8.30.2006

25 – Pesadelo.

Cá vem a crónica 25,
Que traz muito que contar.
Ouvi agora, senhores,
Uma história de esfaimar.

Sentaram-se todos à mesa,
Augurando um bom manjar.
Barrigas rugindo de fome,
Dente pronto a trabalhar.

Rogaram pragas à Vânia,
Que os queria à fome matar.
Não havia que comer,
Não havia que manjar.

Pediram, por Deus, um pão,
Ou uma lasca de chouriço.
Havia só polvo, e rijo,
Mas ninguém embarcou nisso.

Já não havia salsichas,
A dobrada tinha acabado.
Das costeletas na brasa,
Ficara só o bronzeado.

Nisto, banhado em suor,
Num sobressalto acordei,
Para ver, perante mim,
Repasto digno de um rei.

Já não falo mal da Vânia,
Que agora juro adorar.
E por nos ter alimentado,
Com o meu filho a hei-de casar.

E se a boda ela recusar,
Talvez para me fazer castigo,
Está lixada, a rapariga,
Terá de casar comigo.

24 – Rentrée.

E pronto! Juntamente com esta semana, chega ao fim Agosto, o tal mês que dá gosto. A próxima segunda-feira, já de pés bem assentes em Setembro, será testemunha do regresso, em peso e em bloco, da mesa 19. Lá virá o Carlos, refiro-me ao Santos, bem como o Catarino. Lá virão, igualmente, os dois Ruis, prontos a medirem os bronzeados rivais. Corre pelo restaurante o rumor, ainda por confirmar, que a Vânia, ao saber destas novas, encomendou já duas caixas de Xanax, pela cautela.

Não se cuide, todavia, que a mesa 19 fechou para férias. Não, meus caros senhores, a nossa mesa 19, como instituição nacional que é, fez o mesmo que o resto do país: continuou a trabalhar, só que a meio gás. O regular funcionamento do importante organismo foi assegurado pelos beneméritos Carlos, agora estou a falar do Lopes, e Zé Eduardo, coadjuvados pela sempre apagada presença deste vosso dedicado cronista. A fechar as hostilidades, quero dizer, pela hora dos digestivos, também lá costumava aparecer o Paulo, vindo, quem sabe se dos enlevos conjugais, se de mais ímpias paragens. Nós nunca lhe perguntámos, e desconfio que ele também não nos responderia.

Uma coisa tem de ser dita, a favor dos almoços com reduzido número de convivas, é que permitem conversas muito mais direccionadas, consistentes, e completas. Foi numa dessas conversas que, pelos bons ofícios dos meus cultíssimos colegas, me inteirei cabalmente de um enredo que antes tivera por irremediavelmente impenetrável, o célebre caso Mateus. Assim eu, que só conhecia, até aí, o Mateus da bíblia, o ministro do plano Mateus, e o Mateus rosê, alcancei conhecer o que, antes de mim, só o país inteiro sabia. E isso, creiam-me, não é pequena glória.

A conversa de hoje foi diferente, e assumiu sérios contornos geopolíticos, tomando como base, receio-o bem, a crónica anterior, que se intitulou “Portugal”. Mas nem só destes sisudos assuntos nos ocupámos: a semana anterior, por exemplo, foi fértil em eventos, com almoços a começarem tarde, e a prolongarem-se por tardes inteiras. Foram mesmo batidos recordes, mas nenhum que me interesse confirmar, excepto na presença do meu advogado. Tudo considerado, no entanto, passaram-se uns belos dias.

Mas o Verão acabou, e o início da próxima semana assistirá ao regresso, em força, da mesa 19. Os veranistas fatigados, encalmados pela impiedosa canícula, regressarão saudosos aos seus locais de trabalho, louvando a frescura do ar condicionado, e a cor convincente daquele líquido preto a que chamam café, por razões que ignoro. Quando o velho relógio da torre – não temos uma coisa nem outra, mas façamos de conta – soar as doze badaladas do meio-dia, toda a mesa 19 comparecerá, aguerrida, no seu posto.

Toda? Não, não exactamente. Para ser inteiramente honesto, desejo a todos um bom regresso, mas eu, pessoalmente, vou de férias a semana toda. Divirtam-se…

8.29.2006

23 - Portugal.

Hesitei antes de colocar aqui esta crónica, no receio de que me digam que ela não tem aqui cabimento. É que esta crónica é diferente, porque não fala da mesa 19. No entanto, eu acho que a sua mensagem tem valor, se posso falar assim de algo que eu mesmo escrevi (é claro que posso, quem é que me vai impedir?). Seja como for, sempre há uma certa relação: é que a mesa 19 também fica em Portugal.


Isto já chega! As coisas aguentam-se até um certo ponto, mas depois há que dizer basta! Tudo o que é demais farta, caramba! E outras expletivas do mesmo género, culminando no previsível etc., com os três pontinhos do estilo…

Vem isto tudo a propósito desta coisa velha, bizarra, e difícil de definir, que responde pelo nome arcaico e desusado de Portugal. Já nos idos de 1871, escrevia Eça de Queiroz (cito de memória, e provavelmente mal): “A economia está na bancarrota; os políticos são alvo do descrédito geral; por toda a parte se rosna – o país está perdido”. Estas palavras, e muitas mais, de idêntica actualidade, compuseram o primeiro número das memoráveis Farpas, e são hoje familiares a grande parte dos cidadãos, desde que alguém as pôs a circular na Internet, com os espectáveis encómios, Vejam só, parece que foi escrito hoje, isto não mudou mesmo nada.

Pois é, a verdade é essa: isto não mudou, e, a ser verdade o que diz o povo sobre os burros velhos, e a respectiva capacidade de aquisição de novos talentos linguísticos, é de esperar que não venha já a mudar. Sejamos francos, vai quase um milénio que andamos nisto, é mais do que tempo de parar de protelar, e encarar a realidade de frente.

Mas de onde, afinal, nos vem esta macumba? Bem, quando se fala de causas, as opiniões dividem-se: uns assacam as culpas ao ilustre vimaranense, filho do conde D. Henrique, alegando que nada de bom se poderia esperar de um país fundado por um tipo que batia na mãe; outros preferem responsabilizar o D. Sebastião, que teve aquela triste ideia de se pôr a caçar mouros em tempo de defeso. Segundo algumas crónicas, o jovem rei terá bradado ao povo, quando embarcava: “Sobretudo, não façam nada enquanto eu não voltar”. O régio preceito manteve-se, aparentemente, em vigor até aos dias de hoje.

Na minha modesta opinião, contudo, a coisa vem de muito mais longe, dos tempos pagãos em que Viriato, esse líder cuja bravura apenas igualava a falta de visão política, espadeirava o romano pelas cristas dos Montes Hermínios. Reza a história – e agora não estou a inventar – que um perplexo centurião romano, dos que à época cá andavam, remeteu a César as seguintes novas da campanha ibérica: “Nos confins desta península, habita um povo estranho e bruto, que nem se governa, nem se deixa governar”. Genial Quintilius, ou lá como te chamavas tu, que, na frase simples que lavraste, deixaste escritos dois mil anos de história vindoura.

Pois, pois, dizem alguns, mas há também os Descobrimentos. Então e os Descobrimentos, a nossa epopeia trágico-marítima, quando Portugal se lançou ao mar, e deu novos mundos ao mundo? Ora bem, em relação a isso, nada há a dizer. É verdade histórica e irrefutável que o Portugal de quinhentos se lançou ao mar, mas o mesmo têm feito muitos homens de negócios, depois de perder a fortuna na bolsa. O Portugal quinhentista enfrentava um dilema, crescer ou perecer, e conquistar a Ibéria estava fora de questão, já para não falar da Europa. Restava-nos atirarmo-nos ao mar, o que de facto fizemos, e tivemos depois a sorte de encontrar um novo mundo do outro lado. Mas, quanto a isso, nós sempre fomos um povo com sorte.

E que fazer agora, quando tudo foi já tentado, o mar nada tem de novo a oferecer-nos, e a coisa parece ter chegado a um beco sem saída? Não creio que a minha opinião valha seja o que for, neste particular, mas deixo-a aqui, para quem quiser considerá-la. Com toda a franqueza, acho que devíamos desistir.

Não quero com isto propor que fechemos as portas, apaguemos as luzes, e emigremos em massa, como é evidente. Não, Portugal continua a ser um excelente lugar para se viver, só falta encontrar quem o governe. Nem sequer precisamos de ser muito picuinhas quanto a quem nos há-de governar, desde que não seja português. Essa é uma condição não negociável, desde que sucessivas monarquias, repúblicas, ditaduras e democracias nos demonstraram já a razão que incontornavelmente assistiu ao respeitável centurião romano. Portugueses não, que venham outros quaisquer. Sujeitando-me à vaia colectiva de dez milhões de gargantas, proponho os espanhóis.

E porque não? Portugal tem franca vocação para ser uma província de Castela, e estou convencido de que seríamos uma das melhores. Sob o ponto de vista económico, a integração já está feita: basta relancear os olhos por qualquer prateleira de supermercado, ou contar os “Ys” presentes na mais elementar folha de instruções, pretensamente traduzida para o nosso vernáculo, para conhecer que somos, economicamente, uma região turística de Espanha. Pior ainda, como em qualquer região turística, as coisas custam todas muito mais caro do que no país de origem.

De resto, que mais nos falta para sermos espanhóis? Temos climas semelhantes, regiões vinícolas adjacentes, entendemos bem a língua, e, acima de tudo, temos essa característica fundamental, que compartilhamos com três quartos da população espanhola: todos nós, sem excepção, temos um ódio de morte aos espanhóis! Julgo que o governo de Madrid, habituado à Catalunha, ao País Basco e à Galiza, não terá dificuldade em integrar mais uma região que não os pode ver nem pintados. Talvez a região autónoma da Madeira levante alguns problemas, mas esses são fáceis de resolver: basta que o parlamento faça passar um decreto, a ilegalizar o Alberto João Jardim.

Julgo ter assim apresentado um verdadeiro plano de salvação nacional. Tudo o que o presente governo tem a fazer é deslocar-se a Madrid, convenientemente constituído em comissão interina, e entender-se com o senhor Zapatero. Diplomaticamente, explicar-lhe-ão que aquilo de 1640 não foi mais do que uma garotada, ele que não faça caso. De resto, todos os chamados insurrectos tinham, na verdade, o maior respeito e admiração pelo senhor Miguel de Vasconcelos. Aconteceu apenas que um deles fez um comentário elogiativo sobre a janela, o espanhol não entendeu, duro de ouvido como são todos eles, não ligue, isto não era para dizer, e vai de se atirar pela dita. Antes que alguém percebesse o que se passava, estava proclamada a independência, mal-entendido que se corrige agora.

Havia ainda outra solução para isto, mas essa era mais complicada. Vista por alto, passaria por um grupo de cidadãos, um grupo crescente até se tornar significativo, depois maioritário, e por fim esmagador, que tomasse consciência da sua cidadania, mil portugueses, um milhão, dez milhões, a exigirem a concretização de Portugal. Uma massa esmagadora que, sem deixar de apreciar benevolamente as prestações da selecção portuguesa no Euro e no Mundial de futebol, reservasse as bandeiras nas janelas para os verdadeiros eventos nacionais que faltam acontecer. Que protestasse contra o cancelamento do jogo do Benfica, claro, mas mil vezes mais contra os tribunais que não julgam, os hospitais que não curam, as escolas que não educam. Mas um país a sério exige um povo que o mereça, um povo que se leve a sério. Pensando bem, talvez seja mais fácil mandar vir os espanhóis.

8.11.2006

22 – Quando formos mais crescidos.

Ele há grandes questões, questões que são perenes, imutáveis. Qual o sentido profundo da vida, com que idade podemos finalmente encará-la com maturidade, porque é que a miúda se recusa a fazer aquilo, se eu estou farto de lhe pedir, até que ponto é o cosmos movido pela fraternidade universal, e onde raio foram parar as minhas calças? Só esta última, posso pessoalmente afiançá-lo, bastaria para encher volumes de tergiversação ontológica, mas não é esse o objectivo destas crónicas. Concentremo-nos então numa das outras perguntas, o que é a maturidade, e quando é que se chega lá?

Tentemos, em todo o caso, ir mais longe do que o saudoso conselheiro Torres, mentor político do Conde de Abranhos, a quem roubámos a frase de abertura deste texto, Ele há grandes questões. Tinha depois o hábito de as enunciar gravemente, o pauperismo, a prostituição, o ultramontanismo, mas não ia jamais além disso. Pois seja, nós é que somos feitos de outra massa, não comparticipamos da natureza aérea e esvoaçante da borboleta, que toca aqui e ali sem jamais se deter; nós temos antes a contumácia incisiva da vespa, que despreza a mera superfície, para com o ferrão explorar em profundidade. Se dizemos que o tema em apreço é a maturidade, pode o leitor ficar seguro de que a palavra será escalpelizada ao largo e ao comprido, até que nenhuma das suas sílabas sangrentas retenha para nós o menor segredo.

Maturidade, assevera-nos arrogante o displicente dicionário, é simplesmente a qualidade daquilo que está maduro, ou que é maduro. Sob esse aspecto particular, as pessoas assemelham-se bastante à fruta, começam verdes, depois amadurecem, e caem por fim da árvore, batendo amiúde com a cabeça, nesse processo. Ficam então um bocado patetas, e os jovens, para não dizerem, Olha aquele pateta, dizem antes, Olha aquele maduro. Vista por este ângulo, a maturidade parece situar-se desconfortavelmente próxima da senilidade, sendo portanto coisa mais para temer do que para desejar.

Mas, será contudo assim? Entre as frescas manhãs dos verdes anos, e o pesado crepúsculo que é a senescência da razão, não haverá algo de intermédio, a serenidade de um entardecer doirado e tranquilo, onde o espírito cansado medita sob uma leve brisa outonal, e o coração bate por fim um compasso de paz? Um espaço da vida para gastar em recordações, agora que o tempo de agir terminou, e a idade implacável não trouxe ainda o esquecimento? Há de facto esse tempo, e chama-se maturidade.

Assim eram as fases ordenadas da vida, tais como a centelha divina que habita cada ser humano as dispôs, mas veio depois uma coisa chamada vida moderna, e lixou tudo!

O percurso da vida de uma pessoa pode ser comparado à escalada de um monte, mas um monte especial, um que tenha um topo plano e muito alongado. Nos anos de actividade e esforço, o homem galga conscienciosamente o íngreme declive ascendente. Atingido o topo, e com ele a maturidade do indivíduo, compraz-se em passear tranquilamente pelo plaino verdejante, até que chegue o momento de empreender, pelo outro lado, a descida que só terminará no oblívio final, sete palmos sob a terra. Eram assim as coisas dantes, mas agora parece que já não são.

Hoje em dia, só um critério mede o valor de uma pessoa: a altura a que se consegue guindar, ao longo da vida. Não interessa nunca parar, o repouso nenhum valor tem, e contemplar a paisagem é a atitude de um inútil e um falhado. Apenas interessa subir, subir o mais possível. É claro que a uma maior subida corresponde uma maior descida, pelo que a plataforma do topo se vai estreitando, até se ver reduzida a um bico aguçado. A plenitude de vida, nos nossos tempos, consiste em começar a descer mal se acaba de subir, sem passar um só minuto no topo.

De todas as nefastas consequências deste deplorável estado de coisas, uma há que salta de imediato à vista: a sociedade ressente-se, cada vez mais, de um lamentável défice de maturidade. Age-se muito, primeiro, e disparata-se mais, depois, mas falta o contraponto estabilizador da reflexão madura. Isto nota-se em todo o lado, desde as grandes empresas corporativas, até à política de pesca do bacalhau.

E a mesa 19? Pois bem, pese embora o imponente acervo de mentes filosóficas que a recheiam, a nossa mesa não é, nem poderia ser, imune a este fenómeno. Há sintomas que preocupam, uma ambição aqui, um impulso para trabalhar mais, ali, um inesperado desinteresse pelas reformas antecipadas, vez por outra. Mas há também esperanças, há olhos que se abrem, mentes que despertam. Por mais que nos tentem manter verdes, a mesa 19 vai amadurecendo.

Eu tenho um sonho. Não é como o sonho do outro, com os pretinhos e os branquinhos a serem muito porreiraços uns para os outros, o que até pode não ser mau, mas não é disso que estamos a falar. Não, eu sonho com o dia em que, malgré tout et tous, atingiremos finalmente a maturidade. Nessa data memorável, a única camisola que a mesa 19 vestirá será uma t-shirt com esta frase, “Se tens inveja do meu viver, faz como eu: reforma-te, malandro”.

8.06.2006

21 – Something else.

A mesa 19 anda-me a dar cabo do Verão. Se não for esse o caso, então, são as minhas leituras de Verão que se puseram às turras com a mesa 19. Seja lá como for, o problema é bicudo: ora digam-me cá, de que vale a um homem sonhar serões de Hemingway, Hugo e Boris Vian, para vir depois almoçar questiúnculas de trabalho, ou discussões, acaloradas e quase físicas, sobre mal definidos problemas sociais, de resto quase inteiramente marginais à nossa tertúlia? Não digo que se não trate de importantes questões, mas roubam muito àquela leveza de texto que tão bem caracteriza a mesa 19. Salvou-se nesse dia, por entre a miséria geral, o debate sobre a terceira guerra mundial, com ênfase na questão russa, e a minha salada russa, que também estava excelente. A maionese, sobretudo, era caseira.

Pese embora a imagem caturra dos Marretas, com que de início nos caracterizámos, estas crónicas pretendem ser sobretudo uma força dinâmica de subversão, qual faca acerada que, guiada por mão palpitante de vida feroz, rasga com fria precisão o tecido putrefacto e cediço da lassa trama social. Não nos resignaremos, dê por onde der, a ser o débil grasnar da voz esclerótica de dois velhos rezingões, protestando pela força do hábito contra tudo aquilo a que se acomodaram já. As crónicas existem para agitar, com o vento saudável do caos bélico, as atmosferas estagnadas, onde se instalou o detestável marasmo de uma paz podre. E se é a própria mesa 19 quem requer o salutar abanão, pois não há que duvidar, vamo-nos a ela, como Santiago aos mouros.

Mas surge aqui o dilema, eu não posso, a sério, denegrir a mesa 19. Tenho-lhe demasiada estima, e não posso fazê-lo, a sério que não posso. Isto sugere uma só solução, já que não o posso fazer, a sério, terei de o fazer a brincar. Não verdadeiramente a brincar, como aqueles petizes que empilham cubos, acocorados no chão. Não tenho jeito para me acocorar desse modo, além do que ficava, de certeza, com a gravata entalada nos entrefolhos das coxas. Não, pedirei apenas a licença do amável leitor para me distanciar um pouco do mundo real (não mais do que uns dois passos, e levo os meus sapatos castanhos), enquanto discorro sobre um mundo que, ao contrário da mesa 19, não existe mas poderia ter existido. Rogo-vos que não sejam muito rápidos a acusar de leviano este meu divagar. Como disse o bispo, antes de afirmarem que uma coisa é absurda, verifiquem sempre se trazem meias da mesma cor.

Seja qual for a mesa 19 de que se fale, ela é sempre constituída por gente moderna, desempoeirada, científica. Eu próprio me gabo de possuir todas estas qualidades, ao ponto de jamais me abalançar a comer um bife, sem primeiro o dissecar. De forma que, quando bati com o jarro de vinho sobre a mesa, fazendo saltar o seu conteúdo, fi-lo com o mais escrupuloso respeito pelo princípio de Arquimedes.

Este, como é de todos sabido, postula que todo o corpo mergulhado num fluido fica molhado, manifestando depois uma tendência para correr nu pela rua, a gritar, Eureka. É conhecida a reacção do célebre sábio quando, na banheira, fez a sua portentosa descoberta: ficou de imediato molhado, sofrendo depois uma impulsão vertical, de baixo para cima, de força igual ao peso do volume de fluido deslocado. Riu-se em seguida com vontade, ao compreender que descobrira o princípio de Arquimedes, pois esse era também o seu nome.

Isto é apenas um pormenor, que só menciono para mostrar que a mesa 19 leva a sério os grandes avanços da humanidade, todos os três. Alguns radicais saudosistas questionam a piza, mas eu, pessoalmente, continuo a achá-la digna de ombrear com os outros dois, o controlo remoto de televisão e a cerveja à pressão. Além destes, temos, como é evidente, a igualdade de direitos da mulher.

É o maior golpe de génio que a história regista, a igualdade de direitos das mulheres. É certo que tal evento veio prejudicar um pouco o uso do controlo remoto de televisão, mas as vantagens compensaram largamente os inconvenientes. No mero espaço de meio século, o homem conseguiu transformar a sua cara-metade num ser que não esperava já ser sustentado a vida inteira por ele, tendo como única obrigação superintender o trabalho das criadas, mas que sentia o impulso de sair para ganhar a vida, tal como ele milenarmente fazia. Desta forma, o homem adicionou uma boa fatia ao orçamento familiar, obtendo além disso uma esposa que, via de regra, chegava à noite cansada demais para lhe moer o juízo. Alguns, mais extremistas, passaram mesmo a viver à custa delas, o que talvez seja um abuso.

Houve também a revolução sexual, momento marcante da história, em que ferozes onanistas substituíram gloriosamente os seus sonhos pela crua realidade, após o que disseram, Porra, afinal é só isto? A grande maioria deu então em homossexual, mas houve ainda um grupo, mais equilibrado, que reverteu ao prazer solitário, embora as suas fantasias sexuais tenham passado a envolver, maioritariamente, cabras de pelo angorá. Foi desde aí que as criancinhas passaram a vir de Paris, dentro de uma couve. Ainda nos dias de hoje, a principal indústria de França consiste numa corporação de anões carecas que, no local do antigo mercado dos Halles, emprega noites sinistras a esgalhar pívias soturnas para dentro de inocentes couves, que são depois enviadas à Air France.

E a mesa 19, no meio disto tudo? Pois bem, lá está, com o seu sólido tampo, assente sobre quatro patas que fremem no desejo de alçar o voo, mas se vão infelizmente deixando ficar pela esfera inferior. Será que estas breves ponderações foram de alguma ajuda? Pois bem, estou em crer que não, mas o facto é que também não se perdeu nada.

8.02.2006

20 – A conta da mesa 19.

Já tem sido dito, algures ao longo destas páginas, que se come e bebe bem na mesa 19, e não há que esconder que também ali se respeita o provérbio espanhol, “toma o que quiseres, e paga o que tomares, que assim manda Deus”. A conta, consequentemente, é um ritual importante nas celebrações da mesa 19, e obedece, naturalmente, aos seus próprios cânones.

Se as nossas refeições demorassem três horas, e não estou de modo algum a dizer que demoram, mas, se demorassem, então a primeira hora seria consagrada à comida, a segunda à conversa e digestivos, e a terceira ao pagamento da conta. E seríamos mesmo tentados a afirmar que a última é a mais demorada de todas, se não fosse o facto de todas as horas demorarem o mesmo, embora algumas sejam muito mais longas.

A coisa começa com os nossos insistentes pedidos, no sentido de que nos seja trazida a conta. A Vânia, é com mágoa que o digo, não acredita em nós, e faz ouvidos de mercador. Não sei, realmente, a que atribuir tão cínica incredulidade, que tem graniticamente persistido ao longo de todos estes meses, em que nós fizemos de tudo, desde pedir a conta logo à chegada, ou passar o almoço inteiro a pedi-la, até negar veementemente tê-la pedido, quando ela finalmente é trazida. Por uma razão ou por outra, o facto é que a Vânia reluta sempre em trazer-nos a conta.

Quando de facto se decide, inicia-se um processo portentoso, a que vale a pena assistir. A nossa musa metamorfoseia-se em robot, e os seus olhos percorrem a mesa como verrumas, que nada deixam escapar. Saltitam, como bolas de pingue-pongue, sobre as azeitonas, que são contabilizadas, analisadas, conferidas com os caroços postos de lado, não vá ter havido batota. Os olhos penetrantes reconstroem, à esquadria, as fatias de pão encetadas, computando a área e o volume dos pedaços em falta, e espraiam-se ainda sobre os jarros de vinho, a ver se não houve engano. Tudo isto feito, a sacerdotisa lança por fim a consagrada bênção dos três dedos sobre o pires das manteigas, e parte rumo ao altar do sacrifício, o balcão do pai Pinto.

É daí que emerge a lauda final, sujeita ainda ao escrutínio último da Vânia, que não consente em entregar-nos o incriminatório papel de ânimo leve. Finalmente satisfeita, estende-nos o linguado, cujo total nós dividimos entre todos, e pagamos. Contas arrumadas, certo?

Errado! O facto é que nós nunca pagámos a nossa conta ali. Nós devemos, bem vistas as coisas, muitos milhares de euros que, certamente por lapso, nunca nos foram cobrados. As contas que vamos pagando são simples listas de trivialidades, carne isto e vinho aquilo, e mais uns cafés. Nem um sorriso da Vânia nos foi ainda debitado, as carícias que a Marta vai fazendo na cabeça do taliban continuam a pagamento, e só das minudências sem importância nos pedem pagamento, coisa de uma bagatela, e pouco mais.

Uma conta justa, ao jeito do American Express, seria algo deste género: dobrada, 5 euros; vinho, 3 euros; ser aturado pela filha do patrão, 500 euros; ser aturado pela filha do patrão, gostando disso, 1000 euros; ser aturado pela filha do patrão, e ela gostar disso, sem preço; tudo isto, e não ser posto na rua, oferta da casa.

Há muitas razões para almoçarmos na mesa 19, mas fica desde já confessada a principal: em que outro sítio, bolas, poderíamos almoçar assim, de borla?