calibre, e eu é que vou para lá servir às mesas. Mal por mal, acabava por ser mais eficiente, e sempre dava à patroa um pretexto legítimo para usar as ambulâncias do SNS, tipo três ataques cardíacos consecutivos.

E pronto, é isto que o futuro nos reserva. Quanto ao presente, é caso para dizer que, enquanto o pau vai e vem…

Confrontada com o meu pedido de mousse de chocolate, bem contrário à dieta que tento manter, a Vânia piorou um pouco as coisas, com uma proposta de guarnição de chantili. Trazendo a ominosa sobremesa, fez questão de esclarecer: “está um bocado mole, mas dá para matar o desejo”. Oh Vânia!!! Aquilo é um doce à base de chocolate, não é uma menina de casa de alterne! Qualquer dia destes, nós levamos lá uma menina de casa de alterne, para veres a diferença.

E há outros sinais de degradação por aquelas bandas. Ontem, por exemplo, a nossa sala foi invadida por espanhóis. A sério, uma manada deles, apascentados por uma menina portuguesa, uma coisa redonda, fofinha e esparvoada. Algo assim como uma avestruz, mas sem a elegância do porte, e a forma inteligente de estar na vida. Entre os nuestros hermanos avultava um cornudo, assim careca por dentro e por fora, que se deu ao desfastio de insultar a nossa Vânia, a pretexto de ela não ter percebido um qualquer pedido dele, certamente de cariz homossexual, formulado naquele linguajar de trapos de que os cabrons usualmente se servem. A Vânia, caridosamente, lá lhe foi trazendo as coisas que o capado demandava, mas até aposto que vinham todas moles, e duvido que tenham chegado para lhe matar o desejo.

Ainda bem, pode ser que se desgostem do estabelecimento, e futuramente se vão fazer sodomizar noutro lado qualquer. É que ali não se precisa de clientes mal-educados e abusivos, que se entretém a insultar o pessoal. Para isso, está lá a mesa 19!

89 – Do you understand quand je dis ça?

Há muitos milénios atrás, quando Deus decidiu que era melhor parar de fingir que existia, e deixar o macaco evoluir em paz e sossego, só para ver o que é que aquilo dava, levantou-se, naturalmente, o problema da comunicação. A questão foi lançada a debate no dia em que um dos proto-homens tomou um pernil de dinossauro e declarou, após prolongada reflexão, “Ghrung”. O segundo hominídeo indicou a sua decidida discordância, apontando para o mesmíssimo pernil, ao mesmo tempo em que pronunciava, com estudada ironia, “Gharogh”. Apontou em seguida uma árvore próxima, e silabou, triunfantemente, “Ghrung”. O primeiro macacóide considerou a clara insuficiência do argumento, e sentiu-se obrigado a discordar, o que fez pela via epistemológica de rachar o crânio do opositor com o pernil em causa. Quando o segundo troglodita recobrou os seus debilitados sentidos, contemplou com receio o pernil semi-desfeito, e resmungou submissamente, “Ghrung”. Estava inventada a comunicação.

Desde esta data histórica, ficou em definitivo estabelecida a importância da correcta correspondência entre significante e significado. A própria bíblia viria a demonstrar, no seu divertido mito da torre de Babel, a risível futilidade de pronunciar, à toa, sons a que ambas as partes não hajam acordado conferir um mesmo sentido. O princípio norteou a humanidade durante séculos, e não faltam referências a ele em toda a literatura disponível. Humberto Eco, no livro que nomeia a flor impossível de nomear, estigmatiza a inanidade irrisória do homem que dissesse “bilrribiti”, e Art Buchwald narra o caso de um poeta vanguardista que se não consegue fazer entender sobre o conceito de “castanho”, termo que para ele designa uns biscoitos fenomenais, com sabor a sardinha. Até aqui, portanto, nada de novo.

Mas a idade moderna veio dar uma volta a isto, e acabou por relançar a torre de Babel. Só na segunda metade do século XX, Nixon redefiniu a palavra “honestidade”, a guerra do Vietname deu novo sentido à palavra “vitória”, e, em Portugal, o estado novo reescreveu “democracia” (e também mudou o significado a “ditadura”, mas disso já ninguém se lembra). Mais tarde, o 25 de Abril tomou a seu cargo o sentido da palavra “revolução”, o Copcon o do termo “processo pacífico”, a AR usou “transparência” em acepções que teriam lançado um linguista em demenciais convulsões de riso, e o senhor Sócrates catapultou a palavra “engenheiro” para baixios que a desgraçada jamais conhecera, ao ponto de os actuais licenciados em engenharia preferirem hoje ser identificados por títulos alternativos, do tipo, “construtor mestre e burlesco de sua majestade, a rainha de copas”, de preferência a ostentarem o étimo soez.

Em todos os meios se verifica este movimento desconstrutivo da capacidade humana de comunicação. Em literatura, por exemplo, a coisa atingiu o seu pico com “Finnegans Wake”, proclamado o livro mais ilegível de todos os tempos. Na vida real, o troféu cabe indiscutivelmente à Vânia, com a sua chef-d’oeuvre, “O Anhuca da Mesa 19”. O princípio que norteia aquela pequena mente, já muito frita por anos poli-saturados de psicologia, é tão simples como asinino: se eles já sabem que há um anhuca, posso dizer impunemente o que me der na bolha (e o que dá naquela bolha, santo Deus, não está nem na Divina Comédia, apesar do cuidado que Dante pôs na sua compilação). A imbecilidade do conceito foi-lhe cabalmente demonstrada com um simples SMS, que a deixou a apanhar os bonés que nos eram destinados. Bastou assinar, Anhuca, e era vê-la, qual barata tonta, a perguntar qual de nós era o Anhuca. Qual era o Anhuca? Mas, não era ela que sabia isso? Dããã!

Mas houve um dia em que ela me irritou. É algo que só muito raramente me acontece, irritar-me, e geralmente prenuncia um cataclismo do género daquele que destruiu os dinossauros, ou, pelo menos, que o touro prodigioso de Minos está em vias de encontrar Ísis, a vaca sagrada, em conúbio lésbico com a cabra do Zodíaco, no que será o prólogo agoirento de uma bela chanfana. Teve a distinta lata, a nossa menina, de nos informar, com um daqueles sorrisos irritantes, tão comuns nas gárgulas e nos filmes com gajas nuas a matar gajos amaricados, um daqueles sorrisos que só um picador de gelo espetado na têmpora consegue amenizar, mas teve a lata, dizia eu, de nos informar que o pessoal da cozinha mandava os seus cumprimentos ao Anhuca. O picador de gelo falhou a sua entrada em cena, ela retirou-se, lampeira, e eu rosnei com os meus botões, Isto ainda vai dar merda.

A Vânia dá-se ao luxo de soberanamente ignorar o pacto dos dois macacos primitivos, e usar a seu bel-prazer uma palavra arbitrária, cuja chave nós não possuímos, facto que ela não ignora, já que é ela que se nega a fornecê-la. Pois bem, quem somos nós, brutos e incultos, para argumentar com a sua universitária sapiência? Uma mulher capaz de saber, a um mesmo tempo, o significado de “déspota” e “anal-retentivo”, não é pessoa com quem se discuta de ânimo leve. Sejam então válidas as regras dela: o significado de uma palavra é um assunto particular de quem a usa, e os destinatários que se lixem. Se não perceberam nada, é porque talvez não fosse mesmo para perceberem. Posto isto, a crónica começa aqui.

E acaba, também, exactamente no mesmo ponto. Não é que o texto não exista, é só que eu não o vou escrever. Caramba, até o meu descaramento acaba por ter um limite, e não poderia voltar a encarar a Vânia, depois de escrever aquilo. Mas não é porque seja mentira, uma vez que, pelas regras dela, nada há que seja mentira; o que se diz pouco interessa, interessa só o significado, e esse, não há quem o conheça. Vendo as coisas assim, eu até lhe podia chamar lambreta azeda. O que quer dizer isto? Como já afirmou o bardo imortal, That, my friend, is the question. Mas pronto, ficamos por aqui, e ela que me perdoe por todas as coisas que não cheguei a escrever. Caramba, como é que eu fui capaz de me lembrar daquilo? O pormenor do chantili, sobretudo, foi francamente excessivo!

O último parágrafo é confuso? Não dá para se perceber nada? Pois bem, a coisa é assim mesmo: eu sei o que quero dizer, e os outros, se quiserem, podem entreter-se a imaginá-lo. Será isto chato? É, pois, é sempre chato não perceber. Por muito menos do que isso, até já houve quem ficasse completamente anhuca!

9.10.2007

88 – Folhas Soltas.

Notas esparsas, episódicas, e sem grandes pretensões, acerca do que por cá se vai passando.

Vânia (apontando um resto de queijo colocado nesse dia sobre a mesa, mas que já vinha da semana anterior) – Ainda vão comer isso?
Um de nós – Acho que não, é melhor deitares para o lixo.
Outro de nós – Ou dares ao cão.
Vânia (horrorizada) – Ao cão? Esse queijo velho? Credo, coitadinho do bicho!

Vânia – Não posso com aquele cliente, sempre com conversas de treta. No outro dia, estava a meter-se comigo. Já viram uma coisa destas? Um velho de 30 anos!

Eu (com o copo de digestivo mais do que generosamente atestado, contemplando a garrafa quase meia) – Então, esse bocadinho fica aí a fazer o quê?

Marta (passando rente à mesa) – Miau!

A patroa – O entrecosto acompanha com batata cozida, mas, se preferir, pode ser também com batata frita, ou com arroz.
Eu (prestável) – E também há puré de batata.
A patroa (sardónica) – Puré de batata?!? Sim, também há puré de batata. Não pertence a esse prato, mas para vocês, claro, é sempre tudo o que quiserem, não é? Então, quer com puré de batata?
O visado – Não, pode ser com batata cozida.
A patroa (um pouco mistificada) – Com certeza. E o senhor, vai comer o quê?
Eu – Panadinhos de frango. Podem vir com puré de batata?

Marta (passando rente à mesa) – Piu!

Vânia (logo após a nossa chegada) – Então, já escolheram?
Paulo – Sim, podes trazer a conta, e o livro de reclamações.
Vânia – Mas vocês ainda não comeram nada!
Paulo – Pois não, e é sobre isso que queremos reclamar.

Posto tudo isto, fica a dúvida: porque é que nós ainda lá voltamos? Porque é que eles ainda nos deixam lá entrar? Na minha opinião, o que se passa é que andam ambos os lados a ver quem é que entrega primeiro os pontos, e dá em maluco. A minha aposta pessoal vai para… mas não, eu sei lá para quem é que vai, aquilo é tudo uma cambada de psicopatas, ou coisas piores, como psicólogas, por exemplo. Todos, menos eu. Eu não sou doido, sou um anhuca!

Esta é hors-concurs. Aconteceu há bastante tempo, num célebre tasco de Coimbra, mas quem é que garante que não poderia ter acontecido também aqui?

1º Cliente – Tenho a dizer-lhe, sem mais comentários, que este bife estava ascoroso.
Patrão – Se o doutor o afirma…
2º Cliente (horas mais tarde) – Ouça, este bife está um nojo. É uma vergonha servir uma porcaria destas a gente decente!
Patrão (apologético) – O doutor desculpe, mas isso não pode ser. Pois, se ainda há pouco um outro doutor o comeu, e até me garantiu que estava ascoroso!

Ainda no mesmo estabelecimento, mais uma verídica:

Cliente – Traga-me, por favor, um café e um periódico.
(O empregado, após breve hesitação, traz uma bica e um copo de tinto).
Cliente – O café está correcto, mas eu pedi um periódico.
(O empregado desculpa-se, retira o vinho, e regressa pouco depois, com um copo de branco).
Cliente – Já vi que não vale a pena perder tempo consigo. Chame o patrão, por favor.
Patrão (o mesmo da história anterior) – Faz favor de dizer, doutor, qual é o problema?
Cliente – O problema é que o seu empregado é um imbecil. Pedi-lhe um periódico, e ele não para de me trazer todo o tipo de coisas disparatadas.
Patrão (curvando-se muito) – Eu peço muita desculpa, doutor, ele não faz por mal, mas é novo aqui, e não é assim lá muito esperto, temos de ter paciência. Não se preocupe, eu vou tratar pessoalmente do seu pedido. Diga-me só uma coisa, o periódico, é branco, ou tinto?

São casos destes que me convencem que, no meio disto tudo, nós ainda temos muita sorte. Quero dizer, por enquanto…

8.01.2007

87 – Banha da Cobra.

Esta manhã, sucedeu-me acordar indefinido. Coisa rara em mim, esta. Já me tenho levantado triste, e, mais raramente, alegre. Uns dias céptico, outros esperançoso, mas sempre alguma coisa. Hoje, pelo contrário, não sabia se me apetecia rir, estar morto, ou emigrar para o Japão. Não me sentia coisa nenhuma, apenas indefinido.

Nesse estado de espírito me arranjei e saí de casa, aberto a qualquer ideia, sem ter eu próprio nenhuma. E calhou que a primeira coisa a sair-me ao caminho fosse um papelucho que um jovem distribuía à entrada da estação de comboios, e que, em letra apertada e fraseado ingénuo, anunciava aos povos o astrólogo e médium africano, mestre Alimo. Isto deu-me algo com que ocupar o espírito, e logo um tema bem actual – o fenómeno, neste século supostamente iluminado, da proliferação descontrolada da treta.

Não vale a pena alongar-me aqui sobre o disparate que é a astrologia, nem sobre as baboseiras que comumente se ouvem a propósito da necromancia, do tarot e da bola de cristal. Quem quer acreditar nessas coisas está no seu pleno direito, e não mudaria de opinião, só por eu me pôr aqui a repetir os argumentos que sensatamente têm sido aduzidos contra tais teses. Creio, todavia, que mesmo essas pessoas, ou sobretudo elas, teriam alguma dificuldade em engolir que o mesmo homem acumule os poderes simultâneos de astrólogo e de médium. Já agora, poderia oferecer o serviço completo, algo como, Reparam-se bicicletas, desentopem-se canos, e fazem-se refeições para fora. Também se tratam calos.

Lendo o texto subsequente, constato que talvez me tenha precipitado, quanto à questão dos calos. É que parece que o homem é, além de tudo o resto, “um grande vidente, espiritualista, curandeiro e conselheiro”. Chiça, se eu tivesse a certeza de que também sabia cozinhar, levava-o já para minha casa. Quanto ao âmbito de actuação, o folheto esclarece que o fenomenal indivíduo “resolve rapidamente qualquer problema difícil ou complicado”. Excluídos parecem estar, portanto, os problemas fáceis e simples, o que não augura nada de bom para os calos, claramente pertencentes a esta última categoria. A prometida rapidez também pode vir a revelar-se indesejável. Se o meu problema for, por exemplo, o desejo de me ver livre da minha sogra, gostaria que ele me desse pelo menos tempo para me ausentar temporariamente do país, antes de limpar o sebo à velhota.

Mas o homem é bom, é mesmo muito bom. Logo à cabeça, na lista dos problemas difíceis que ele se acha apto a resolver, contam-se Amor, e Aproximar ou afastar as pessoas amadas. Essa do amor merece uma grande chapelada. O próprio Deus, que terá alegadamente criado toda esta confusão em que vivemos, anda às voltas com esse problema, desde o dia em que foi ter com os seus inquilinos, uns tais de Adão e Eva, para os avisar que tinham de fazer as malas, porque a renda só estava paga até ao final daquele mês. Enquanto ao resto, a proposta é ainda mais ousada. Com efeito, qualquer pessoa que se encontre a braços com a necessidade de “afastar a pessoa amada”, tem de facto um problema “difícil e complexo”, daqueles que só se resolvem com um astrólogo verdadeiramente grande. Ou, em alternativa, com uma lobotomia.

O resto é trivial, a costumeira panaceia universal, mais a variada lista dos problemas que se resolvem, e que são os do costume – dinheiro, saúde, emprego, impotência sexual, outros mais (porque é que estes místicos africanos insistem sempre na questão da impotência sexual? Será afinal mentira o que se diz dos africanos?). A lista termina com o protocolar etc., o que muito me convém. Com efeito, se alguma vez eu acabar por lá ir visitá-lo, será certamente por causa de etc.

Mas não sei se irei. Vejo na papeleta que o cavalheiro atende de 2ª a sábado, das 8 às 21 horas, numa morada pouco convidativa. Eu sei que estou bem longe de ter os seus portentosos poderes, mas, caso um dia os tivesse, confio que começaria por os usar para melhorar a minha situação na vida, de forma a não ter de trabalhar 13 horas por dia, 6 dias por semana, num cacifo delapidado de uma rua escusa. A magia, afinal de contas, deve começar em casa.

Em resumo, treta. Ainda bem, pensei eu, que a mesa 19 não tem nada a ver com coisas destas. Não só todos nós temos profissões de verdade, como ainda nos reunimos num restaurante sério, onde recebemos os amáveis serviços de uma jovem que está, ela própria, prestes a exercer uma profissão a sério. É verdade, a nossa Vânia concluiu a sua licenciatura, e em breve se dedicará a psicanalisar os confusos e os desorientados, o que lhe dará uma fatia de mercado de, aproximadamente, 90%.

Isto, sim, é um trabalho meritório. As pessoas com problemas, tomadas de desespero, virão falar com ela. E a Vânia, conversando com eles, irá dizer-lhes, em tom calmo e tranquilizador, qual é o seu problema, e qual a solução. Isto é, eles têm problemas de, digamos, amor, impotência sexual, ou aproximar e afastar as pessoas amadas. O problema está na cabeça deles. A resposta também. A cabeça é a deles, mas a Vânia é que dá a resposta. Pensando bem, talvez me tenha precipitado um pouco, quando falei de um emprego a sério.

Alguém disse uma vez que os médicos mais não fazem do que inventar doenças de nome sonante, das quais uma humanidade papalva logo se presta a morrer. Para os psicólogos, isto é especialmente válido. O processo costuma ser algo como isto: eu estou deprimido, porque queria ser rico, e não sou; o psicólogo explica-me que o meu trauma se deve a uma preocupação subconsciente com o tamanho do meu pénis; eu sinto-me melhor, com esta explicação, e pago a consulta; à custa de gente como eu, ele fica rico; eu não; o pénis, entretanto, continua do mesmo tamanho.

A génese da psicologia é bem conhecida de todos. Em Viena, um tal senhor Segismundo, após dar tratos à bola, na busca de um negócio novo e lucrativo, confidenciou a um amigo que achara finalmente a fórmula vencedora. A troco de dinheiro, escutaria os problemas que as pessoas lhe quisessem confiar. Depois, arvorando um ar sério e profundo, dir-lhes-ia quais eram os problemas delas, coisa de resto fácil, já que acabara de os ouvir. Estás a brincar, espantou-se o amigo. Ninguém te daria dinheiro a troco de um disparate desses, a menos que fosse maluco. Boa ideia, regozijou-se Segismundo, é isso mesmo. Estava definido o mercado-alvo.

Mais coisas há que eu gostaria de observar aqui, mas terão de ficar para uma próxima crónica. Quero apenas salientar que nada disto é ilegítimo, pois toda a gente tem o direito de receber o dinheiro que lhe queiram oferecer, em troca seja do que for. É isso que, desde o tempo dos antigos fenícios, tem feito girar o mundo.

Nenhum mal advém à sociedade, pelo facto de uns quantos indivíduos ganharem a vida a vender gambozinos empalhados. A sociedade só está em perigo, e perigo grave, quando as pessoas começam de facto a comprar, com ânsia e avidez, os tais gambozinos empalhados. É aí que é caso para dizer: Temei a sétima trombeta, porque o fim está próximo.

7.18.2007

86 – Cambada de Anhucas.

Já o filósofo afirmou um dia, na sua basta sapiência, que tudo o que é bom tem um fim, menos a salsicha, que tem dois. Pois também eu, após três semanas empregadas a demonstrar que não faço realmente falta, e que bem me podiam dar já a reforma, regresso ao trabalho. Volto, mas, que fique bem entendido, volto contrariado. Enfim, as férias acabaram, e as crónicas estão de volta.

Existe uma certa escola de pensamento que mantém e sustenta, com toda a seriedade, que a mesa 19 continua a existir, mesmo na minha ausência. Eu não estou bem certo de que isso seja verdade, assim como também não sei se uma árvore que cai na floresta faz ruído, quando não estou lá para a ouvir, mas, pela dúvida, sempre vou dizendo que sim a ambas as teorias. Afinal de contas, até é possível que o mundo não gire de facto à minha volta, se bem que não perceba à volta de quê gira ele, nesse caso. A dar crédito à mencionada hipótese, noto que correm temerosos rumores, sobre portentosos sucessos, que se terão dado na mesa 19, durante as minhas férias.

To cut a long story short, a mesa descobriu que as cozinheiras, qual sapateiro que, desdenhando a chinela, se pusesse a fazer chapéus, haviam tido a ousadia de roçar os seus grossos dedos, profanos das frituras e do peixe por amanhar, nas fímbrias do elevadamente sagrado, permitindo-se colocar alcunhas aos membros da mesa 19. Nem mais, alcunhas! Ora, digam-me lá, pode isto admitir-se?

Dirão alguns, e sem mentir, que também nós pomos alcunhas a outras pessoas. Apontarão mesmo, e sempre dentro da verdade, que passamos efectivamente o tempo todo a fazê-lo. Quem não esqueceu ainda a Miss Piggy, a turma do Harry Potter, os Pet Shop Boys, verá nisto um poderoso argumento – e estará todavia errado.

Todas essas alcunhas se referem a uma única qualidade de pessoas – os outros clientes. E está certo pôr alcunhas aos outros clientes, tal como pisar-lhes os pés, ou dar-lhes um tiro. Porque eles são “os outros clientes” – e não tem nada que haver outros clientes por ali. Nós já não somos a mesa 19 daquele restaurante, aquilo é que é o restaurante da mesa 19. E os “outros”, que se aguentem.

Nós nunca pusemos alcunhas às pessoas realmente importantes ali dentro, nomeadamente aquelas que nos proporcionam as nossas refeições. Já alguém nos ouviu referir, com menos respeito, a Transmontana aos Saltos, a Manicura Comuna, ou a Lady Frankenstein dos Piercings, com o seu Cabelo Psicologicamente Oxigenado? E mesmo as próprias cozinheiras, que, com os seus barretes, fazem lembrar um cesto de couves-flor – e não é por causa dos barretes? Mas, quando é que eu lhes chamei isso? Hein? Quando?

(As alcunhas constantes do parágrafo anterior são apenas exemplos de coisas que eu não disse, e não devem ser tomadas como algo que eu tenha efectivamente dito. Isto explicado, continuemos).

Mas a Vânia, muito pressionada, acabou por partilhar connosco uma parte daquilo a que ela chama “ A Verdade” (o termo, como é sabido, tem diversas acepções, e pode até ser tomado num sentido jocoso). Segundo ela, haverá apenas duas alcunhas. Uma, a designar o grupo, “Os Irmãos Metralhas”. A outra designa um indivíduo em particular, “O Anhuca”. De que indivíduo se trata, eis o que ela se recusa a desvendar.

E pronto, eis-nos lançados em consternada perplexidade. As perguntas, inquietas, sucedem-se em catadupa: Qual de nós é o Anhuca? Serei porventura eu o Anhuca? Qual a razão, o que foi que os levou a decidir que eu era um Anhuca? Porque não o Rui, que é muito mais Anhuca do que eu? E, acima de tudo, o que raio é um Anhuca?

O que será, com efeito, um Anhuca? Dos vários dicionários consultados, nenhum autoriza o uso de semelhante termo, e o Google não se mostra muito mais prestável. O étimo é de facto empregue num ou noutro sítio, mas sempre por gente que não parece sequer saber o significado da palavra “déspota”. Oh, desespero, o que será um Anhuca?

Debalde a minha mente se debate em desconstruções linguísticas. O termo tanto parece evocar Anúbis, o cabeça de chacal dos velhos egípcios, como uma espécie de cruzamento bastardo entre “Anho” e “Ranhoca”. A melhor leitura a que consigo chegar é, “Ser superior, verdadeiro deus na cama, que vale que os vermes valeriam, se acaso houvesse vermes feitos de merda”. Paira no ar, por outro lado, uma sugestão de que Anhuca significaria, simplesmente, uma pessoa estúpida. Nesse caso, somos todos potenciais candidatos a Anhucas, basta ver-se há quantos anos temos vindo a patrocinar aquele estabelecimento.

Vivemos, é claro, num país livre, e toda a gente tem o direito de se referir sejas a quem for, usando qualquer espécie de termos, incluindo palavras inventadas. Até mesmo eu próprio, quantas vezes tenho visto a Vânia abrir a gulacha para um cliente, e aguardar, expectante, que ele lhe peça algo. Depois de o ter schmorfado, retira-se, com a boca cheia de goshma, mostrando bem as suas malamankas. Poça, assim também eu, e nem sequer falei no rabo dela.

(Nota: gulacha=ementa; schmorfar=escutar; goshma=sorrisos; malamankas=boas maneiras. Acho eu… Escusava-se, no entanto, o uso da palavra rabo).

Não, deixem-se lá dessa treta do skánevassefaziaskaski. Se há mesmo que nomear a besta, de que adianta perder tempo a chamar-lhe “animal irrequieto”? Nada, os indícios apontam para várias alcunhas, uma para cada um de nós, como é de resto justo (somos clientes antigos). Esta história de haver um só, individualizado, um Anhuca, não nos convence. Se foi de facto apenas isto que as cozinheiras fizeram, apelidar um de nós de Anhuca, tanto pior! Lá se foi a nossa última esperança de as ver, finalmente, fazer alguma coisa bem feita.

Quanto à alcunha colectiva, Os Irmãos Metralhas, confesso que a referência me escapa. Poderemos possivelmente lá chegar, desde que passemos a usar mascarilhas pretas, camisas cor-de-laranja, números tipo 162-621, colados no peito, e ostentemos um ar estúpido, só que isto não explica de onde surgiu a ideia. Mas pronto, sejamos, assim mesmo, os Metralhas. Isso faz do pai Pinto um coronel Cintra, sendo os dois Vítores o Pateta e o Mickey. O emplastro, rondando nas trevas, é o Mancha-Negra, e as cozinheiras vêem-se, por fim, remetidas ao seu verdadeiro papel – são a Clarabela, e a Clara-de-Ovos.

Mas, sendo assim, haja pelo menos democracia. Que a todos seja dada a liberdade de alcunhar seja quem for, sem razões ou explicações. Nesse espírito, eu desde já instituo a alcunha que sempre me pareceu mais adequada para aquelas três meninas: Pirolitos Sem Bola. Assim mesmo, sem quaisquer razões ou explicações. Trata-se de uma alcunha adequada, e, tal como a nossa, ninguém sabe muito bem porquê. O facto é que elas parecem isso mesmo, coisa que se não pode já dizer sobre os Anhucas.

P.S. Uma pergunta se impõe, hors de concours. Terá esta fantasia, das cozinheiras que se permitem ter opiniões sobre nós, origem num qualquer trauma profissional? Afinal de contas, falamos aqui de pessoas que, dia após dia, cortam e estripam peixe, retalham porco, fatiam vitela. Poderá este domínio continuado sobre animais que lhes são superiores, tê-las levado a ilusões de grandeza? Quem sabe? De uma coisa estamos certos, a Vânia sabe. É que ela é doutora, e sabe muitas coisas, só que não as conta. É também um bocado Anhuca, mas isso, reparem, é segredo. A sério, foi a Vânia que disse.

6.14.2007

85 - Crónica gastronómica.

Hoje, a mesa 19 foi passear. Não, não foi ainda desta vez que a Vânia perdeu a cabeça (ou a recuperou), e nos mandou a todos passear, nós é que decidimos, de moto próprio, experimentar um novo comedouro. Afinal de contas, até gente como nós necessita, vez por outra, de refocilar em gamela diferente da habitual. Essas excursões que nos afastam da mesa 19, de resto, são um pouco como as antigas cruzadas, em que afoitamente se corriam as terras bárbaras, para melhor sentir a glória do torrão pátrio.

Fiel ao meu velho princípio de proteger a identidade dos culpados, não divulgarei nestas páginas o nome da casa onde acabámos por almoçar. Mas, caso aconteça um dia ao leitor entrar num estabelecimento cujo nome o faça pensar numa cidade espanhola, numa gema preciosa, e numa arma de guerra, saberá que é exactamente aí.

A ideia foi-nos apenas sugerida, mas trazia assim mesmo uma poderosa publicidade atrás de si. É que eminentes figuras, como o Zé e o Carlos, refiro-me aqui ao Silva, têm conferido a sua preferência ao local, que por uma longa semana vêm a patrocinar com a sua ilustrada frequência. Foi isto, apenas isto, note-se, que nos foi dito. Não houve aqui pretensões a templo gastronómico, ninguém gabou a excelência da arte culinária, o excelso nome de Brillat-Savarin jamais ecoou nessas conversas. Não estamos aqui em presença, seja em que acepção for, de publicidade enganosa. Mas, será a publicidade enganosa a única que pode levar a uma má escolha?

Muito se fala, nos nossos dias, acerca de publicidade enganosa. É preciso notar, todavia, que há mais publicidade má no mundo, para além da publicidade enganosa. Ainda há poucos dias, por exemplo, notei um grande cartaz de exterior, cujo único objectivo neste mundo parecia ser o de me convencer a tomar determinado laxante, cuja marca me dispenso de aqui publicitar. A composição consistia na imagem de uma grande cama, e em três frases que, em três linhas de letras garrafais, assim bradavam: “Prisão de ventre? Durma sobre o assunto! XXX, o laxante suave, que actua da noite para o dia!

Ora bem, não se pode afirmar que se trate de publicidade enganosa. Com efeito, estando em causa prisão de ventre, o assunto é, claramente, caca, e é extremamente provável que me aconteça acabar por, literalmente, dormir sobre esse assunto, caso cometa a idiotice de tomar um laxante antes de me deitar. Ainda para mais um que, alegadamente, actua “da noite para o dia”. Isto é, vou passar a noite a dormir sobre o assunto, e começo o dia atolado nele. Sempre tem a vantagem de estar quentinho, mas não deixo de estar atascado em trampa.

Mas, dir-se-á, o laxante resolveu o problema. Não, não resolveu. O problema continua lá. É verdade que agora está do lado de fora, mas não deixa de ser um problema. Aliás, nem sequer está todo do lado de fora, continuo a sentir qualquer coisita cá dentro. De resto, no estado em que já estou, porque não… quero dizer, já agora… mmmmm… aaaaaaahhh… agora sim, sinto-me completamente aliviado. E, nestas condições, que diferença faz mais meio quilo de merda a transbordar das calças do pijama? Excelente laxante, este, de facto. Agora só tenho de descobrir um meio de me levantar daqui, e decidir se queimo o colchão ao fundo do jardim, ou se o ofereço a alguma instituição de caridade.

Também no caso do restaurante, a publicidade não foi enganosa, mas teve, ainda assim, o infeliz resultado de nos levar até lá. Não quero ser injusto para com a ilustre casa, pode até dar-se o caso de termos tido algum azar, mas manda a verdade dos factos que se esclareça não ter sido a performance de molde a convocar um “bis”. Caso me coubesse fazer a crítica do estabelecimento em questão, ver-me-ia irresistivelmente compelido a parafrasear aquele crítico de teatro que sobre uma peça escreveu, sucintamente, “Prefiro não comentar, porque, quando assisti ao espectáculo, as condições não eram favoráveis: a cortina estava levantada”.

O problema, creio eu, foram as bebidas. A comida mostrou-se perfeitamente à altura das baixas expectativas induzidas pela ementa, e que o preço módico do menu completo sugeria. Mas o menu completo permitia supor, por exemplo, que o vinho servido com o almoço seria, já não digo melhor do que uma zurrapa, mas pelo menos bebível. O total incumprimento deste item elementar forçou à aquisição de uma garrafa de algo mais relacionado com a vinha do que com a água do mar, por um preço ligeiramente inferior ao da hipoteca do edifício, e lá se foi a economia para o galheiro.

Paciência, pensámos, vingamo-nos nos digestivos. Pobres inocentes que nós fomos, e quão mal sabíamos onde nos estávamos a meter. O espectáculo começou, discretamente, com a simpática jovem que nos servia a obter de todos os bebedores de whisky a confirmação da sua preferência pela marca habitual, apenas para perversamente os informar de que não dispunha de qualquer garrafa dessa marca. Eu, com a confiante arrogância que por vezes nos assola, pedi o meu brandy costumeiro. Não havia, mas ela propôs-me Napoleon, o equivalente restaurativo de um assalto com dolo e recurso à violência. Perante a garantia de que não dispunham de quaisquer brandies correntes, optei por algo de diferente e aventuroso, um bourbon que inopinadamente compareceu à liça. Como um bom palerma que sou, senti-me satisfeito.

Soube-me bem, na realidade, tão bem que me afoitei mesmo a pedir outro. Não havia outro! Como, não havia outro? Pois, é que era a última garrafa, e estava já no fim, mas podiam trazer-me outra coisa. Veio então, para meu espanto, uma garrafa do brandy que primeiramente encomendara, e que afinal já tinham. Que diabo, eu sei bem que tenho esta cara de estúpido, mas incomoda-me quando os outros dão por isso.

Tudo isto, dir-me-ão, pode quotidianamente acontecer, tudo isto acontece de facto, no nosso restaurante habitual. Pois bem, é verdade, e no entanto é diferente. O nosso restaurante é nosso, é o restaurante da mesa 19, e nada do que por lá se passa significaria o mesmo, caso se passasse noutro lado qualquer.

Entramos noutros restaurantes como qualquer cliente, dos que vêem a lista e escolhem, e depois pedem umas coisas, exigem outras, e no fim de tudo almoçam. Mas, no nosso restaurante, entramos como quem volta a sua casa, tão dispostos a exigir o que não é nosso, como a pedir aquilo a que toda a gente tem direito. Não levamos bifes na ideia, mas morangos na alma, os morangos com chantilly do olhar da Vânia, que até na fúria se adoça, os Morangos com Açúcar da juventude esgrouviada e espalhafatosa da Marta, os Morangos Silvestres, misteriosos e secretos, do olhar belo e eslavo da Lana, a provar que nem toda a ambiguidade se esgota no cinema de Bergman. Depois brincamos, e fazemo-nos palhaços para provar que não o somos. No fim da refeição, não bebemos o que o restaurante tem para oferecer, apenas bebemos o que queremos. E saímos, tardios e a galhofar. Não temos sequer a certeza de ter almoçado, mas sabemos que vamos satisfeitos. Talvez não levemos bifes no estômago, mas levamos morangos na alma.

Saímos dos outros restaurantes fartos e alimentados, isso quando calha. Daqui, saímos sempre como calha, e pronto. Mas nunca deixamos de sair bem daqui, seja o que for que nos calhe. Porque a mesa 19, ao contrário do que se poderia pensar, não é um estado do estômago. A mesa 19 é, sempre foi, um estado de espírito.

5.03.2007

84 – O mundo está perigoso.

É um facto consensual, e amplamente sabido das pessoas que me conhecem bem (os meus amigos, colegas de trabalho, a associação cristã contra a imoralidade, a polícia judiciária, etc.), que eu sou, via de regra, uma pessoa descontraída e bem disposta, dotada de um carisma peculiar, que tem a um tempo a leveza subtil do sorriso da hiena, e a profundidade abissal de uma poça de lama. Os poucos assuntos capazes de despertar as minhas preocupações, se excluirmos temas básicos, como bebidas e sexo, relacionam-se tipicamente com problemas de cariz mundano, tais como, Qual a melhor bebida para tomar depois do sexo, Conseguirei ter sexo com ela, se lhe pagar outra bebida, ou, Não me fará mal ter sexo, depois de tantas bebidas? Hoje, contudo, tivemos uma prolongada conversa em torno da mesa 19, e eu fiquei preocupado.

Falou-se, sobretudo, na legislação que o governo tem na forja, tendo em vista o combate ao tabagismo. O tema, admito-o, tem escassa relação com os que atrás mencionei, excepto pelo facto de que eu sou fumador, e o governo, por via desta lei, está novamente a tentar ter sexo comigo, passe o eufemismo. O que se pretende aqui decretar é algo de muito simples: os fumadores são cidadãos de terceira categoria, párias de um sociedade que vai fazendo o favor de os ir tolerando, na estrita condição de não pretenderem arrogar-se quaisquer direitos. A dar-se tão vergonhosa eventualidade, o assunto será severamente julgado por um júri de cidadãos decentes, isto é, que não fumem. Poderão integrar tal júri todos os cidadãos correctos, independentemente do cadastro criminal, ofensas sexuais registadas contra menores, hábitos de consumo de droga, indigência mental aguda e crónica, ou mesmo serem do Benfica. Não podem é ser fumadores.

Isto é portentoso. O nosso governo, com a ligeireza de quem fuma um casual cigarro (isto ainda se pode escrever, mas é por pouco tempo), faz tábua rasa das lições mal aprendidas de línguas clássicas, esquece tudo o que os gregos tinham em mente, quando cunharam a palavra “democracia”, e arvora-se em todo-poderoso, numa ditadura teológica e paternal. Já não temos o ministro, temos Jesus de novo ressuscitado, proclamando, em adenda ao Sermão da Montanha, Bem-aventurados os que não fumam, porque deles é o reino de Portugal. É urgente mudar as fórmulas oficiais, e substituir “o senhor ministro” por algo como, “o senhor fulano de tal, ministro de todos nós pela graça de Deus”. Está por fim instituída essa coisa nova e espantosa, a democracia de direito divino. Oremos.

Para os que cuidam que exagero, verto aqui, à vossa consideração, o meu modesto caso. Fumador há várias décadas, declaro sem rebuço que sempre fumei pelo meu prazer (e vício), e não me lembro de jamais ter fumado “contra” alguém. Nunca tive qualquer empenhamento, militante ou de outro género, nesse fenómeno a que modernamente se chama o “fumo passivo”. A coisa, de resto, parece-me evidente: eu compro as minhas camisas para as usar, compro a minha cerveja para a beber, e não vou certamente comprar tabaco para que outros o fumem, passivamente ou não. Pode ser uma falha no meu carácter, mas não levo, de facto, a filantropia até esse extremo. O termo “fumador passivo”, aliás, parece-me um galardão extremamente discutível. Basta pensar em expressões como “sujeito passivo”, nos impostos, e “homossexual passivo”, que, no fundo, querem dizer a mesmíssima coisa, excepto que um deles se diverte mais do que o outro.

Mas os talibãs bem-pensantes do nosso país continuam a apertar o cerco. Agora, também me querem proibir de fumar aquele cigarro que centenariamente acompanha a bica, desde que a dita seja consumida em lugar público, seja esse um café, um bar, ou o restaurante onde almocei. O cigarro depois do almoço, porra? O tradicional cigarro depois do almoço? Então, onde é que está o tão apregoado respeito pelas tradições? Não é justo, caramba, assim não brinco. Ou bem que estamos em Portugal, ou bem que não estamos. Tenho de resto a certeza de que me deixariam fumar os cigarros que eu quisesse, caso eu fosse, por exemplo, um simples touro de Barrancos.

Mas dizem-me que o meu fumo incomoda as pessoas em volta. Batatas! E as pessoas que cheiram mal? Alguém já falou nas pessoas que cheiram mal? É que essas também me incomodam, sabem? Mas, se a questão acaso se levantasse, estou certo de que seria tratada com muita delicadeza, até porque algumas dessas pessoas são, bem, como direi, nem por isso brancas, e todo o cuidado é pouco, em temas de natureza tão sensível. Para resolver o problema do cheiro, que nem sequer é “mau”, é apenas “diferente”, temos exaustores, ventoinhas, o diabo a sete. E para o tabaco, isso não funcionaria, também? Talvez, mas seria gastar boa cera com ruim defunto, está já estabelecido que os fumadores são párias, e acabou-se. O fumador é o preto, numa sociedade que fingiu abolir o racismo, mas que se limitou a reciclá-lo.

Outro argumento favorito tem a ver com uma coisa ambígua, um conceito assim montado à pressa, a que chamam, pomposamente, “o custo do fumador para a sociedade”. É usual, nesta vertente, quantificar o que cada cidadão contribuinte paga pelo tratamento de uma doença induzida pelo tabaco. Os fumadores, por norma, ripostam que esse mesmo doente contribuiu, ao longo de uma vida repleta de tabagismo, com uma relevante percentagem do seu vício, para o erário público. O argumento é sem dúvida pertinente, mas fica estranhamente esquecida uma questão muito mais importante. Essa questão, que não me lembro de ter já visto discutida, é a seguinte: desses cidadãos, que abnegadamente pagam o tratamento de um enfisema, ou de um cancro no pulmão, quantos não serão, eles próprios, fumadores. E esses, que têm decerto uma palavra a dizer sobre o assunto, já que também pagam, serão supostos objectar ao tratamento de uma doença que os pode, amanhã, afectar da mesma forma? E, entre os não fumadores, que dizer dos alcoólicos com doenças de fígado, dos obesos por culpa própria que têm problemas cardíacos, dos amantes de praia, vitimados pelo cancro de pele? Devemos ser nós a pagar-lhes os tratamentos? O problema do messianismo é que, geralmente, só funciona bem para os seguidores do Messias.

Mas pronto, isto são voos altos demais, para uma cavalgadura como eu. O mundo está perigoso, e não há nada a fazer. Como dizia o Leonard Cohen, “I’ve seen the future, baby: it is murder”. Passando a assuntos mais íntimos e pessoais, a mesa 19 anda fascinada com um novo mundo, recém-descoberto. Concretamente, andamos a descobrir a Vânia.

Aquela miúda é um universo. Sob o lago plácido que é aquele exterior pacato e discreto, há abismos profundos, turbulências insuspeitas, fundos que só a custo se entrevêem, e apenas de relance. Agora, cada vez que olho para aquele rosto angelical de adolescente tímida, só consigo ver uma vampe, de misteriosas pinturas, cigarro ao canto da boca, blusa curta, a marcar uma distância desdenhosa da brevíssima mini-saia, falando de tudo o que não era para dizer, num vocabulário que a torna apta a conduzir um camião TIR daqui até ao Algarve. Será que ela é mesmo assim, ou é precisamente o contrário disto, ou mesmo ambas as coisas? Serão mistérios que não compete ao homem desvendar, apesar do que dizem os psicanalistas?

Não sei, palavra de honra que não sei, realmente. Mas uma coisa há, que não me deixa dúvidas. É que o mundo está mesmo perigoso.

4.23.2007

83 – O problema já vem de trás.

Muitos se têm interrogado sobre a recente estagnação que se tem verificado neste espaço público. Na realidade, isso deve-se ao facto de o autor se encontrar imerso num transe de meditação catatónico, provocado pela súbita constatação de que as joaninhas são muito mais felizes do que ele, e raramente pagam impostos. Este infeliz estado de coisas irá provavelmente prolongar-se até a Santa Casa da Misericórdia lhe atribuir um cheque de valor avultado, ou o Sr. Jean-Marie Le Pen decidir edificar uma sinagoga em Paris. Por essa razão, resolvemos convidar um fidalgo espanhol quinhentista, Don Cuerno-Ybérico Y Contente, grande frequentador da corte de Isabel, a Católica, para escrever a próxima crónica da mesa 19. Uma surdez profunda e persistente, talvez devida ao facto de estar morto há tanto tempo, levou-o contudo a perceber “Cristóvão Colombo”, em vez de “Mesa 19” (aquilo deve ser mais uma mania, porque, quando lhe disse para tirar o dedo de dentro do meu copo, ele também percebeu “Cristóvão Colombo”). Esta crónica nada tem, portanto, a ver com a nossa mesa. Mas também é interessante.

Hola, hombres. Se bem compreendi, coisa que não garanto, querem que vos fale do marinheiro genovês que virou do avesso a corte de Espanha. Mencionaram também algo que eu não percebi, assim um qualquer-coisa-qualquer-coisa-19, mas isso deve ser confusão vossa. Colombo, se bem me recordo, tinha bem mais de 19 anos, quando eu o conheci. Mas era o querubim da nossa rainha Isabel, lá isso era. A um tal ponto que, depois da sua memorável viagem pelos mares ignotos do ocidente, a soberana chamou o principal conselheiro do trono, para lhe recomendar que aumentassem o financiamento atribuído ao italiano. E foi aqui, justamente, que as coisas se começaram a complicar. Mas, eu conto-vos como foi.

O conselheiro curvou-se em profunda vénia às reais majestades, e escutou em respeitoso silêncio as suas instruções. Estando tudo dito, o nobre pigarreou discretamente, e contrapôs, em tom baixo mas firme, Perdoe-me vossa majestade, mas receio que isso não seja uma ideia sensata. Tudo o que temos vindo a saber sobre o almirante genovês levanta enormes questões. A um tal ponto, devo dizê-lo, que já não há sequer a certeza de que ele seja mesmo almirante.

- Não é almirante? Que disparate! Ele disse-me que era almirante. Aliás, disse à corte toda que era almirante, não há quem não o tenha ouvido.
- Bem sei que o disse, majestade, mas os factos não parecem comprovar tal asserção. A realidade, aparentemente, é que ele é apenas um dos filhos de um humilde tecelão de Génova.
- Bem, mas pode sempre ser o filho de um tecelão, e ter-se formado em marinhagem.
- Pode, evidentemente, mas também isso é problemático. Ele afirma, com efeito, ter feito os seus estudos na Universidade de Nápoles, Itália, mas há inconsistências. Para já, não se percebe por que razão iria um genovês estudar para Nápoles, tendo melhores escolas na sua cidade. Depois, tenho-me correspondido com mestres dessa instituição, que me garantem não conhecer qualquer Colombo, embora a sua passagem por aqueles claustros seja atestada por manuscritos que apareceram subitamente, com datas contraditórias, e, estranhamente, assinados pelo Doge de Veneza.
- Um pouco estranho, de facto. Mas enfim, tudo isso há-de ter uma explicação. De resto, suponho que essa Universidade de Nápoles, Itália, seja um sólido e reputado estabelecimento de ensino?
- Saberá vossa majestade que não. Os marinheiros que tem formado foram, até hoje, responsáveis pelo afundamento de mais navios do que todas as esquadras turcas que navegam os sete mares, com a agravante de se tratar sempre do seu próprio navio. Nem é seguro que a escola tenha um grande futuro, pois consta que estão a ser investigados por sua santidade, o Papa, em relação a diversas acusações de heresia. Diz-se, inclusivamente, que levam a impiedade ao ponto de nem sequer observar o Domingo.

- Essas são, de facto, notícias preocupantes. Eu acolhi-o, na minha boa-fé, quando ele veio ter connosco…
- Perdoe vossa majestade, mas ele só veio ter connosco mais tarde. Inicialmente, dirigiu-se à corte de Portugal, quem sabe se por ficar mais perto do mar. Tentou então vender os seus serviços a D. João II, mas parece que a tal universidade não é acreditada naquele reino, pelo que o puseram, desculpe vossa majestade a expressão, com dono. Depois, sim, veio para cá.
- Bem, mas temos de ver que as habilitações de um homem não são realmente o mais importante. Fará mesmo diferença, se ele é ou não almirante?
- Talvez não, majestade, mas o facto é que ele disse que era almirante. Note que, se um helvécio, louro e de olhos azuis, afirmar que é marroquino, e depois conseguir ferrar duzentos cavalos de enfiada, isso fará dele um excelente ferrador, mas decerto um mau mentiroso.
- No entanto, o que conta não é o homem, mas as suas realizações. Afinal de contas, não se pode negar que este Colombo, seja lá ele o que for, conseguiu descobrir a Índia.
- Lamento, majestade, mas não descobriu. Aquilo que ele afirmou ser a Índia não passa de uma terra selvagem e coberta de árvores, sem qualquer préstimo conhecido. A promessa de descobrir a Índia é mais uma das que ele fez, mas não há registo de uma única que tenha cumprido. Com franqueza, aconselho vossas majestades a verem-se livres do indivíduo.

Foi aqui que o rei se meteu na conversa, dizendo, com um sobrolho pensativo, Não podemos fazer isso. Depois de tudo o que dissemos dele, o que iriam as pessoas pensar? Não, o melhor é deixar andar, e fingir que não se passa nada.
- Mas, majestade, está seguro de que isso será uma boa ideia? Deseja realmente que um tal indivíduo fique para sempre ligado à lenda e glória do reino de Castela? Um troca-tintas, que atirou a Espanha para uma aventura despropositada no meio do Atlântico, enquanto o próprio reino de Portugal já chegou às Índias, e pelo caminho correcto?
- Meu caro amigo, tens-nos servido fielmente e bem, mas deves aprender que, em política, é por vezes necessário fazer a gestão das situações, e a contenção de danos. Para já, a nossa atitude é esta: não sabemos de nada, e, caso alguma coisa seja falada, dizemos que se trata apenas de mentiras e conspirações. Depois, é tudo uma questão de esperar pelos portugueses.

- Pelos portugueses?
- Sim. Se bem os conheço, mais dia, menos dia, vai aparecer algum a clamar que Colombo não era italiano, mas sim português. Aqueles tipos gostam de glória, como toda a gente, mas têm um jeito inacreditável para fazer sempre as escolhas erradas. Quando eles vierem com essa conversa, a gente finge que resiste, depois vai cedendo, e acaba por deixá-los com a batata quente na mão. E, o que é mais, muito felizes com isso.

- Vossa majestade pensa realmente que isso dará resultado? E o que acontecerá depois, quando eles perceberem que foram enganados?
- Não se preocupe, tudo o que eles vão fazer é dizer as coisas do costume: que não é bem assim, que nada está provado, que é tudo uma cabala. O rei virá a público, garantindo que o assunto, em todo o caso, não tem qualquer importância. Vozes indignadas gritarão que as acusações são mesquinhas, o importante são as realizações do homem, se bem que ele, como bem apontou, não tenha realizações nenhumas. Não sei em que ponto da história tal se dará, mas espero que não seja em breve. É que os gajos, se o apanham ainda vivo, são bem capazes de fazer dele primeiro-ministro.

4.04.2007

82 – A mesa paralela.

“… poderemos, por exemplo, imaginar um universo paralelo ao nosso, idêntico, mas subtilmente diferente. No entanto, mesmo um tal universo teria de manter algumas invariantes. Assim, por exemplo, teríamos um mundo onde a Madre Teresa de Calcutá fosse uma criminosa, Hitler um santo, e George Bush um imbecil”.

(extracto de um livro que planeio escrever, quando me passar aquela comichão irritante).


Achando-me um pouco saturado do conteúdo sério de algumas crónicas recentes, e do tom apalhaçado de algumas crónicas recentes (reparo agora, curiosamente, que foram precisamente as mesmas), lembrei-me de fazer hoje algo de diferente, como, por exemplo, um ensaio mais científico. Obviamente, a coisa terá de ser em ficção: primeiro, porque não me vou pôr aqui a escrever um tratado, como se percebesse realmente alguma coisa do assunto; segundo, porque só isso se quadraria a estas crónicas, todas elas fictícias, como facilmente se depreende pelas verdades que narram.

Portanto, ficção científica. Mas ficção científica da verdadeira, não da chamada “fricção centrífuga”, com homenzinhos verdes com estranhas armas azuis, que disparam raios vermelhos, provocando grandes explosões amarelas. Depois, trocam-se as cores todas, e faz-se o episódio dois, que se chama algo como “O filho da vingança do regresso do homem-santola ataca de novo”.

Nada, que isto não é lugar para fantochadas dessas. Eu sou mais pelo “Império dos Sentidos” do que pelo “Império contra-ataca”, e tendo a preferir a estrela do Norte à Estrela da Morte, e a pizza-hut ao Jaba-The-Hut. Um tema que me atrai, no entanto, é o espaço multi-dimensional. Segundo essa teoria, que já foi discutida em volta da mesa 19, o nosso espaço tridimensional, isto é, o universo tal como o conhecemos, é apenas um de uma infinidade de espaços, paralelos ao longo de um eixo que se estende numa quarta direcção, invisível para nós.

Sendo esses universos paralelos, é de esperar que alguns deles estejam muito perto de nós, nesse eixo, estando uma infinidade de outros extremamente distantes. Não é, portanto, descabido admitir que a semelhança entre mundos seja bastante grande de início, diminuindo depois com a distância. Assim, tomando um universo suficientemente próximo, podemos considerar invariantes alguns pontos, tais como, por exemplo, a mesa 19.

Teríamos então um mundo muito parecido com o nosso, ambos com a mesma mesa 19, e outros pontos subtilmente diferentes. A turma do Harry Potter, por exemplo, seria nesse mundo a turma de Walt Disney (a professora Sprout, nesse caso, seria a Clarabela). A Vânia seria uma respeitada traficante de cocaína, que se dedicaria secretamente ao estudo da psicologia, a fim de custear as lições de dança exótica num cabaret. A Lana seria ela própria, mas cabo-verdiana, e a Marta seria tal e qual como é, só que com mais penas. O Vítor poderia ser uma cadeira, ou a Serra da Estrela.

E os convivas da mesa 19? Bem, vistos daqui, não parecem apresentar grande diferença, se exceptuarmos o facto de o Paulo ter trocado o casaco de cabedal por um resguardo fofinho de cetim, com folhos malva. A exuberância do acessório não esconde, todavia, o facto impressionante de apresentar o cabelo penteado! O Constâncio substituiu a barba por um bigode fino, mefistofelicamente retorcido, e o Cardoso ostenta um brinco de ametista. Nada de confusões, trata-se de um simples brinco, que nenhum mal tem, e que, de resto, condiz perfeitamente com o colar de pérolas rosadas que traz ao pescoço, formando um contraste provocador com os óculos roxo-eléctrico do Carlos Santos. A cor parece aliás popular, visto que foi também a escolhida pelo Zé Eduardo para tingir a sua barba.

Decididamente, esta mesa paralela não me parece uma melhoria, em relação ao artigo actual. Preso de alguma ansiedade, perscruto a minha própria figura, mas constato com alívio que tudo parece estar bem. Continuo gordo, feio, de aspecto desmazelado, e só a delicadeza pouco usual que ponho num pontual arroto faz sentir alguma inquietação. Seja como for, pareço estar igual a mim próprio.

Discute-se à mesa, como na nossa dimensão usual, uma qualquer arbitrariedade ocorrida em ambiente laboral, e eis que, justamente, me preparo para falar. Tudo se queda, na expectativa de beneficiar da minha habitual verve, e eis que se ouve, “Pois, pá, os gajos, pois, não deviam ter razão, mas pois, se calhar até têm, prontos. Pode ser que sim, e pode ser que não, mas, prontos, que se lixe isso tudo, o que importa é que o glorioso ainda vai a tempo de ganhar a liga. Pois”.

O restaurante perde gradualmente os contornos, e acordo com a cara quase colada à chávena do café. Aliviado, concluo que, mesmo assim, prefiro esta mesa 19. Constato com mágoa que a Marta está outra vez vestida, mas, neste mundo, não se pode ter tudo. E prontos.

4.02.2007

81 – Defecção.

O mundo roda, e retorna,
Sempre, ao ponto de partida.
Assim a mulher encorna
O homem, se é mulher perdida.

- Das “Crónicas Mirabolantes de Relim-Chim-Chim,”, antigo profeta sumério que eu acabei de inventar.

Não sabemos ainda tudo sobre a origem do universo, mas alguma coisa vamos sabendo. A tese comumente aceite, nos nossos dias, é a de que o universo terá surgido na sequência de algo a que se chamou o “Big Bang”, ou “Ganda Estoiro”, vindo desde aí a expandir-se. O seu futuro, no entanto, permanece uma incógnita, cuja resolução depende da real quantidade de matéria existente. Se a massa dessa matéria estiver abaixo de um determinado limiar, não bastará para deter a expansão do universo, que irá gradualmente perdendo energia, e morrendo. Se, pelo contrário, essa massa for suficiente, chegará um momento em que será capaz de travar a actual expansão, e iniciará uma contracção cada vez mais acelerada, que nos levará de novo ao primordial ovo cósmico, e a novo “Big Bang”. É a teoria do universo iô-iô.

(O escritor Douglas Adams, pelo seu lado, conta-nos que uma estranha raça, algures nos confins da galáxia, acredita que o universo foi espirrado por um ser chamado “Grande Confiscação Verde”. São uns indivíduos peludos e amorosos, com mais de cinquenta braços, sendo portanto a única raça da história a ter inventado o desodorizante antes da roda. Esta teoria, contudo, não está muito disseminada no nosso planeta).

Sabemos igualmente pouco sobre as origens da mesa 19, e muito do que se sabe é vago e impreciso, para já não dizer apócrifo. Quanto ao futuro, pelo contrário, sabemos muitíssimo mais. Aqui, é a história que acorre, pressurosa, a mostrar-nos as inúmeras vezes em que aquela mesa se fez e desfez, agora reduzida a um modesto núcleo, logo expandida pela sala inteira. Trata-se de um processo normal, e é no meio da normalidade de um desses processos que neste momento estamos, agora que ocorreu um cisma.

O ponto de fé na origem da ruptura foi o seguinte, a asserção que num restaurante se deve, entre outras coisas, comer bem. Ora, não serei eu quem negue tal axioma, mas continuo a manter que isso não é tudo. No entanto, alguns disseram que não, que urgia descobrir outro reduto. Deram então com um restaurante, que proclamaram templo gastronómico, encómio que se veio depois a revelar algo exagerado. É claro que este estabelecimento bate aos pontos o nosso restaurante habitual, mas isso, convenhamos, não é muito difícil. Servir refeições comestíveis, por exemplo, é já meio jogo ganho, e o resto é uma questão de templos.

Eu sou sensível a estas questões, como é evidente. Tenho sempre tentado, pacientemente, reconduzir o pessoal do nosso restaurante, essas ovelhas tresmalhadas, ao redil das boas práticas culinárias, partilhando alguns lampejos da arte de Pantagruel que emanam do senso comum, e que são pertença de todos, menos, pelos vistos, da cozinheira de lá. Mesmo agora, faço daqui um apelo, em relação ao bacalhau com natas. Já conseguiram dominar a técnica do molho, que é o que distingue o verdadeiro artista (não é o Serafim Saudade, é o da culinária). Para produzir algo que justifique o trabalho de o colocar num prato, algo digno de ser servido ao cliente, algo que não esteja, enfim, incurso em sanções previstas no código penal, basta agora, simplesmente, fritarem as batatas em condições, antes de as juntar ao preparado. Quero dizer, será assim tão difícil, chiça? Que diabo, os fritos já eram conhecidos em Portugal no tempo de D. Afonso Henriques (é certo que, nesses tempos, se fritavam sobretudo os muçulmanos que subiam às muralhas, mas o princípio é o mesmo, caramba).

Por estas e por outras, a mesa 19 entrou em contracção, e vê-se de novo reduzida a um núcleo primordial. Os outros, les compéres du beaux temps, que abandonam o convés quando a chuva começa, vão gastando as horas do almoço a dedilhar serenatas sob as varandas de outras Julietas. Almocei lá um destes dias, no tal sítio, e voltei a ouvir a apreciação habitual, “Isto hoje não esteve lá grande coisa, mas, de um modo geral…”. Ora, batatas! De um modo geral? De um modo geral, o testículo esquerdo do meu avô não era verde, mas as gaivotas também não, e isso não prova nada. Este comentário é um pouco cabalístico, mas vocês percebem aonde eu quero chegar: aquilo é só outro restaurante, e pronto.

Como qualquer restaurante, tem pratos bons e maus. O nosso também. É mais comum terem bons pratos? Pois claro que é, mas isso é normal na maior parte dos restaurantes (o nosso, como já se viu, é uma orgulhosa excepção). Agora, que se enfiam lá barretes, ah, isso enfiam.

O nosso restaurante tem pouco que o recomende, em termos de comida. Mas tem algo que nenhum restaurante tem, em todo o mundo, tem a mesa 19. Quando digo isto, refiro-me à mesa 19 completa, com mesa e pratos, e Vânia e Marta e Lana, e nós a fazermos barulho, e a atirarmos bolinhas de papel, enquanto dizemos coisas sérias com ar estúpido, e coisas estúpidas com ar sério. Alguns amantes da boa conversa fartaram-se da tertúlia, ou então não se fartaram, mas trocaram-na por uma ração melhorada? Tudo bem, lá nos encontraremos, de vez em quando. E continuaremos amigos, como sempre.

O resto é irrelevante. Até eu atraiçoo, esporadicamente, tal como outros o fazem a título permanente. Não é uma questão ideológica, mas apenas de comezaina. E a boa comida, como bem se sabe, não tem nada que ver com a mesa 19.

3.13.2007

80 – E vós, ó tágides minhas…

Hoje, a mesa 19 escandalizou o restaurante. Digo a mesa 19, porque é tudo malta fixe, que não se importa de levar com as culpas, mas a verdade é que fui eu, apenas eu, que provoquei o escândalo, e me tornei para sempre persona non grata naquele estabelecimento, o resto da mesa não fez nada de mal. De resto, eles até são uns tipos bem comportados, pelo menos quando comparados comigo. Mas também, por essa bitola, quem é que não o é?

A coisa começou de um modo simples. Após nos sentarmos à mesa, o Carlos, pessoa mais atenta do que eu, observou que a Marta, situada atrás do balcão, trazia hoje uns calções curtos, coisa inédita e portentosa, pelo menos naquelas paragens. Sendo eu, como sou, um indivíduo histericamente calmo, reagi com a minha costumeira serenidade, começando de imediato a roer o guardanapo, enquanto babava abundantemente a gravata. Ao longo da refeição, consegui controlar-me admiravelmente, não tendo feito mais do que uma dúzia de tentativas baldadas para a trazer cá para fora. Mas, apesar de toda essa aparente indiferença, a coisa estava a moer-me, cá por dentro.

Não resisti, à saída, e espreitei para dentro do tantálico balcão. Confirmado o prodígio (e que prodígio, meu santo Priapo), vi-me compelido a intimar a jovem, em tom carinhoso mas firme, para que no dia seguinte servisse às mesas, nas mesmas vestes em que se achava. Ela não me levou muito a sério, helás, mas levou-me a patroa, que estava ali perto. Ofendi, ai de mim, a digníssima senhora, que logo me prometeu, em tom seco, que todas elas estariam de mini-saia, no dia seguinte. Agradeci com entusiasmo, mas, pensando melhor no assunto, começo a suspeitar de que ela talvez estivesse a ser irónica. Eu não sou de intrigas, é claro, mas receio bem não ver ninguém de mini-saia, amanhã.

Serve esta crónica para falar de pernas, e do desproporcionado fascínio que estas parecem sempre exercer no sexo masculino, o dito sexo fraco (assim chamado porque as mulheres, infelizmente, não costumam sofrer de fraquezas destas). É claro que quem fala de pernas, fala de outros atributos femininos, não apenas os boçalmente evidentes, como a proeminência das glândulas mamárias, ou a rotundidade daquela parte da anatomia que serve para sentar o resto do corpo, mas também as linhas suaves do antebraço, a curva esbelta de um pescoço bem delineado, a graciosidade de salgueiro jovem de uma cintura que se inclina ternamente. Tudo isto nos enleia e mesmeriza, e isso, dizem elas, é mau, e só prova que somos todos uns tarados sexuais. Mas, seremos mesmo?

Entendamo-nos: todas as mulheres que eu conheço partem de um mesmo princípio, que tem para elas o valor de um dogma. A saber, que sempre que um homem admira um atributo físico feminino, está por força a pensar em ter sexo com a dona desse atributo. Este ponto de vista, redutor como é, apresenta todavia a vantagem de permitir a qualquer mulher, sem muito esforço intelectual, supor que compreende os homens.

A coisa, uma vez que se aceite esta premissa básica, torna-se de uma simplicidade infantil: o homem detém-se na contemplação de um decote mais profundo, ou mal consegue conter um assobio de admiração, ante umas pernas bem torneadas? Está a pensar em sexo! Admira, numa jovem, o olhar límpido, e o pé breve? Ora bem, toda a gente sabe o que fica a meio caminho entre os olhos e os pés, e é claro que o gajo tem sexo em mente! O homem opta antes por elogiar, com entusiasmo, a gaze diáfana do vestido mimoso? Qual gaze, e qual diáfana, o que tu queres é ver-me descascada, que é para me saltares em cima! O homem é, enfim, um lírico, um sonhador, um Lord Byron, que lhe suspira ao ouvido, “She walks in beauty, like the night / of cloudless climes, and starry skies; / And all that’s best of dark and bright / meet in her aspect, and her eyes”? Céus estrelados e climas sem nuvens, o meu rabinho! Ele está mas é a pôr-se a jeito, e, se não me precato, isto ainda acaba em sexo!

Pessoalmente, acho lamentável que as mulheres pensem de tal forma, e não posso impedir-me de sentir que estão a perder uma parte importante da vida, ao fugirem dessa sensualidade que pode sempre estar presente na camaradagem entre duas pessoas de sexos opostos, mesmo que jamais esteja em causa, por diferenças de personalidade, de cultura, de idade, até, a possibilidade de acabarem juntas na cama. Não, é como se cada homem fosse, única e exclusivamente, um feroz predador sexual, sempre com o fito de passar à acção, e toda a mulher devesse escolher, a cada momento, entre ser uma puta ou uma freira.

Não me compete falar pela globalidade do sexo masculino, e não estou sequer mandatado para falar pela mesa 19. Mas, falando exclusivamente por mim próprio, confesso aqui, pelo que possa valer, e não obstante as penalidades que isso me possa acarretar, a minha incondicional admiração pela beleza feminina. Mais, para os devidos efeitos, aqui declaro e juro que essa admiração, ou antes, essa obsessão, se confina exclusivamente ao corpo feminino, não se estendendo a qualquer dos seus adornos e atavios. Por essa razão, evidentemente, prefiro vê-las nuas.

É claro que esta minha preferência, mais do que justificar, explica inteiramente o lamentável episódio que deu o tom de abertura à presente crónica. Ver as pernas da Marta era, para mim, uma tentação irresistível. E por que razão não o seria, de resto? Ninguém estranharia que eu passasse horas na fila de entrada de um museu, para ver “Os girassóis”, ou “A ronda nocturna”. Porque não haveria, nesse caso, de me debruçar sobre o balcão, a fim de contemplar essa outra obra de arte, as bonitas pernas da Marta?

Ninguém ganha o rótulo de tarado por querer ver a Mona Lisa, ou as pinturas de Renoir, que, convenhamos, são todas feitas de gajas nuas. Por que razão serei eu obcecado por sexo, se gosto de olhar para as pernas da miúda? Nunca tive sexo com um par de pernas, nem conheço quem o tenha tido. E se eu admitisse que também não me importava se ela estivesse ainda mais despida, isso valer-me-ia o quê, seis anos de prisão efectiva?

O paraíso, para mim, é algo assim como um prado florido, esvoaçado por coloridas borboletas, e percorrido por lindas jovens nuas. Ninguém cuida, decerto, que eu tenciono papar as borboletas, ou enfiar as flores no rabo. Porquê pensar, então, que o que eu quero é saltar para a espinha das moças? Beleza é beleza, e uma mulher nua, convenhamos, é uma perfeita beleza. Haverá certamente quem pense de outro modo, mas eu, pessoalmente, gosto.

P.S. Nem de propósito. Antes de me ir deitar, entretive-me a ver uma série policial. Tratava-se de um psicopata que assaltava bancos, e obrigava todos os seus reféns a despirem-se. O mistério do seu comportamento confundia os detectives, que não sabiam o que pensar dele. Eu, como espectador, fiquei igualmente intrigado. Quero dizer, porquê bancos? Então, não os podia obrigar a despir noutro lado qualquer? Ele sempre há com cada maluco!

3.05.2007

79 – Os Óscares da mesa 19.

Aviso ao leitor: esta crónica contém linguagem adulta, susceptível de chocar algumas sensibilidades. Nomeadamente, deverão abster-se de a ler todas as pessoas que se ofendam com a palavra “caralhinho”. Quanto às pessoas que se ofendem com a expressão “caralhinho de ouro”, deverão, além de se absterem de ler esta crónica, procurar urgente ajuda psicológica, porque, com franqueza, isso não é normal, caramba!

Já diz o povo que a coisa é certa e sabida, chuva em Novembro, Natal em Dezembro. Com idêntica regularidade, retornam uma vez mais os prémios da academia americana de cinema, os famosos Óscares. Conta-se que o galardão terá sido inicialmente instituído por um emigrante português, o senhor Óscar Tibúrcio Alho (mais tarde celebrizado pela canção, “Lá vai o Óscar Alho / Alegre e trabalhador / Lá vai ele para o trabalho”). No projecto original, os prémios seriam constituídos por peças de cerâmica, importadas, expressamente para o efeito, da terra natal do artista, as Caldas da Rainha, mas depois lembraram-se da estatueta dourada, e pronto, apaneleiraram a cerimónia toda.

A mesa 19 não é Hollywood, nem se parecem os nossos filmes com os filmes deles (a própria palavra Hollywood, de resto, significa “Santo Pau”, coisa de certo modo afastada dos nossos gostos e preferências). Sinto, aliás, uma certa pena daquela pobre gente, dos trabalhos e custos em que incorrem para produzir a mais simples cena de um filme, que, assim mesmo, se arrisca a ser um fiasco de bilheteira. O que não daria o Martin Scorsese pela possibilidade de assegurar um sucesso com o mero acto de partir um copo, pedir a conta, ou falar muito alto. Como ele seria feliz, vivendo num mundo onde a simples invenção de uma nova forma de arreliar a Vânia garante uma lotação esgotada. O problema dos americanos, é claro, é que têm sempre de fazer as coisas da maneira mais complicada.

Ao longo de quase oitenta crónicas, e muitos mais almoços, tem-se feito grande cinema na mesa 19. Alguns filmes notáveis, curtas-metragens com abundância, diversos documentários, e animação em quantidades que fariam empalidecer de inveja os estúdios da Warner Brothers. Se há coisa que não nos podem negar, é que nós somos muito animados. Só não nos podemos considerar, com inteira propriedade, uma indústria do celulóide. Esse título, há que admiti-lo, pertence ao próprio restaurante, embora o celulóide se apresente geralmente com outros nomes, como frango de caril, favas à portuguesa, etc. Mas, adiante…

A questão é esta, parece-me bem que, nesta fase do campeonato, já vamos merecendo os nossos próprios Óscares. Longe de mim a pretensão de ganhar uma das tais estatuetas rabichonas, mas não me desgostava de ver o meu talento recompensado com uma caneca malandra, das que trazem uma surpresa no fundo, com um frade garanhão, de cordelinho, ou até um simples “das Caldas”, que eu pudesse exibir em prateleira nobre, lá em casa, informando orgulhosamente os amigos, “E ali está o meu Óscar, não reparem ser só um”. Está então decidido, a mesa 19 passa a atribuir Óscares, os bonecos logo se arranjam. Procedamos, para já, à sua distribuição.

Logo para começar, e antes que haja confusões, reclamo para mim o prémio de melhor argumento. Qual será esse argumento, é algo que ignoro, mas podem escolhê-lo livremente, entre as diversas crónicas. De resto, quem mais é que escreveu já um argumento, para além de mim? Ele há por aí um rapaz que afirma ter o seu próprio original, pronto para publicação, mas confesso que ainda não vi nada. É certo que nada do que eu até hoje escrevi é merecedor de um Óscar. Pronto, tudo bem, eu também não gosto desse nome, mudemo-lo, então. Senhoras e senhores, o caralhinho de ouro para o melhor argumento vai para… o Nuno.

Poucos almoços chegariam a acontecer, se não fosse pelos excelentes serviços do Carlos Santos, que habilmente dirige todo o cast, e nos coloca a todos em cena, no momento oportuno. Para além disso, tem a habilidade de reconduzir o filme ao seu enredo correcto, quando o elenco começa a descambar. Por todas estas razões, mesmo que outras não houvesse, vai para ele o caralhinho de ouro de melhor realizador.

Mas a essência, o frémito e a emoção dos prémios da academia, chega no momento de premiar as grandes actuações. Pouco interessa ao grande público, na verdade, quem escreveu ou realizou, tudo gente que de facto não chega a aparecer na tela. Não, as multidões pagam para ver o herói exclamar, “I’ll be back”, ou a heroína, dengosa, “Is that a gun in your pocket, or are you just glad to see me?”. Vamos, então, conhecer os actores.

Boas representações, eis o que não tem faltado ali, mas uma há, que a todas se sobrepõe. Trata-se do papel mais clássico e apreciado, desde “E tudo o vento levou”, até “António e Cleópatra”. Um homem e uma mulher que se detestam, porque gostam um do outro, e isso porque não gostam, mas até simpatizam, ou não, tudo com a finalidade de chatear o espectador. No meio de tudo isso, conseguem construir entre si um rapport que oscila entre “Música no Coração” e “O resgate do soldado Ryan”. Só tais papéis podem aspirar ao prémio supremo. Por essa razão, os caralhinhos de ouro de melhor actor principal, e melhor actriz principal, vão, respectivamente, para o Rui Cardoso, e para a Vânia.

Não se esgotam aqui, todavia, os prémios atribuídos à casa. De enfiada, saem três caralhinhos de ouro: a Marta, com o melhor guarda-roupa (sobretudo os brincos); a Lana e o Victor, ex-aequo, com o melhor filme mudo; e o patrão Pinto, com a melhor imitação de Marlon Brando no clássico “O Padrinho”. Em jeito de bónus, o caralhinho de ouro do melhor drama, atribuído à cozinha, pelo filme “Osso duro de roer”.

Após muita deliberação do júri, processo que chegou a envolver verbalizações de insultos politicamente incorrectos, ameaças completamente impróprias, e episódios esparsos de sodomia não consentida, decidiu-se atribuir colectivamente, ao Constâncio, Zé Eduardo, e Carlos Silva, o caralhinho de ouro de “Actor mais inapropriado para figurar numa cena pró-americana, a não ser que apareça como contestatário, e nesse caso tem de ser morto logo, ou o filme arrisca-se a ser X-rated”. Eu votei vencido, sobretudo por causa do comprimento do nome do prémio, e terei muito mais a dizer sobre isto, quando me puder sentar melhor.

Outros caralhinhos de ouro existem, e podemos enumerá-los brevemente. Temos o sempre importante caralhinho de ouro dos melhores efeitos especiais, que vai para o Paulo Sousa, o homem santola. O caralhinho de ouro do melhor filme estrangeiro vai para o Paulo Mendes, com o comovedor “As vinhas do vulcão dos pretos”, filme de uma intensidade que nos deixou zonzos. Por último, mas muito importante, temos o Carlos Lopes, cuja obra, “O homem frequentemente invisível”, lhe valeu o prémio “Assim também eu”. Fiquem bem, e um caralhinho para vocês todos.

2.27.2007

78 – O retrato da mesa 19.

Hoje não me apetece escrever. Ele há dias assim, dias em que a criatividade continua a fazer sentir o seu apelo, mas não da forma usual. Hoje, por exemplo, apetecia-me antes pintar. Eu cheguei a pintar, in illo tempore, um quadro cubista. Diversos especialistas, que o avaliaram, foram da opinião unânime de que eu, de futuro, deveria antes dedicar-me à pintura de portas. Pintei então uma porta, mas toda a gente me disse, Deixa-te disso, quem é que vai querer uma porta cubista? Desisti da pintura.

Ainda hoje me fremem os dedos, quando vejo uma tela e tintas. Resisto, porém, à tentação. Como disse uma personagem do Quino, quando a professora lhe perguntava quanto eram dois vezes sete, “Aquele que conhece as suas limitações, sabe dois vezes dois”. A tinta não é de facto para mim, que me ajeito bem melhor com as palavras. Mas hoje apetece-me pintar, e pronto. Está decidido, vou aqui pintar, em veras palavras, a mítica mesa 19.

Queira então o estimável leitor contemplar a modesta tela. Enquadrada em moldura nobre, destaca-se uma mesa corrida, cuja amesendação de papel sugere uma continuidade, onde apenas há duas, três, ou mesmo quatro mesas pequenas, e justapostas. Sobre o fundo de papel barato, exibe-se uma natureza morta, sábia composição de azeitonas, queijo fatiado, cestos de pão, e um pires com umas coisitas merdosas, tipo manteiga e patê, que não ajudam em nada o conjunto, mas não deixam de fornecer um curioso toque de cor.

Em volta da dita mesa, sentam-se uns quantos indivíduos, de aspecto esquálido e patibular, que semelham o Cássio de Shakespeare, temido pelo seu ar “magro e esfaimado”. Trata-se da entourage da mesa 19, entre a qual avultam os dois decanos da confraria, o Carlos Santos e o Rui Cardoso. Muito dissemos já sobre estes dois, pintemos agora a sua vera efígie.

A comparação, feita há tempos, entre este par e os velhotes do camarote, na série dos Marretas, não foi ocasional. As parecenças, contudo, são meramente a nível de atitudes, e não físicas. Fisicamente, são muito diferentes dos tais velhos, chegando mesmo a ser alguns anos mais novos. O que se passa, na verdade, é que eles riem da mesma maneira, e basicamente das mesmas coisas.

Isto, como é evidente, diz tudo. De que serviria aqui acrescentar que são ambos de estatura mediana, nem magros nem gordos, que o Rui se exibe num vampiresco casaco de cabedal, e que o Carlos todos os almoços troca os óculos de trabalho pelos óculos de lazer, excepto quando põe o terceiro par, que serve apenas para procurar os outros dois? Nada, está tudo dito, e aí ficam as duas figuras em tela, uma de cada lado da mesa.

Os dois lugares seguintes são ocupados por mim. Lá vou conseguindo, de uma forma ou de outra, usar uma única cadeira, mas acabo sempre por dar a impressão, mercê de uma curiosa ilusão de óptica, de que é a cadeira que está sentada em mim. Este breve intróito terá já sugerido ao leitor que eu sou, digamos, gordo. Pois bem, é verdade. Caso eu um dia participasse de um concurso literário, e um qualquer bambúrrio me guindasse ao lugar vencedor, estou certo de que as notícias diriam, “Temos em terceiro lugar um bom escritor, em segundo lugar um excelente escritor, e em primeiro lugar um gajo gordo, que parece que também escreve umas coisas”. C’est la vie

Mas nem tudo está perdido, pois ando a fazer dieta. Perdi até agora vinte quilos, e actualmente a balança falante do centro comercial limita-se a dizer, “Porra, que você é mesmo gordo” (antigamente, costumava gritar muito alto, em tom aflito, “Socorro, tirem o elefante de cima de mim”). Afora isso, uso o cabelo muito curto, quase rapado, que é para pesar menos, cara escanhoada, nas raras vezes em que me barbeio, casaco surrado e pouco limpo sobre camisa amarrotada, e calças no mesmo estado, a compor um ar geral de desmazelo, a que uma gravata distinta e sempre renovada fornece uma nota de divertido contraste. À parte isto, sou gordo.

Os restantes lugares são algo variáveis, ocupados como são por gentes de índole mais nómada, e mais afeita a variar. À minha frente, tanto se pode sentar o Zé Eduardo como o Rui Constâncio, duas figuras que importa aqui retratar, se a tanto me chegar a tinta que sobrou, após as vastas pinceladas requeridas pela minha volumosa barriga. O melhor instantâneo que posso fazer deles é o seguinte, se algum dos dois tentasse viajar de avião, durante um estado de alerta, passaria um mau bocado no aeroporto.

Não se dá isto porque tenham ar de terroristas. Nada de confusões, pois têm ambos ar de terroristas, e de que maneira, mas não é só isso. Vultus índex animi, o rosto é o espelho da alma, e, no caso deles, vultus índex tavoli XIX, o espelho daquela faceta da mesa 19 que é essencialmente anarquista, e não se consegue impedir de ver a destruição espalhafatosa como senda de progresso, e o camartelo como instrumento civilizacional. Entre os dois, um é mais espalhado e demolidor na crítica, o outro mais preciso e acerado, são talvez diferenças de idade, mas a essência é a mesma. São, de resto, invariavelmente intransigentes, e estou certo de que, caso tivessem feito parte da milenar seita dos assassinos, chefiada pelo lendário Velho da Montanha, que decidia quem devia ou não ser morto, o primeiro a ser assassinado seria mesmo o Velho, e lá ficava a seita sem mestre. É mesmo assim que eles são, não perdoam. Para além disso, são dois tipos impecáveis.

Estes são, digamos assim, os comparsas diários, mas há também os eventuais, os que, em vez de aparecer, vão aparecendo. Dentre os históricos, há que destacar o Paulo Sousa, pela originalidade de continuar a frequentar a mesa 19, tendo embora deixado de lá almoçar. Depois de compartilhar a refeição do meio-dia com a sua cara-metade, o que faz a coberto de um sigilo que a maioria das pessoas reserva para a amante ilegítima, de preferência do mesmo sexo, e seropositiva, o santola esgueira-se até à mesa 19, onde gasta o seu bom quarto de hora a olhar-nos ameaçadoramente, por sobre a borda do copo. Depois, esgueira-se, como a brisa por uma janela entreaberta, ou uma sapateira que vislumbra uma rocha convidativa. Mas é tarde demais, pois já ficou no retrato. Aquele casaco de cabedal, que ali vedes a esvoaçar junto à porta, era ele.

Histórico é também o Catarino, sendo bem mais recente o Carlos Lopes. Não é por acaso que aqui os junto, em pincelada promíscua. Para além da semelhança óbvia, que é a raridade com que somos honrados com a presença de qualquer destes beneméritos, eles compartilham ainda um mesmo aspecto, que não pode deixar de figurar nesta pintura: eles são excelentes pessoas, pessoas cuja boa índole é, talvez, boa demais para a nossa mesa. É coisa magnífica, o ser-se boa pessoa, mas tende por vezes a embotar outras qualidades, como o sarcasmo, o cinismo, e a maledicência. E daí, serão talvez eles quem tem razão. Não sei, realmente não sei. Afora isso, distingue-se o Catarino por ser o melhor técnico de assadura de sardinhas de que há memória em terras deste reino. Fazendo-lhes em breve esquiço o boneco, nota-se com facilidade que, entre os dois, não juntariam cabelo com que sujar o chão de uma barbearia, um por o trazer rapado, outro por não ter já grande coisa para rapar. Mas, nisto de cabeças, conta menos a cagadela de pombo na testa do que a merda que vai lá dentro, que é como quem diz, do crânio para fora, pouco interessa.

E, last but never the least, temos um terceiro Carlos, desta vez, o Silva. Perdão, não é bem assim, permitam-me que recomece. Peço então, estimados senhores, a vossa vénia e aplauso para o mui preclaro jurisconsulto, o bacharel Carlos Silva. Ecce homo, ei-lo que avança em direcção à lendária mesa 19, no que promete ser o encontro de duas lendas. A basta cabeleira, onde a respeitabilidade das cãs se alia à força anímica do azeviche, ilumina os tenebrosos meandros do restaurante, enquanto prossegue com destemor. A fronte alta guarda os mistérios do quid das coisas, o alfa e o ómega das leis que regem as gentes humanas, e os humanos destinos. Eu, porque escrevo uma crónica, posso sempre ir preso. Em igual pena incorrerá o Zé Eduardo, porque a não escreveu. Mas só o Carlos, bastião da jurisprudência, estará em condições de determinar quem será de facto deitado aos calabouços, e porquê. Só daquela efígie leonina sairá a explicação, as razões, com todos os de jures e de res, que determinarão o nosso porvir. O Carlos, a quem aqui se tece justificado, e de há muito preterido louvor, não goza, contudo, do subido estatuto que caberia a tão insigne legislador. E a que se deve, perguntar-me-ão, semelhante injustiça?

Pois bem, o problema é muito simples. É que um perito em leis, em formas de regulamentar a sociedade, isto é, em normativos, tem tanta procura na mesa 19, como um perito em disfunção eréctil num congresso de lésbicas. Eu serei talvez a excepção (tipo, a lésbica um bocado mais puta, no dito congresso). Eu acho piada a essa coisa de leis, e gosto de ver a lógica que preside à adequação da forma ao conteúdo. Mas, para ser franco, eu gosto de lógica. Gosto também das expressões formais, com abundância de locuções latinas, que revestem normalmente as leis. Mas, para ser franco, eu gosto de latim.

Pronto, sem querer, acabei por fazer, nos parágrafos anteriores, um retrato ainda mais fiel da minha própria pessoa. Pintei ainda, também sem querer, o melhor retrato possível da mesa 19. O resto, que é serem uns gordos e outros carecas, ainda é o que menos interessa. Aí tendes, posta em ceia, a nossa mesa 19, e, se um tal de Da Vinci vos vier dizer que o quadro dele é melhor, mandai-o falar comigo.

Nota: é evidente que muita gente ficou de fora, nesta pintura. Isso era inevitável, sob pena de se refazer a tal “Última Ceia” em versão Monty Python, com trinta e seis apóstolos, três Cristos (“o gordo compensa os dois magrinhos”, segundo eles explicavam), e um canguru. Não posso contudo omitir o excelente Paulo Mendes, presença sempre saudada na nossa mesa. Se não figura na pintura principal, é mesmo só por falta de espaço (eu sou um bocado gordo, não sei se já tinha dito isto), mas não deixará nunca de ser uma parte desta obra, que nós a cada dia vamos pintando.