2.27.2007

78 – O retrato da mesa 19.

Hoje não me apetece escrever. Ele há dias assim, dias em que a criatividade continua a fazer sentir o seu apelo, mas não da forma usual. Hoje, por exemplo, apetecia-me antes pintar. Eu cheguei a pintar, in illo tempore, um quadro cubista. Diversos especialistas, que o avaliaram, foram da opinião unânime de que eu, de futuro, deveria antes dedicar-me à pintura de portas. Pintei então uma porta, mas toda a gente me disse, Deixa-te disso, quem é que vai querer uma porta cubista? Desisti da pintura.

Ainda hoje me fremem os dedos, quando vejo uma tela e tintas. Resisto, porém, à tentação. Como disse uma personagem do Quino, quando a professora lhe perguntava quanto eram dois vezes sete, “Aquele que conhece as suas limitações, sabe dois vezes dois”. A tinta não é de facto para mim, que me ajeito bem melhor com as palavras. Mas hoje apetece-me pintar, e pronto. Está decidido, vou aqui pintar, em veras palavras, a mítica mesa 19.

Queira então o estimável leitor contemplar a modesta tela. Enquadrada em moldura nobre, destaca-se uma mesa corrida, cuja amesendação de papel sugere uma continuidade, onde apenas há duas, três, ou mesmo quatro mesas pequenas, e justapostas. Sobre o fundo de papel barato, exibe-se uma natureza morta, sábia composição de azeitonas, queijo fatiado, cestos de pão, e um pires com umas coisitas merdosas, tipo manteiga e patê, que não ajudam em nada o conjunto, mas não deixam de fornecer um curioso toque de cor.

Em volta da dita mesa, sentam-se uns quantos indivíduos, de aspecto esquálido e patibular, que semelham o Cássio de Shakespeare, temido pelo seu ar “magro e esfaimado”. Trata-se da entourage da mesa 19, entre a qual avultam os dois decanos da confraria, o Carlos Santos e o Rui Cardoso. Muito dissemos já sobre estes dois, pintemos agora a sua vera efígie.

A comparação, feita há tempos, entre este par e os velhotes do camarote, na série dos Marretas, não foi ocasional. As parecenças, contudo, são meramente a nível de atitudes, e não físicas. Fisicamente, são muito diferentes dos tais velhos, chegando mesmo a ser alguns anos mais novos. O que se passa, na verdade, é que eles riem da mesma maneira, e basicamente das mesmas coisas.

Isto, como é evidente, diz tudo. De que serviria aqui acrescentar que são ambos de estatura mediana, nem magros nem gordos, que o Rui se exibe num vampiresco casaco de cabedal, e que o Carlos todos os almoços troca os óculos de trabalho pelos óculos de lazer, excepto quando põe o terceiro par, que serve apenas para procurar os outros dois? Nada, está tudo dito, e aí ficam as duas figuras em tela, uma de cada lado da mesa.

Os dois lugares seguintes são ocupados por mim. Lá vou conseguindo, de uma forma ou de outra, usar uma única cadeira, mas acabo sempre por dar a impressão, mercê de uma curiosa ilusão de óptica, de que é a cadeira que está sentada em mim. Este breve intróito terá já sugerido ao leitor que eu sou, digamos, gordo. Pois bem, é verdade. Caso eu um dia participasse de um concurso literário, e um qualquer bambúrrio me guindasse ao lugar vencedor, estou certo de que as notícias diriam, “Temos em terceiro lugar um bom escritor, em segundo lugar um excelente escritor, e em primeiro lugar um gajo gordo, que parece que também escreve umas coisas”. C’est la vie

Mas nem tudo está perdido, pois ando a fazer dieta. Perdi até agora vinte quilos, e actualmente a balança falante do centro comercial limita-se a dizer, “Porra, que você é mesmo gordo” (antigamente, costumava gritar muito alto, em tom aflito, “Socorro, tirem o elefante de cima de mim”). Afora isso, uso o cabelo muito curto, quase rapado, que é para pesar menos, cara escanhoada, nas raras vezes em que me barbeio, casaco surrado e pouco limpo sobre camisa amarrotada, e calças no mesmo estado, a compor um ar geral de desmazelo, a que uma gravata distinta e sempre renovada fornece uma nota de divertido contraste. À parte isto, sou gordo.

Os restantes lugares são algo variáveis, ocupados como são por gentes de índole mais nómada, e mais afeita a variar. À minha frente, tanto se pode sentar o Zé Eduardo como o Rui Constâncio, duas figuras que importa aqui retratar, se a tanto me chegar a tinta que sobrou, após as vastas pinceladas requeridas pela minha volumosa barriga. O melhor instantâneo que posso fazer deles é o seguinte, se algum dos dois tentasse viajar de avião, durante um estado de alerta, passaria um mau bocado no aeroporto.

Não se dá isto porque tenham ar de terroristas. Nada de confusões, pois têm ambos ar de terroristas, e de que maneira, mas não é só isso. Vultus índex animi, o rosto é o espelho da alma, e, no caso deles, vultus índex tavoli XIX, o espelho daquela faceta da mesa 19 que é essencialmente anarquista, e não se consegue impedir de ver a destruição espalhafatosa como senda de progresso, e o camartelo como instrumento civilizacional. Entre os dois, um é mais espalhado e demolidor na crítica, o outro mais preciso e acerado, são talvez diferenças de idade, mas a essência é a mesma. São, de resto, invariavelmente intransigentes, e estou certo de que, caso tivessem feito parte da milenar seita dos assassinos, chefiada pelo lendário Velho da Montanha, que decidia quem devia ou não ser morto, o primeiro a ser assassinado seria mesmo o Velho, e lá ficava a seita sem mestre. É mesmo assim que eles são, não perdoam. Para além disso, são dois tipos impecáveis.

Estes são, digamos assim, os comparsas diários, mas há também os eventuais, os que, em vez de aparecer, vão aparecendo. Dentre os históricos, há que destacar o Paulo Sousa, pela originalidade de continuar a frequentar a mesa 19, tendo embora deixado de lá almoçar. Depois de compartilhar a refeição do meio-dia com a sua cara-metade, o que faz a coberto de um sigilo que a maioria das pessoas reserva para a amante ilegítima, de preferência do mesmo sexo, e seropositiva, o santola esgueira-se até à mesa 19, onde gasta o seu bom quarto de hora a olhar-nos ameaçadoramente, por sobre a borda do copo. Depois, esgueira-se, como a brisa por uma janela entreaberta, ou uma sapateira que vislumbra uma rocha convidativa. Mas é tarde demais, pois já ficou no retrato. Aquele casaco de cabedal, que ali vedes a esvoaçar junto à porta, era ele.

Histórico é também o Catarino, sendo bem mais recente o Carlos Lopes. Não é por acaso que aqui os junto, em pincelada promíscua. Para além da semelhança óbvia, que é a raridade com que somos honrados com a presença de qualquer destes beneméritos, eles compartilham ainda um mesmo aspecto, que não pode deixar de figurar nesta pintura: eles são excelentes pessoas, pessoas cuja boa índole é, talvez, boa demais para a nossa mesa. É coisa magnífica, o ser-se boa pessoa, mas tende por vezes a embotar outras qualidades, como o sarcasmo, o cinismo, e a maledicência. E daí, serão talvez eles quem tem razão. Não sei, realmente não sei. Afora isso, distingue-se o Catarino por ser o melhor técnico de assadura de sardinhas de que há memória em terras deste reino. Fazendo-lhes em breve esquiço o boneco, nota-se com facilidade que, entre os dois, não juntariam cabelo com que sujar o chão de uma barbearia, um por o trazer rapado, outro por não ter já grande coisa para rapar. Mas, nisto de cabeças, conta menos a cagadela de pombo na testa do que a merda que vai lá dentro, que é como quem diz, do crânio para fora, pouco interessa.

E, last but never the least, temos um terceiro Carlos, desta vez, o Silva. Perdão, não é bem assim, permitam-me que recomece. Peço então, estimados senhores, a vossa vénia e aplauso para o mui preclaro jurisconsulto, o bacharel Carlos Silva. Ecce homo, ei-lo que avança em direcção à lendária mesa 19, no que promete ser o encontro de duas lendas. A basta cabeleira, onde a respeitabilidade das cãs se alia à força anímica do azeviche, ilumina os tenebrosos meandros do restaurante, enquanto prossegue com destemor. A fronte alta guarda os mistérios do quid das coisas, o alfa e o ómega das leis que regem as gentes humanas, e os humanos destinos. Eu, porque escrevo uma crónica, posso sempre ir preso. Em igual pena incorrerá o Zé Eduardo, porque a não escreveu. Mas só o Carlos, bastião da jurisprudência, estará em condições de determinar quem será de facto deitado aos calabouços, e porquê. Só daquela efígie leonina sairá a explicação, as razões, com todos os de jures e de res, que determinarão o nosso porvir. O Carlos, a quem aqui se tece justificado, e de há muito preterido louvor, não goza, contudo, do subido estatuto que caberia a tão insigne legislador. E a que se deve, perguntar-me-ão, semelhante injustiça?

Pois bem, o problema é muito simples. É que um perito em leis, em formas de regulamentar a sociedade, isto é, em normativos, tem tanta procura na mesa 19, como um perito em disfunção eréctil num congresso de lésbicas. Eu serei talvez a excepção (tipo, a lésbica um bocado mais puta, no dito congresso). Eu acho piada a essa coisa de leis, e gosto de ver a lógica que preside à adequação da forma ao conteúdo. Mas, para ser franco, eu gosto de lógica. Gosto também das expressões formais, com abundância de locuções latinas, que revestem normalmente as leis. Mas, para ser franco, eu gosto de latim.

Pronto, sem querer, acabei por fazer, nos parágrafos anteriores, um retrato ainda mais fiel da minha própria pessoa. Pintei ainda, também sem querer, o melhor retrato possível da mesa 19. O resto, que é serem uns gordos e outros carecas, ainda é o que menos interessa. Aí tendes, posta em ceia, a nossa mesa 19, e, se um tal de Da Vinci vos vier dizer que o quadro dele é melhor, mandai-o falar comigo.

Nota: é evidente que muita gente ficou de fora, nesta pintura. Isso era inevitável, sob pena de se refazer a tal “Última Ceia” em versão Monty Python, com trinta e seis apóstolos, três Cristos (“o gordo compensa os dois magrinhos”, segundo eles explicavam), e um canguru. Não posso contudo omitir o excelente Paulo Mendes, presença sempre saudada na nossa mesa. Se não figura na pintura principal, é mesmo só por falta de espaço (eu sou um bocado gordo, não sei se já tinha dito isto), mas não deixará nunca de ser uma parte desta obra, que nós a cada dia vamos pintando.

2.21.2007

77 – O mundo sem a mesa 19 (divagações sobre a depressão).

Nestes dias peculiares, em que tenho chegado para almoçar já em tempo de fim de repasto, por mor de um horário idiota, imposto por razões idiotas, a fim de realizar um trabalho idiota, tenho por vezes ficado sozinho à mesa, após a debandada da mesa 19. Nada de confusões, a mesa 19 não é um conjunto de pernas de madeira e alguns tampos, é o conjunto vivo dos seus comensais. Sem eles, a mesa 19 está ausente, e eu fico ali meditabundo, fantasma do momento errado, ou do momento que me errou, enquanto acabo o meu vinho, e observo vagamente o que se passa à minha volta.

O restaurante é uma coisa diferente, após a mesa 19. A Vânia, a Marta, o próprio Vítor, falam comigo noutro tom, um pouco como se eu estivesse ali sozinho. Pondero distraidamente esse facto, e ocorre-me que talvez o façam, subconscientemente, por eu estar ali sozinho. O gesto dá um novo significado à solidão, e a coisa, no seu todo, não é muito diferente de estar exilado numa ilha deserta, só que com miúdas giras, a arrumar as mesas à minha volta. Mas isso pouca diferença faz, pode-se sempre estar só, mesmo no meio de uma multidão.

Naquele triste e ledo fim de tarde, pergunto a mim próprio o que faria o bom Luís Vaz de Camões, no meu lugar. Provavelmente fazia um soneto, ou então fazia o mesmo que eu, só que evitaria piscar o olho à Marta, porque senão deixava mesmo de ver um boi à sua frente. Não quer isto dizer que eu esteja a ver um boi à minha frente, pois a Marta até é bastante magrinha. Mas enfim, adiante…

O ar condicionado lembra algo que Andy Warhol poderia ter feito, se lhe faltassem as latas de sopa, e a toalha usada faria as delícias de um amante do cubismo. Estranhamente, vem-me à memória o filme “Je t’aime, moi non plus”. Trata-se da história de uma rapariga que se apaixona por um rapaz que faz de homem num casal de homossexuais, mas chega à conclusão que ele não se ajeita lá muito bem com moças, e só o poderá ter se lhe der o rabo. O problema é que ela não consegue fazê-lo sem grandes uivos de dor, pelo que acabam sempre por ser expulsos de todos os motéis, bem a meio da festa. Farto de coitos interrompidos pela porteira, o rabeta acaba por preferir o amigo, que sempre tem a vantagem de não gritar, isto para além de ser mesmo homem, e o filme acaba com os dois a partirem num camião, abandonando-a, nua e desesperada, no meio de um campo de trigo, imagem de rara beleza. O trigo também não é feio.

Isto não é, obviamente, a história da mesa 19 (nós também uivamos, vez por outra, mas nunca durante a hora do almoço). Mas é uma boa metáfora da solidão. Melhor, não é uma metáfora, é uma explicação. É claro que o filme permite diversas leituras, mas a minha interpretação pessoal sempre foi inequívoca. Trata-se aqui de exclusão, tanto exclusão social como exclusão afectiva, e a mensagem é que a exclusão resulta de uma situação minoritária. As maiorias excluem as minorias, e isso é uma lei invariável da natureza.

O tour-de-force genial do filme é colocar a habitual maioria, a jovem heterossexual, numa posição minoritária. Afinal de contas, só há três personagens, e dois são homossexuais. Como resultado, eles entendem-se entre si, e ela é excluída. No dia em que o mundo for gay, os poucos hetero que restarem terão de andar a esconder a sua vergonhosa orientação sexual. Será a vingança dos paneleiros, que não deixarão de inventar novos termos ofensivos para os outros, os actuais machos.

A mesa 19 não é gay. Pelo contrário, julgo até que chegamos a exibir certos sintomas que não envergonhariam o Zézé Camarinha. Mas somos minoritários, de um modo geral. Melhor, somos todos sobreviventes do nosso estatuto minoritário. É por isso, e não por sermos um bando de javardolas, que nós gritamos muito, e causamos distúrbios. É que nenhum de nós bate muito bem da bola. Estamos todos habituados a lutar pelo nosso lugar, e, quando nos faltam adversários, acabamos por lutar uns com os outros.

É coisa que se vê muito na nossa mesa, um de nós a disputar, com fúria, que o carvão é negro, enquanto o outro vocifera, sem perder terreno, que não é, não senhor, é mas é preto. Junta-se um terceiro que, apaziguador, quer mostrar que o carvão, seja lá como for, é sempre escuro, mas caem-lhe em cima os dois primeiros, com redobrada raiva, sustentando que ele não quer senão baralhar as premissas, quiçá para proveito próprio. Na falta destas disputas, chateamos a Vânia.

Meditava eu, na minha solidão, em toda esta mesa 19 que ali me faltava, quando de súbito o patrão, emitindo um grito de guerra, saltou por cima do balcão, indo encaixar-se, a cavalo, nas espáduas do Vítor. Chicoteando-lhe o flanco com uma ementa, mandou-o galopar para o mercado, pois tinha de comprar urgentemente uma potência irracional de postas de salmão. O outro discordou, com um relincho, mas não lhe valeu de nada.

Entretanto, a Vânia e a Marta apareceram para limpar a sala, completamente nuas. Meu Deus, o que eu ando a perder, por sair de cá cedo demais. Confesso que olhei para a Marta, e embasbaquei. Como é que eu nunca os tinha visto, assim pendentes, lindos e sensuais, desafiadores? Que brincos maravilhosos!

Chamei a Marta, respeitosamente, com uma palmada carinhosa no traseiro fofo. Pedi-lhe mais vinho, mas ela garantiu que tinha ordens severas do patrão, e só me poderia oferecer um jarro se eu a beijasse apaixonadamente. Estava para concordar com a proposta, quando a Vânia se interpôs, gritando que era tudo uma grande treta, e que aquilo não passava de um plano da Marta, para me fazer casar com o Vítor.

Gritou ainda que, se tudo aquilo fosse mesmo verdade, também ela teria vindo nua. Ainda lhe apontei que ela vinha de facto assim, mas retorquiu-me, abespinhada, que isso agora não vinha ao caso. Foi então que me acordaram, para me perguntar se queria mais alguma coisa. Uma vez desperto, voltei a ser minoritário.

Melancólico, saí do restaurante, em busca de um táxi. O motorista era um tipo simpático, já meu conhecido de outras viagens, mas não pude deixar de notar que ele era quase o oposto de uma jovem modelo, bela e nua. Como disse Pessoa, falando da sua hipotética morte, “Vai depois dizer a essa estranha Cecily / Que acreditava que eu um dia seria grande. / Raios partam a vida, e quem lá ande”.

2.15.2007

76 – E, finalmente, o referendo.

Por toda a parte, o pasmo dos rostos espelha a interrogação generalizada. Em esquinas sombrias, no desvão de portas escusas, ou emparedado no lusco-fusco protector de becos antigos, se ouve soprar, em murmúrios temerosos, a pergunta candente: por que razão é que, volvidos tantos dias, ainda não abordaram as crónicas a questão do referendo?

O ponto que importa perceber é este, existem dois tipos de crónicas. Isto é obviamente mentira, existem vários, mesmo muitos, até, tantos quantas as próprias crónicas, mas pronto, digamos que são dois, que é para não fatigar excessivamente as meninges do esforçado leitor. De acordo com este critério, necessariamente tão arbitrário como qualquer outro critério, podemos dividir as crónicas em “sérias”, e “menos sérias”. De uma forma geral, as sérias defendem a reformulação da sociedade, por via, frequentemente, da reestruturação de mentalidades, e as menos sérias defendem a fundação da utopia, ou melhor, a assumpção de uma utopia que passaria a existir, uma vez assumida, e fazem-no frequentemente por via de meios duvidosos, como o regresso à idade média, a evocação de fantasmas, ou cobrir tudo de salmão. Só uma diferença basilar separa os dois tipos: as crónicas menos sérias assumem o disparate como um facto, enquanto as sérias tentam mostrar, por meio da lógica, que o disparate é um facto.

Dito isto, é importante esclarecer que o referendo é, para mim, um assunto muito sério. É claro que, quando digo o referendo, estou a referir-me a O Referendo, o que teve a sua reprise no passado dia 11 de Fevereiro, quando se decidiu a questão da interrupção voluntária da gravidez. Acontece que se trata de um dos poucos temas sérios da actualidade sobre os quais eu tenho uma firme opinião, e que me dei ao trabalho de esmiuçar com algum detalhe, a fim de reforçar ou desmentir as minhas ideias (uso intencionalmente a palavra “sérios”, para que não me venham chatear com coisas como a exposição indecente das amêijoas, a legitimidade de incluir cuecas comestíveis no cozido à portuguesa, ou o auto-erotismo como forma de ganhar o euromilhões, temas que também absorvem grande parte das minhas cogitações).

Não é despiciendo o uso de maiúsculas no parágrafo anterior, quando aludo ao referendo, se considerarmos que se trata do único referendo que trinta e três anos de democracia conseguiram produzir, neste cantinho à beira-mar plantado. Seja como for, a importância do tema, na minha opinião, seria sempre merecedora de uma crónica séria. Ora bem, o que acontece é que eu ando um bocado farto de escrever coisas sérias. Tenho muito a dizer sobre a questão do aborto, mas, se não me levam a mal, fica para uma outra vez.

A restrição, contudo, aplica-se ao aborto, e não ao próprio referendo. Sobre esse, não me importo mesmo nada de discutir o que é, de debater o que não é como se o devesse ser, de falar do que nunca será como se o fosse já, bem ao jeito, desfasado da realidade, da nossa mesa 19. Vamos ao referendo, portanto, como Santiago aos mouros.

Falando, em primeiro lugar, do presente referendo, houve de facto uma coisa que, desde o princípio, me deixou surpreendido. Ouvi todo o tipo de auto-proclamadas sumidades discutirem, ad infinitum et ad nauseam, o conteúdo da pergunta a referendar, mas, curiosamente, ninguém avançou com grandes argumentos sobre o conteúdo da resposta. Ora, quanto a mim, um referendo sério não se pode limitar a um seco “sim” ou “não”. Que diabo, a vida não é a preto e branco. Aqui fica, como sugestão para uma próxima tentativa, um leque de respostas que considero mais justo:
- Sim.
- Não.
- Só se a rapariga for de uma família aceitável e conveniente.
- Se forem mesmo muito pobres, e o marido for bêbado, o prazo deve ir até além do nascimento. A mulher poderá ainda, caso o pretenda, abortar o marido, com a ajuda de uma pistola.
- Além da IVG, dêem-lhe também um voucher para um fim-de-semana com o namorado, num bom motel. Afinal de contas, porquê limitar a coisa a um único aborto?
- São só dez semanas? Porra! O que vale é que a minha secretária está bem treinada, e vai negar tudo.
- Porcalhões. Por que é que não se limitam ao sexo oral? Hum? (voto invalidado, por vir assinado pelo diácono Remédios).

Mas, enfim, basta da questão do aborto. Aquilo que mais me surpreende, neste grande festival de democracia, é que não se referende mais nada. Não estou a gozar, qualquer norueguês está habituado a ser chamado, domingo sim, domingo não, a pronunciar-se sobre a condução da sociedade em que se insere, o que me parece bem. Nós, por cá, é só aborto, como se a vida de cada um se passasse entre decisões de abortar, ou não abortar. E agora pergunto eu, e quando não há nada para abortar, hein?

Ocorre-me, assim de repente, a questão do aeroporto da Ota. É hoje geralmente aceite que o novo aeroporto é um disparate, sobretudo se feito ali, e os defensores da solução da Ota dão pelo nome genérico de otários, mas, cadê o referendo? É no mínimo curioso que eu seja chamado a pronunciar-me sobre a decisão íntima e pessoal, que em nada me diz respeito, da dona Joaquina, de Freixo-De-Espada-À-Cinta, e não tenha uma palavra a dizer sobre o ruinoso investimento de vários milhões, arrancados aos meus impostos, na destruição de um ecossistema insubstituível, com vista a construir um aeroporto disparatado, que ninguém quer, onde ninguém o quer, excepto uns quantos proprietários de terrenos. Mas, a haver referendo, estou seguro de que a pergunta seria, “concorda com a construção deste aeroporto, ou prefere uma alternativa que os poderes económicos não deixarão de inviabilizar, levando à construção deste aeroporto? (possibilidades de resposta: Sim; Sim; Não, porra, mas o que é que eu hei-de fazer?).

Pondo de lado estas tristes realidades, resta falar do nosso referendo, do referendo que se impõe: o referendo da mesa 19. Diversas hipóteses se nos deparam aqui, mas, considerando a natureza rebelde e disparatada da nossa mesa, opções há que se impõem. Aqui ficam elas, pelo que possam valer:

Pergunta: concorda com a liberalização dos digestivos a todas as mesas, desde que aplicada somente à mesa 19, após terem sido bebidos os habituais licores, ou mesmo antes, desde que depois, ou até, em circunstâncias excepcionais, imprevisíveis, ou indefiníveis, desde que devidamente regulamentado?
- Hã?
- Como?
- Desculpe?
- O que foi que disse sobre o meu rabo?
- SLB! SLB! SLB!
- Estou apaixonado pela Marta!
- Tudo bem, desde que o Alberto João não venha cá.

Pergunta: gostaria de ser servido, neste restaurante, por meninas em topless?
- Sim.
- Sim, porra.
- Sim, porra (com baba).
- Sim, desde que seja a Marta. Ou a Lana. Ou outra miúda qualquer.
- Sim, desde que não seja o patrão. Ou o Alberto João.
- Sim. Sim. Sim.

Pergunta: gostaria de encontrar na ementa pratos requintados, como cabrito assado à padeiro, ou umas favas bem cozinhadas?
- Sim.
- Sim, desde que servidos por empregadas em topless.
- Sim, desde que servidos pela Vânia, vestida como ela quiser (estou a brincar. Topless, é claro).
- Sim, desde que servidos pelo patrão em pessoa. O prato, nesse caso, deverá ser o Alberto João, com um molho de orégãos e manjericão, e um pouco de salsa nas narinas.

Pergunta: deseja terminar esta crónica, visto que já não há mais disparates de jeito para dizer?
- Sim.
- Sim, por favor.
- Ou isso, ou alguém me mate (pode ser o Alberto João).
- Não, gostaria de escrever mais algumas páginas, e… aaaarghhhhh!

2.14.2007

75 – Um peixe chamado Vânia.

Almocei hoje na mesa 19, mas confesso que não sei dar conta do que por lá se passou. Não se deve isto, como alguém poderia supor, a qualquer imoderação da minha parte no uso de bebidas espirituosas, mas tão-somente ao facto de lá ter chegado já em tempo de digestivos, pelo que me limitei a comer e pagar a conta (dispensava bem essa última parte, mas adiante). O almoço foi salmão, o que me deu alguma matéria para pensar.

Serve esta crónica para falar do salmão, das matemáticas a ele associadas, e dos perigos e consequências que tudo isso acarreta. Compreendem, tudo começou há dois dias (dois dias úteis, quero eu dizer), quando constatámos, com gáudio e regozijo, que a ementa nos propunha, em rodapé, salmão grelhado. Compreender-se-á facilmente o nosso alvoroço, quando eu explicar que pouco peixe se pode usualmente encontrar naquele restaurante, sendo esse pouco de um género que nos levaria a hesitar antes de o oferecer a um gato esfaimado, pelo fundado receio de deixar o bichano seriamente ofendido. Achar ali salmão foi, portanto, uma festa para nós.

Consequentemente, imagine-se a nossa consternação, o pasmo e a dor que nos assolaram a alma, ao sermos informados de que havia, precisamente, uma posta de salmão! Como se dava tal fenómeno, uma única posta, exacta e aritmeticamente contada, quando éramos nós os primeiros clientes a chegar? Convocada de imediato a Vânia, interrogámo-la com desassombro. Aprendemos então que a gerência tinha tido o cuidado de adquirir, para prover àquelas centenas de almoços, precisamente três postas do dito peixe. Não se dando por inteiramente satisfeitos com tal medida, contudo, trataram ainda de comer duas delas, antes de abrir as portas ao público.

Como é natural, censurámos severamente a Vânia, por ludibriar desse modo soez os nossos legítimos anseios e expectativas. Intimámo-la, carinhosa mas firmemente, a que não voltasse a anunciar em lista um prato, quando para o satisfazer dispunha apenas de um parco exemplar do manjar proposto. A moça pareceu contrita, e prometeu emendar-se. No dia seguinte, o salmão voltava à lista, estando desta feita disponíveis duas postas.

A princípio, tomámos isto como um progresso, modesto mas estimável, e digno de encorajamento, mas soubemos depois que, desta vez, não tinham sido compradas três postas, mas apenas duas, tendo-se a casa, todavia, abstido de as comer! Todos abanámos a cabeça, num gesto de comiseração, e evitámos comentar o facto.

A nossa sensação de que nem tudo estava bem deve, no entanto, ter sido pressentida, e hoje (terceiro dia, portanto), dispúnhamos já de quatro postas de salmão. Foi aí que se fez luz no meu espírito, e compreendi tudo: eles decidiram passar a comprar o peixe numa progressão geométrica!

A ideia, devo admiti-lo, deixa-me um pouco inquieto. É certamente agradável saber que, nos próximos três dias, contaremos com oito, dezasseis, e trinta e duas postas, respectivamente. Isso é tudo muito bonito, mas, e depois? Quero dizer, eles saberão realmente onde se estão a meter, caso insistam em seguir por este caminho?

A coisa é do mesmo género daquela história que se conta sobre o inventor do xadrez, o qual terá pedido ao rei da Pérsia, como recompensa, um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda, quatro pela terceira, e assim por diante. O rei achou o prémio modesto, e rapidamente empenhou a sua palavra. Feitas as contas à dívida, descobriu-se que seria necessário dar ao inventor toda a produção mundial de trigo, durante vários anos. E eram apenas grãos de trigo, que são assim umas coisas a modos que muito pequeninas. Imaginem a coisa, agora, com postas de salmão.

Se a aritmética me não atraiçoa, o décimo segundo dia brindar-nos-á com duas mil e quarenta e oito postas, o que obrigará cada cliente a comer, pelo menos, uma dezena de doses. Nos dias seguintes, os números disparam, tornando economicamente inviável que se almoce, em toda a área metropolitana de Lisboa, qualquer coisa que não seja salmão. No vigésimo dia, o governo aprovará uma lei, obrigando todo o sector da construção civil a usar postas de salmão, em vez de tijolos. Dois dias depois, os PDM serão revistos, no sentido de aumentar o volume de edificação permitido, a fim de escoar o excesso de matéria-prima.

As sobras da cozinha, ao vigésimo quinto dia, serão ofertadas ao Ministério do Interior, que as usará para construir, ao longo da nossa costa, um vasto atol artificial, que tornará a área de Portugal continental no quádruplo da de Espanha. Com os restos dos dois dias subsequentes, constroem-se as primeiras vias rápidas de ligação entre o continente, e os Açores e Madeira.

Neste meio tempo, George W. Bush interessa-se pela ideia, e compromete-se a livrar-nos do excesso de produção, como contrapartida pelo uso da base das lajes para torturar prisioneiros de guerra. No Pentágono, vivem-se dias de entusiasmo, face à perspectiva de alienar toda a frota da U.S. Navy, e passar a lançar ataques de tanques, directamente a partir da baía de Miami.

Passado um mês, o restaurante abre falência, por falta de fundos para comprar mais salmão. Na mais recente versão do Atlas Mundial, ainda no prelo, poderá ler-se que o nosso planeta é constituído por uma quarta parte de terra, três quartas partes de salmão, e a ribeira de Barcarena.

E quanto à mesa 19, que começou tudo isto? Bem, nós somos um bocado do contra, e, para dizer a verdade, andamos a pensar seriamente em deixar de comer salmão. Só falta agora decidir uma coisa, qual o prato que vamos passar a exigir? Eu voto no faisão trufado (sem frango).

74 – A epopeia da Távola 19.

Algumas estadias em casa, devidas à necessidade de cuidar de um filho doente, levaram o autor a embrenhar-se em cogitações, mais do que conviria à sua imbecilidade natural. De várias meditações sobre o referendo próximo, questões de ética laboral, e uma complexa análise comparativa entre as apostas no euromilhões e o gato de Schrödinger, para já não falar nos cogumelos, resultou um estado de espírito filosófico, e portanto chato, que se reflectiu inevitavelmente nas crónicas. Para aligeirar o ambiente, a presente crónica foi escrita, a pedido, pelo fantasma de Sir Drinkalot, que está morto há mais de mil anos, e bastante farto disso, também.

Com mil e seiscentos diabos, que artimanha do Demo temos aqui, agora? Quem sois vós, bofé, que vos permitis interrogar-me? Explicai-vos sem delongas, senhores, ou será a ponta da minha espada a fazer as despesas da conversa. Cuidais que haveis de tratar com um vilão, ou com uma dona? Desenganai-vos, por minha fé! Eu sou Sir Drinkalot, cavaleiro da távola quadrada número 19, honra e flor do reino de Camelot. O fio da minha lâmina é a minha credência, o ferro dos meus guantes a minha embaixada. Dizei, pois, sem melindres ou rodeios, que coisa intentais obter de mim.

Que palavras ouço, ou julgo ouvir, e que crédito hão elas, que tão inverosímeis se me afiguram? Pretendeis, pois, que vos narre aqui, despejadamente, a história e a glória da távola 19? Forte pretensão é a vossa, e uma que não estou seguro de poder satisfazer, eu que melhor que a palavra manejo a espada, lâmina que jamais desembainhei sem justiça, nem voltei a guardar sem honra. Enfim, intentarei o que puder, para vossa satisfação, e assim o esforço me alcance a salvação da alma imortal.

A távola 19 governa o reino de Camelot, é o seu centro, e a sua luz. Foi, em tempos milenares, uma távola redonda, de que outras crónicas guardam fiel memória, mas veio a assumir a actual forma rectangular, a fim de permitir a qualquer cavaleiro em dificuldades o acto de se aliviar, mijando nos cantos. Em torno da vetusta távola, estende-se o mui nobre reino de Camelot, palavra evidentemente derivada da quantidade de camelos que ainda hoje a rodeiam, e lhe prestam vassalagem.

Muitas histórias têm sido narradas, nestas crónicas, sobre a távola 19. Não discordando da substância factual de cada uma delas, devo todavia insurgir-me contra o tom ligeiro e modernaço de que se revestiu a narrativa das sagas. A távola 19 é uma instituição antiga, medieval, que só perde com essas modernices de mau gosto. Sei bem quem é o culpado disso tudo, não é outro senão o autor, esse vilão que bem queria ser nobre mas é apenas pobre. Põe-se para aqui a parlapatar tolices sem sentido, e vá lá uma pobre alma, que apenas sabe a língua pátria, pôr a cabeça à razão de juros para o entender. Ainda no outro dia, pelos folguedos do seu natalício, o ouvi falar num “homem do talho”. Os tratos que eu dei ao juízo, meu rico São Jorge, até compreender que ele se referia, muito simplesmente, ao uchão ali da esquina.

Recentemente, contudo, a mesa 19 entrou em combate. Cavalos de batalha foram ferrados, armaduras lustradas e areadas, maças de armas sopesadas, e postas à mão de semear. Aconteceu apenas esta coisa singela e magnífica, a um tempo natural e inesperada: o ofício de matador de dragões, que cada cavaleiro, até aqui, exercia de forma graciosa e voluntária, passou de súbito a ser remunerado, uma bolsa de oiro por cada dragão morto. Isto causou uma revolução entre os cavaleiros, tanto mais que, diga-se a verdade, o regime de voluntariado vigente sempre fora um pouco prejudicado pelo costume instituído de empurrarem o cavaleiro em causa para a toca do dragão, por mais que o desgraçado esperneasse.

Mas o pior foi que a justiça, que jamais fora apanágio deste mundo de cavaleiros, há que dizê-lo com frontalidade, pareceu ausentar-se por completo deste processo. Assim, correu o boato de que a equidade, neste caso, faria as vezes de umas cuecas tipo tanga, que tapam tudo mas deixam o rabinho à vista. Segundo se dizia, o rei iria lançar a alguns o seu saco de oiro, dizendo apenas aos outros, Sois grandes matadores de dragões, continuai o vosso bom trabalho, que todo o reino vos agradece.

Foi aqui, face à arbitrariedade da decisão, que os cavaleiros em causa responderam à uma, num brado caracteristicamente medievo, Ide todos para a pata que vos pôs, e, se quereis os dragões caçados, caçai-os vós mesmos.

Veio-se a descobrir depois que, afinal de contas, não era nada disto, e sempre haveria ouro para todos. O rei terá enviado a mensagem por todo o reino, mas mensageiros houve que se atardaram mais, quiçá por mor de outros afazeres. Como diria um diácono que viveu mil anos depois de mim, digam-me lá, meus amigos, se havia alguma necessidade…

A chatice foi que, com tal desordem de procedimentos, com tais protocolos na comunicação das ordens, o desânimo tornou-se mais profundo, em vez de melhorar. Os dragões, esses, foram ganhando terreno. Parece que, nestes tempos conturbados, já ninguém os quer caçar, nem mesmo a peso de ouro.

2.06.2007

73 – Razão.

Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.

És um idiota, disse-me recentemente uma pessoa amiga, presumivelmente com alguma intenção construtiva. És um idiota, repetiu, e não tens razão nenhuma. A realidade factual não se conseguiu pôr à altura das eventuais intenções construtivas, e, da diatribe, sobejou apenas o juízo de valor, eu sou um idiota, e não tenho razão nenhuma.

Isto de ser um idiota não me preocupou em demasia. Eu próprio, seja como for, já há muitos anos acalentava essa suspeita, pelo que a sentença ferina não me causou mossa de grande monta. A questão de não ter razão nenhuma, no entanto, deu-me em que pensar.

Tenho pelo menos o conforto de não estar só, neste deserto de não ter razão nenhuma. Já há muitos séculos o grande Catão se queixava do mesmo, e também não lhe ligavam nenhuma. A frase que abre esta crónica, traduzida (para todos menos um, como diria o Catarino), vem a significar, “A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida a Catão". O homem era de facto um paladino das causas perdidas, e via-se com frequência acusado de não ter razão. A coisa, tanto quanto se sabe, nunca o incomodou muito.

Nestes dias que antecedem o famoso referendo, um tema que está na berlinda é a liberdade de escolha. Fala-se, ad nauseam, dos direitos que detém a mulher que concebeu um filho, e da sua liberdade de o não gerar. Discutem-se com calor pontos delicados, como a diferença subtil entre a liberdade de escolher matar um filho, e a liberdade de escolher não o conceber. Mas começa a parecer-me, a mim, que todo este festival de liberdades se esgota na paridura. Se não é isso que está em causa, não se fala mais de liberdade, e pronto.

Serve esta crónica para defender a liberdade de escolha, mesmo nos casos, bem distintos do aborto, em que essa escolha que se pretende tomar em liberdade é impopular, ou, no mínimo, raras vezes debatida, pelo que não dispõe de uma falange de apoiantes, publicamente assumidos. Está neste caso, por exemplo, a escolha, feita com objectividade e consciência, de não se ter razão, mesmo nenhuma.

Por certo que o direito a não ter razão é bem mais defensável do que o direito ao aborto por opção. Tal como no caso da interrupção voluntária, tem os seus casos de isenção excepcional, como sejam os imbecis, os doentes mentais, todos aqueles que não têm, plausivelmente, aquele mínimo de condições exigível para se ter razões. Também se aplica a este direito um dos argumentos mais queridos dos liberais, “Quem é que nunca o fez?”. Bem, no caso do aborto, julgo que muita gente, mas não creio que haja alguém capaz de se gabar de nunca se ter visto na situação de não ter razão.

Nunca Catão se preocupou com as razões dos outros. Ele tinha as suas próprias razões, e é irrelevante discutir se tinha ou não razão. Defendeu bravamente os seus pontos de vista, até que o mataram, mas isso foi só para lhe darem razão. Bem diz o povo que, neste mundo, quem tinha razão era o outro, e o outro é sempre o morto. Desde esse dia, nunca mais Catão deixou de ter razão.

(É importante não confundir Catão com Catilina, a quem um dia perguntaram, “Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?”, o que vem a dar, em língua,”Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”. Isto deu origem a um étimo, Catilinária, que mais tarde degenerou em Calinada).

O fundamental, aqui, é a liberdade. Na minha opinião – e há liberdade de opinião, ou assim espero – na minha opinião, dizia, não deveríamos estar a referendar o mero caso da interrupção voluntária da gravidez, mas sim a questão mais vasta da liberdade de escolha, fundada, evidentemente, na liberdade de crença. Afinal de contas, faz algum sentido que uma mulher tenha a liberdade de matar o seu filho, fundada na crença de que ele não é ainda uma pessoa, e me seja negada a mim a liberdade de matar o meu chefe, que eu creio sinceramente que é uma abóbora assassina, vinda de Marte para me lixar o juízo?

Como diz o professor Martelo, assim não! Conceda-se livremente o direito de abortar, seja às 10 semanas, seja logo após o nascimento – estou convencido que, para o feto, não fará grande diferença –, mas não me privem a mim do direito de faltar sistematicamente ao emprego, porque acredito firmemente (e, de igual modo, sem qualquer razão válida), que o meu patrão é uma grande tangerina azul, e eu sou alérgico a tangerinas dessa cor.

A minha tese é absurda, mas não deixaria de colher argumentos a seu favor, caso fosse a debate público. Espero que toda a gente concorde que a lei deverá ser mudada, no dia em que a liberdade de ser irrazoável, inimputável e inconsequente for favoravelmente referendada pela maioria da população. Nessa altura, talvez se calem por fim com a história de quando um feto é uma pessoa. Tenha a idade que tiver, ele ou é meu, ou não é. Se não for, a minha responsabilidade é nula. Se for, posso fazer dele o que quiser. De uma forma ou de outra, mato-o, por ser meu filho ou por ser meu chefe, o que é que isso interessa?

Ou será que acham que eu não tenho razão? É que, se quiserem, também podemos falar sobre isso.

P.S. A mesa 19 também às vezes não tem razão, e isso não nos incomoda. Mesmo quando nos falta a razão, nós cá temos as nossas razões.

2.02.2007

72 – A Marta.

Alto-mar, preia-mar,
Baixa-mar, mar morto.
Baixa-mar, baixa-mar,
Bai chamar pai a outro.


A Vânia hoje baldou-se, presumivelmente para estudar (eu acho que foi, na verdade, para se repoltrear no mais iníquo e desenfreado pecado, mas adiante). Teve isso como consequência sermos servidos pela Marta, o que é uma experiência semelhante a substituirmos o peixinho vermelho lá de casa por uma enguia eléctrica, e meter depois a mão dentro do aquário. Numa simples palavra, bem ao gosto do James Bond: Shocking.

Aquilo não é uma mulher, é um dínamo. Não se passa um minuto sem a termos ao nosso lado, saltitante, tentando limpar um cinzeiro que apenas contém uma ponta de cigarro, ou levar pratos e copos que acha que não fazem falta (o fazerem ou não falta, de facto, é um factor despiciendo e irrelevante, que pode perfeitamente ser ignorado, nesta equação). Ela substitui jarros de vinho que não estavam sequer vazios, propõe-se trazer isto ou aquilo, faz o diabo a sete. É quase como ser servido por um cruzamento entre o Benson, mordomo preto da série americana, e o He-Man!

A moça tem também alguns defeitos. Hoje, por exemplo, trazia uns brincos inenarráveis, muito semelhantes a algo que a Floribela poderia ter comprado no Martim Moniz. Censurei-lhe severamente as excrescências, mas tenho de admitir, para ser inteiramente justo, que já no dia anterior a Vânia se tinha apresentado, com as unhas pintadas de um tom tipo Morangos “sou gay” com Açúcar, cor-de-rosa, que em nada lhe favorecia os piercings. São modas.

São, todavia, modas perniciosas. Como diria o bom do diácono, Qualquer dia, hum, andam por aí a tatuar os nomes dos antigos namorados, naquelas zonas traseiras, hum, que são tradicionalmente território da cueca. Depois, quando o novo namorado manifestar ciúmes, pedem-lhe que resolva o assunto com umas valentes nalgadas, bem por cima dos tais nomes, e quem sabe, hum, as porcarias que farão depois. É que o pecado anda à solta, meus irmãos, e vós, se sabeis o que vos convém, deveis ir para junto das vossas famílias, e orar. Ide, pois, e deixai lá ficar em paz as nalgas alheias. Isto, pelo menos, hum, é o que eu penso, não é?

A Marta tem ainda outras vantagens. Para além de ser simpática e saltitante, entre várias coisas, ela ainda nos leva a sério. Se lhe pedimos umas ervilhas com ovos escalfados, sem frango, ela esforça-se conscientemente por nos satisfazer o pedido. A Vânia, pelo contrário, já não nos liga nenhuma, nem quando lhe pedimos a conta.

Eu disse já, em crónica muito antiga, que a Vânia é a nossa terapeuta, e a Marta é uma das nossas tratadoras. Mas, digam-me lá, de quem é que o gado gosta mais? Do veterinário que lhe espeta uma agulha, ou do tratador que lhe dá um torrão de açúcar, apesar das recomendações do clínico? É certo que, no nosso caso são, sobretudo, cheirinhos bem servidos, mas o princípio é o mesmo.

Se eu quisesse discutir os pervertidos pontos de vista de Freud, esse grande tarado, ou as dúvidas de Descartes sobre a sua própria existência, iria provavelmente ter com a Vânia, mas, para me rir um bocado, desconfio que escolhia a Marta. Isto não implica qualquer juízo de valor, as coisas são como são, e pronto.

Volto, ainda, a insistir na questão dos cheirinhos. Ambas são liberais, neste particular, mas a Vânia consegue sempre mostrar que aquilo é um favor especial, e que não tínhamos realmente direito a ele. A Marta, pelo contrário, serve-nos, e pronto.

Resta apenas explicar a relação entre esta crónica, e o poema inicial. Pois bem, tal como na questão do aborto, eu exerço a minha liberdade de escolha, e escolho não a explicar. Estou nesse direito, e pronto. De resto, imaginem que a coisa não tinha qualquer relação? Como é que eu ia explicar fosse o que fosse? Não pensaram nisto antes, de certeza! Ah pois, pois é.