12.14.2006

56 – Eu, Carolino.

Devido à época dos feriados, o autor ver-se-á impossibilitado de escrever atempadamente algumas das crónicas. Estas serão escritas por autores convidados, em sua substituição. A presente crónica foi escrita, a nosso pedido, por um conhecido prostituto da nossa praça, a quem chamaremos, por razões de privacidade, Carolino.

Olá, chavalos, eu sou o Carolino. Esse não é, no entanto, o meu verdadeiro nome, sabem? Eu queria escrever isto em meu próprio nome, porque quem não deve, não teme, e eu gosto de andar de cabeça bem erguida, mas disseram-me que não, que havia umas porras, e que era melhor assim… enfim, consenti. Mas não quero que haja confusões, eu sou uma gaja honesta, e não tenho medo de ninguém.

Lá por uma miúda como eu andar uma dúzia de anos ao cabrito pelos bares de alterne, não quer dizer que façam dela uma mulher da vida. Eu sou uma rapariga séria, e, embora tenha mais pelos nas pernas do que uma cabra angorá, ainda sei ser muito sensual. As minhas relações com aquele restaurante são o que são, e ninguém viria agora falar nisso, se não fosse essa pulhice das crónicas, que veio despertar a opinião pública. Mas eu mantenho o que disse, o meu relacionamento com a mesa 19 foi sempre pautado pelo maior respeito. Eu disse pautado, seus morcões, não se ponham agora a fazer trocadilhos sem graça.

Eu sou, a bem dizer, uma dama de companhia. Os clientes chegam, e querem uma dama para lhes fazer companhia, e é aí que eu avanço. Há uns que são mais esquisitos, e pedem uma mulher que seja mesmo mulher, mas a maioria contenta-se comigo. A mesa 19 é um caso diferente, ninguém ali pediu os meus serviços. Eu vim, por assim dizer, com o pacote, fui somente uma oferta, algo que foi dado. E acreditem-me, quanto a isso de dar o pacote, eu sou entendida.

Mas vieram depois para aí com boatos e insinuações, que eu isto e mais aquilo, que eu era a pedicura da mesa 19, e ainda lhes aparava os pelos das orelhas. Disseram mesmo que as crónicas eram uma metáfora, uma alusão velada a coisas mais carnais. Pois bem, é mentira, as crónicas são o que são, e eu sou uma rapariga honesta, acho que já disse isto.

Também nunca cortei as unhas dos pés da mesa 19, como se diz por aí. Sucedeu apenas que eu, em alturas de maior nervosismo, comecei a roer as minhas unhas até ao fim, começando depois a roer unhas alheias, e as dos pés estavam mais à mão, desculpem lá o trocadilho.

Não me parece também justo ser coimada de prostituta, apenas porque fui algumas vezes apanhada com a boca na botija. A boca é minha, que demónio, e eu meto-a nas botijas que quiser. Lá porque a mesa 19 é feita de gente séria, não quer dizer que eu não seja séria também. De resto, vou por a toda a gente um processo em tribunal, e aí é que vão ver quem é a puta.

Quanto ao resto, desejo à mesa 19 as maiores felicidades. Teriam mais sorte se mudassem de sítio, e viessem, por exemplo, até ao meu bar. Mesmo sem isso, vão em frente, e nunca parem, suas grandes badalhocas.

12.11.2006

55 – Admirável mundo novo.

Devido à época dos feriados, o autor ver-se-á impossibilitado de escrever atempadamente algumas das crónicas. Estas serão escritas por autores convidados, em sua substituição. A presente crónica foi escrita, a nosso pedido, por um imbecil.

Olá, estão todos bons? Eu sou o Bernardo Bobone, e foi com grande satisfação que aceitei o convite para escrever esta crónica da mesa 19. Para dizer a verdade, estou mesmo um pouco excitado. Ora bolas, para quê mentir, estou muito excitado. Já não me sentia assim, sei lá, desde o dia em que comprei o GPS para o meu jipe (eu só uso o jipe para ir para o trabalho, que é para não o sujar, mas se um dia for viajar com ele, aquilo vai dar muito jeito).

Eu sou um grande admirador da mesa 19, sabem? Acho giríssimo que as pessoas se juntem assim, e digam coisas inteligentes, e todos se riam muito, e tudo. Eu também já tentei fazer isso, mas o problema é que nunca me lembro de nada para dizer. Mesmo assim, de vez em quando lá sai alguma coisa, mas depois todos se riem, e eu não percebo porquê, porque aquilo nem era para ter piada. Mas pronto, o importante é que as pessoas se divirtam.

Apesar de tudo, sinto-me na obrigação de formular algumas críticas à mesa 19. Não me parece bem, por exemplo, que se beba tanto ali. Bem sei que as descrições do autor costumam ser um pouco exageradas, mas sempre se chega a gastar ali, sei lá, um litro de vinho, e às vezes ainda há digestivos. Não é por mais nada, mas são pessoas que ainda vão trabalhar a parte da tarde, e estou seguro de que o patrão não gostaria de os ver beber tanto. Eu, pessoalmente, nunca sei quem me está a ver, e por isso só bebo ice-tea.

Outra coisa que acho mal, é o tempo que eles gastam a almoçar. Sejamos honestos, aquilo são pessoas empregadas, que recebem um ordenado para desempenharem um certo trabalho, num determinado horário, e a quem o empregador atribuiu sessenta minutos para almoçar. Demorar quase duas horas nessa função, é cometer uma fraude. Eu próprio nunca gastei mais de cinquenta minutos a almoçar, mas depois, quando o meu director me veio pedir para ser mais produtivo, arranjei maneira de diminuir o tempo para vinte minutos. E até tive vantagem nisso, estou muito mais magro, agora.

É que é preciso ver como estão as coisas, hoje em dia. Os empregos escasseiam, e há que manter aquele que temos. É claro que isso implica alguns sacrifícios, como o horário alargado, os fins-de-semana trabalhados a título gracioso, os turnos de prevenção gratuitos, mas é preciso olhar para isso como um privilégio, e não como uma imposição. A coisa podia ser bem pior, podíamos estar todos a viver debaixo da ponte, em vez de ter um patrão que ainda nos vai pagando um ordenado.

Eu aprendi muito cedo a minha lição, temos que lhes dar o que eles nos pedem. É bem possível que não consigamos chegar a lado nenhum dessa forma, mas qual é a alternativa? Vamos correr o risco de irritá-los, fazendo o que nos apetece, e expor-nos a perder o emprego? Não há volta a dar-lhe, quem está na mó de cima manda, e quem está na mó de baixo tem de aguentar.

Bolas, e eu, com isto tudo, acabei por não escrever a crónica que me pediram. Paciência, agora também já não pode ser. Estou cheio de pressa, o meu chefe convocou-me para uma reunião de última hora, às oito da noite. São sempre de última hora, estas reuniões, e esta nem é muito má, a do outro dia foi às onze da noite. Enfim, há que fazer alguns sacrifícios, neste mundo corporativo.

Se me voltarem a convidar, prometo que escrevo uma crónica a sério. Até já me lembrei de um tema, farei uma breve dissertação sobre a sodomia passiva, e as formas como esta nos pode ajudar na nossa carreira profissional. Até lá, despeço-me, com um grande Xi, do

Bernardo Maria Bobone
Otário Certificado.

12.07.2006

54 – Quem matou a mosca morta?

A mesa 19, lesta e perspicaz como sempre, há muito tempo descobriu que o homem santola tem uma mosca de estimação. Tem tal mosca a peculiaridade de não andar com ele, mas antes se antecipar, e comparecer meia hora antes nos sítios aonde ele irá, alado arauto a trombetear a chegada do seu fidalgo. Ora bem, essa mosca está, desde hoje, na situação de desaparecida, presumivelmente morta.

Serve esta crónica para falar, justamente, do desaparecimento da mosca do Paulo Sousa. E, nada de confusões, desenganem-se aqueles que têm o tema por mesquinho ou insignificante, pois o assunto é da mais magna importância. É que aquela mosca, mais do que um simples artrópode, era um símbolo, um estandarte de liberdade, de dignidade humana, como que uma súmula dos direitos do homem, impressos em três milímetros de corpo preto e zumbidor.

Quando a mosca do Paulo voava sobre a mesa 19, nós figurávamos avistar nada menos do que um esquadrão da aviação inglesa, cruzando os céus da França ocupada. Aquela mosca chegava-nos de longe, vinha ferida e amarrotada do esforço de ter atravessado as baterias inimigas do lugar-comum, as mesmas que decretam não poder um homem ir a mais do que um restaurante na sua hora de almoço. Fazendo tábua rasa de tais bombardeamentos, a boa da drosóphila pairava sobre nós com a sua boa nova, anunciando que o Paulo triunfara de novo sobre os espíritos tacanhos, e era ali esperado para um digestivo. Onde estás agora, mosquinha? Quem te matou?

Encaremos a coisa como um caso de polícia. A primeira suspeita, evidentemente, é a Vânia. Não há que duvidar, ela foi já vista a tentar matar a mosca, e só os nossos esforços combinados foram capazes de a impedir. Quem sabe se, noutro dia qualquer, a boa da moça, vendo-se livre de tais peias, não acabou por consumar o mosquicídio? Móbil do crime, um mero boicote à mesa 19, um desejo maléfico de impedir a livre circulação de ideias, que ali tão habitualmente se pratica.

Temos depois a Marta. Ela bem disfarça, mas nós sobejamente sabemos como ela luta para se chegar à mesa 19, sempre que pode. A Vânia costuma ser um obstáculo intransponível, e matá-la, de qualquer modo, dava muito nas vistas, mas uma mosca é diferente. A Marta, definitivamente, é uma suspeita a considerar.

Temos depois a Lana, caso, entre todos, o mais provável. Compreende-se bem que o KGB, confrontado com um núcleo de pensamento livre, tenha accionado a sua agente no local, a loura e eslava Lana. A ideia seria matar todos os comensais da mesa 19, mas estes espiões russos já não são o que eram dantes, e matar uma mosca é uma alternativa viável, bem à dimensão da guerra fria dos nossos dias. Sim, a Lana é a minha suspeita favorita.

Depois, há os elementos da própria mesa, que se podem ter ressentido das atitudes do santola, ou, até, da sua própria existência. Mas acho isso menos provável, dado que não é nosso hábito ter consciência seja do que for. Mas são suspeitos, tout de méme, e convém não os esquecer.

Tudo considerado, acabamos por ficar sem saber quem matou a mosca do Paulo. E é assim que as coisas devem ser, nós vivemos num mundo de hipóteses, e não de realidades. Real, para nós, é apenas o termos de morrer um dia, coisa da qual, de resto, não estou inteiramente seguro. Tudo o resto é especulativo, e esta crónica não lhe fica atrás.

Mas a especulação é boa, ou pelo menos tem de sê-lo, dado não termos mais nada. Especulação por especulação, eu acho que o assassino é a Vânia. Porquê? Bem, por que sim, ora essa. A coisa é evidente, tão óbvia como ser o Paulo uma sanduíche de berbigão. Ou uma tangerina azul, como facilmente se demonstra.

12.06.2006

53 – Epifania.

Já desde há dias que a Vânia nos tem dado algumas lições básicas de psicologia. Ora, todo o conhecimento tem as suas consequências, e este não foi excepção. Durante o almoço de hoje, entre nacos de porco e feijão com chocos, vivi inesperadamente uma experiência sobrenatural. A pouco e pouco, comecei a perceber melhor aquela coisa, até que, sem que nada o fizesse prever, desceu sobre mim o espírito de Sigmund Freud.

Interroguei-me, a princípio, sobre que coisa seria aquela, pouco afeito, como sou, a ser possuído por fantasmas, ainda que notáveis, mas a evidência impôs-se: eu era de facto o velho Segismundo, completo com a barbicha de bode, e a careca de supositório. Investido da minha nova personalidade, observei, com um olhar subitamente perspicaz, as pessoas que me rodeavam.

A Vânia, claro, em primeiro lugar. Que coisa mais óbvia, como foi que eu nunca me apercebi do síndroma obsessivo-compulsivo que a domina? Ela é obsessiva, isso é evidente. Mais, sofre de obsessões, e de compulsões. As compulsões são notórias, tanto como as obsessões. É isso, obsessiva e compulsiva. Ela não o pode evitar, juro-o, e seria capaz de passar aqui o dia a repetir, a Vânia é compulsiva. E obsessiva. Eu já tinha dito isto?

Segue-se o Cardoso, um caso evidente de esquizofrenia. Eu também acho. As suas múltiplas personalidades disputam o tempo do almoço, e isso vê-se na forma como come. Desculpa, não percebi, podes explicar isso? Claro, o que acontece nele é que uma personalidade come o bacalhau, outra a carne, duas outras bebem o tinto e o branco… Pronto, já entendi. E isso é grave? Até certo ponto, a esquizofrenia é uma forma de loucura. A sério? Caramba!

Vem depois o Zé Eduardo, claramente paranóico. Não apenas isso, mas acho que ele está combinado com os gajos que andam atrás de mim. Ele fala de conspirações, da CIA e da Mossad, mas a conjura é outra, eles querem é apanhar-me. Mas eu sou mais esperto, finjo que caio naquela conversa, como se ele não fosse paranóico, mas, às ocultas, vou juntando cartão em casa. Quando eles vierem, vão encontrar-me pronto.

O Carlos, sabem, é psicopata. Tem ilusões tremendas, podendo mesmo chegar a matar pessoas por causa das suas alucinações. É, igualmente, uma grande tangerina azul. Isso, ou um búzio, dependendo dos dias. Gosto muito dele, é claro, mas ele é um búzio, e os búzios têm de ser eliminados. Vou fingir que não percebi que ele é um mutante, e tentar aproximar-me sem ser percebido. Deverei usar uma faca, ou estrangulá-lo com uma corda de piano?

O Constâncio é maníaco-depressivo. Desculpem, eu não queria dizer isto. Retiro tudo, só não quero que se zanguem comigo. Sinto-me tão sozinho. Não queria dizer mal de ninguém, só apontei um caso, puramente hipotético, de depressão bipolar. A verdade, desculpem, é que ele passa períodos soturnos, seguidos de outros de exultação. É isso que se chama bipolar, não é? Hein, hein, é ou não é? Embora aí, vamos alugar um carro de som, e gritar a palavra ao mundo! Bipolar! Eia, eia, eia…

O Catarino, há muito que o sabemos, é um pervertido sexual. As suas acções não se afastam da normalidade, até que passe ao seu alcance uma mulher bonita. Aí, ele perde o controlo, não sabe o que diz… mulher linda, perdão, do que estávamos a falar? Que se lixe, anda cá, borracho, nham, nham, nham.

Só falta, nesta breve análise, a minha humilde pessoa. Sinto desapontar a audiência, mas eu não sou maluco. Nesta fantasia, eu sou o psiquiatra, que é o único que goza do privilégio de não ser louco, por mais que viva a loucura dos outros. Por isso, e por maioria de razão, eu não sou doido. Não, eu sou uma galinha.

12.05.2006

52 – De boas intenções…

Somos um país devoto. Ou seja, somos um país de devotos. Negue-se o que se quiser, mas isto não há que negar. Comprovei-o hoje, se de comprovativo necessitasse, ao embarcar num táxi que exibia, pendente de uma corrente respigada de um rosário, uma cruz de Cristo. Enxertada na mesma corrente, outra cruz pendia, bem como uma medalha, quem sabe se de São Cristóvão, padroeiro dos viajantes. No retrovisor dependuravam-se ainda os elos de outra corrente, talvez suspirando saudades de uma terceira cruz, entretanto extraviada.

Senti-me feliz e confortável, ao embarcar no carro de praça. Na selva do nosso dia-a-dia, senti-me ali como que tendo abicado a porto cristão. Fossem quais fossem as vicissitudes do caminho, contava pelo menos com um guia sereno, pio e canónico. Não foi, portanto, pequeno o meu espanto, quando vi aquele suposto apóstolo da temperança apostrofar animalescamente um peão, que cometera o solecismo de tentar atravessar na passadeira.

Mais percurso andado, os crimes de ódio iam-se sucedendo, um acintoso negar de prioridade, depois um triunfo espúrio, ao cruzar a frente de outro veículo, na entrada de uma rotunda. A cada manobra violenta, as cruzes oscilavam, e era de recear que o próprio Cristo se fosse já sentindo enjoado.

Esforcei então a memória, vasculhando pacientemente na velha arca poeirenta que é o meu escasso conhecimento bíblico. Diria o Sermão da Montanha, numa qualquer obscura bem-aventurança, que era dos alarves o reino dos céus? Penso que não, assim como não pertencerá também aos mais rápidos, ou sequer aos mais mal-educados. Parece que o cobiçado reino, depois de feitas as contas finais, ficará propriedade dos mansos, nem mais nem menos. Tudo certo, mas quem são eles, esses mansos?

No triste mundo em que vivemos, os mansos mais comuns são os cornos mansos, mas é discutível que a bem-aventurança se refira a eles, sob pena de se povoar o Paraíso com um mar de chavelhos, que não tiveram outra virtude que a de se terem deixado comer por alguém que, justamente, se deixou comer por alguém. A não serem os cornudos, terão de ser os calmos, os serenos, os que mantêm a calma e a equanimidade, os que dão mais do que recebem, contribuem mais do que usufruem, e serenamente vão fazendo deste um mundo melhor, um ensaio de Paraíso na Terra.

Não há cruzes na mesa 19, tanto quanto até hoje me apercebi. Também não há mansos, talvez por sermos ainda muito novos. Mas, sem cruzes nem medalhinhas, estamos bem mais perto do Céu do que aquele motorista de táxi. E estou em crer que os mansos, quando chegar a altura da verdade, mais depressa nos deixam entrar a nós no Céu, do que ao taxista. Tais pessoas, dir-lhe-ão, podem ir directamente para o Diabo que as carregue, com cruzes e tudo. Aquilo que esses são, não há missas nem bentinhos que redimam.

Amén.

12.04.2006

51 – Desaparafusados.

A Vânia, soube-o hoje, já teve um parafuso a mais. Deu-se isto em tempos mais juvenis, quando ela era uma indefectível praticante do desporto radical que consiste em cair da moto. Um dia houve, em que ela se excedeu na prática, fracturando assim o rádio, que nunca mais voltou a tocar música de jeito. Resultou isso em ter de passar um bom número de meses com um parafuso no braço, coisa que entretanto já retirou. Nós, sem termos partido nada, temos pelo contrário um parafuso a menos.

Isto é verdade, tão verdade como começar a Vânia a contemplar ponderadamente os nossos disparates, e a interrogar-se, seriamente, sobre se terá escolhido a profissão adequada, e se aturar malucos será de facto a sua vocação. É que nós, para falar com franqueza, não batemos bem da bola.

Serve esta crónica para falar de malucos, e do seu papel na sociedade. Hoje, por exemplo, a Vânia discorria sobre o tamanho dos carapaus, e a sua relação com as sardinhas. Eu, é claro, aproveitei logo para lhe explicar como as latas de sardinhas são pescadas, e como os pescadores se afadigam a abri-las, e a limpar o peixe dos seus molhos de azeite ou de tomate, a fim de produzir a sardinha fresca. Ela acabou por se retirar, chocada, como se houvesse algum mal em acreditar em coisas como estas.

A verdade é esta, eu estou-me marimbando para a forma como a sardinha é pescada, como espero que qualquer pessoa esteja, a menos que essa pessoa seja, por um eventual acaso, um pescador de sardinhas. O modo como as latas de sardinhas se reproduzem não me interessa minimamente, embora me tenha esforçado por o explicar minuciosamente à Vânia. Só não quero, a única coisa que não desejo, é que me venham lembrar que as sardinhas são pescadas, monotonamente, numa rede de arrasto. A realidade não tem nada que vir estragar a melhor fantasia.

Vem isto a propósito de pessoas sérias, e da melhor forma de as fazer descontrair. Hoje disparatámos tanto, que até a Vânia, sisuda e prosaicamente realista, se começou a rir. Mas eles andam aí, os cinzentões. Podemos encontrá-los no trabalho, na rua, e até em blogs. Gente que vive a realidade, que vive na realidade, que vive da realidade, que vive para a realidade. Chatos, em suma.

No caso da Vânia, acontece que ela tem queda para o realismo, e o asfalto onde ela cai somos nós. Daí a sua constante tentativa para nos retirar dos delirantes lagos da fantasia, e nos reconduzir à aridez desértica do mundo real. Nós rimo-nos, mas é só porque não achamos graça.

Pode parecer, bem, idiota, o facto de nos comportarmos como um bando de idiotas, mas a alternativa é sinistra. Imagine-se, só por hipótese, um mundo de gente séria, muito consciente da sua própria importância, como se de facto tivesse alguma, postulando petreamente as suas ideias sérias. Como seria esse mundo?

Pois é, seria igualzinho a tantos ministérios, tantos conselhos de administração, tantas assembleias, onde todos dizem, com ar invariavelmente sério, as mais tonitruantes atoardas. Um bando de imbecis, ciclicamente validados pelo conceito que cada um faz do outro, em troca do conceito que o outro há-de fazer do um.

A mesa 19 é diferente. Nós somos forçados a viver no mundo real, mas tentamos escapar dele à hora do almoço. A realidade pode continuar a existir à nossa volta, nós estamos numa dimensão diferente. A Vânia pode abominar o nosso comportamento, mas de que lhe serve vir explicar-nos isso? Nós somos malucos! Dã…

Até vir o dia em que os figurões de pacotilha hão-de cair lá bem do alto da sua suposta importância, e se vai acabar por perceber quem é de facto maluco. Até lá, digam-me o que quiserem, mas digam-no com respeito. É que, não sei se sabem disto, eu sou Napoleão Bonaparte. Hoje, que amanhã logo se vê.