10.31.2006

38 – Menina não entra.

Quando eu era mais novo, ao ponto, mesmo, de me considerarem jovem, costumávamos ler umas coisas chamadas “livros aos quadradinhos”, entidade que no Brasil responde pelo bem mais sucinto nome de “gibis”. Destes, uma parte era considerada infantil, e outra séria, distinguindo-se esta por constar de desenhos a preto e branco, com muitos tiros. A parte infantil vinha assinada por Walt Disney, com raras excepções, entre as quais as histórias da Lulu e do Bolinha, de autor que confesso não recordar, mas sem dúvida genial. Nessas histórias, os meninos, chefiados pelo Bolinha, tinham um clube exclusivamente masculino, sendo que o seu lema é o que dá o título a esta crónica, Menina não entra. O curioso é que eles não podiam passar sem as meninas, mas não queriam também passar com elas. Idiota, não é? Ou será que não?

Serve esta crónica para considerar a seguinte questão: não há mulheres na mesa 19. O facto, simples e brutal, não se presta a discussão, estando os seus fundamentos expostos para quem os quiser ver. Ao longo destas trinta e oito crónicas, sentei já na nossa mesa cerca de dez clientes habituais, fora uns quantos turistas, e todos eles enfermavam do sindroma da posse de pénis, coisa que por hábito distingue os elementos do sexo dito forte, o masculino. Nunca, desde que comecei a frequentar a mesa 19, foi esta distinguida com a gentil presença de uma feminil figura.

Rezam lendas mal confirmadas que sim, que no tempo em que os animais falavam, veio uma Helena das terras do norte, suavizar com o seu estro feminino a brutalidade grosseira do género macho, aquele que não evoluiu desde os ditosos dias das cavernas, quando o homem não tinha mais trabalho do que matar um pterodáctilo para o pequeno-almoço, e um par de brontossauros para encher a despensa. A mulher, nesses tempos arcaicos, servia para aplaudir o homem pelos seus feitos de músculo. Hoje, as coisas mudaram, a mulher não se presta já a esses papéis, e não serve mais para nada.

Isto será talvez um pouco drástico, querendo o adjectivo dizer que é politicamente incorrecto. A correcção política, muito em voga nos nossos tempos, manda-nos elevar aos píncaros da qualidade e competência todo o bicho careto, desde que se trate de: a) uma mulher; b) um preto; ab) uma mulher preta; c) um transsexual; cb) um transsexual preto; cba) um transsexual convertido numa mulher preta; d) a Woopy Goldberg. Quanto a um homem heterossexual que viva satisfeito com a sua sexualidade, trata-se evidentemente de um verme machista e explorador, apenas digno de ser calcado aos pés, com um trejeito de nojo.

E, ai de mim, é desses vermes que se compõe a mesa 19. Somos todos homens, daqueles que arrotam sem complexos o almoço ingerido (certo, isso sou mais eu, mas adiante). Calamo-nos todos em admiração quando entra um grupo de mulheres bonitas, e posso afiançar que nenhum de nós está a pensar no prazer que seria fazer tricot com elas. A Vânia não nos percebe, porque está ainda a meio do curso. Já estudou o lobo, falta-lhe estudar a alcateia. O facto é que nós somos perigosos, como cães que caçam em matilhas. Uma mulher, no meio de nós, correria o sério risco de ser deglutida!

Façamos um exercício de imaginação: digamos que existe uma mulher, apenas uma, entre os frequentadores da mesa 19. Somos seis, por hipótese, cinco homens e Ela. Nós pedimos um jarro de vinho, ela pede um ice tea de manga e raiz de jasmim, e estranha o nosso pedido, Tanto vinho? Ninguém tem alma de lhe explicar que não, que essa procissão ainda vai no adro. Um sorriso comprometido, e ficamos todos calados, com o ar inteligente de basbaques.

O jarro vazio comanda urgente pedido de reenchimento, e a comida ainda nem sequer chegou. A ninfa, entre dois gargarejos da beberagem pseudo-tropical, horroriza-se com “toda aquela vinhaça”. A Vânia faz causa comum com ela, como é próprio do sexo enfraquecedor, e nós começamos a criar uma certa vergonha de sermos uns beberrões abomináveis. Ainda não começámos a comer, e parece que já bebemos demais!

Após um almoço sensaborão, de tão depurado de qualquer termo menos consentâneo com a delicada sensibilidade auricular de uma virgem grega, por mais que os factos conhecidos tendam a colocar a nossa amiga na categoria das cortesãs romanas em fins de império, chega a hora dos digestivos. E aí, meus amigos, o melhor é pedirmos todos um chá, ou estaremos bem lixados, com um F muito grande. Whisky, brandy, vodka? Só se fosse um creme de mente, e mesmo assim… não, não dá!

A mesa 19 é uma daquelas coisas de homens, e ponto final. É uma guerra nossa, e as mulheres podem sempre torcer por nós, para que a ganhemos. No fim, o benefício será mútuo, pois o que nós ganharmos será ganho em nome delas. Que diabo, é para isso que os homens servem, ou não é?

10.30.2006

37 – A mesa 19, segundo Einstein.

É facto bem sabido, já desde os alvores do século finado, que tudo neste mundo é relativo. Afirmava alguém que não, que isso de ser tudo relativo não é um dado absoluto, pois essas coisas são muito relativas. A contestação vem, paradoxalmente, comprovar a tese original, e fica-nos a certeza de que o velho Einstein descobriu realmente alguma coisa importante. Que coisa poderá ser essa, eis o que desconheço em absoluto, sendo, como sou, um completo ignorante em questões de física. Isso não impede, no entanto, que o tente explicar aqui. Vamos então a isso.

O que vem a ser, nesse caso, a teoria da relatividade? Bem, trata-se claramente de uma teoria, e aquilo sobre que teoriza é, evidentemente, a relatividade. Consiste esta última em e=mc2, fórmula de miraculosa aplicação a todas as realidades da vida, incluindo a arte de bem apertar o botão das calças. No nosso caso concreto, tem-se que E é a ementa, M a mesa, logo igual a 19, e C2 o quadrado do número de convivas. Conclui-se, portanto, que deveria haver muitos mais pratos disponíveis, em cada almoço, pelo que andamos aqui a perder qualquer coisa. Não é esta a única equação envolvida, de modo nenhum, mas chega para nos dar uma ideia do assunto.

O ponto que aqui nos interessa é o seguinte: a teoria da relatividade dá origem a paradoxos, relacionados com a contracção do espaço e do tempo, aspecto em que é muito semelhante à mesa 19. Como justificar, por exemplo, que a primeira hora passada no restaurante se dilate, ao ponto de nos permitir almoçar e tomar cafés, enquanto o tempo seguinte se contrai, passando à desfilada uma quantidade de minutos gastos em nada? De que forma compreender a complexa geometria espacial de uma mesa que, com quatro lugares, acomoda todo o grupo, enquanto noutras vezes se apresenta com seis, e não bastam? São paradoxos que nem o velho Alberto saberia explicar!

Se a questão do tempo poderia ser eventualmente atribuída às libações alcoólicas do almoço, hipótese que veementemente nego, já a anomalia espacial resulta muito mais difícil de explicar, já que se manifesta logo no início dos trabalhos, antes que qualquer bebida seja consumida. Alguns autores defendem que, para além da quantidade de néctares espirituosos, há a considerar ainda o peso total de marisco presente à mesa. Ora bem, nós costumamos de facto almoçar com uma santola de oitenta quilos, o que é muito marisco, visto sob qualquer ângulo. Será essa a causa dos paradoxos?

Bem que eu sempre disse, esta mania que o Paulo arranjou, de se fazer passar por um crustáceo, ainda havia de dar mau resultado. Mais de uma vez o imaginei detido por atentado à moral e bons costumes, escoltado por dois agentes rudes, que se entreteriam com trocadilhos boçais e soezes, tipo, Pinças que és muito esperto? Baixa mas é as antenas, senão amolgo-te a carapaça. O que jamais me passou pela cabeça, no entanto, foi que a sua pequena brincadeira transgénica fosse capaz de interferir no próprio tecido do espaço-tempo.

Não restam contudo dúvidas, as tenazes da santola rasgaram mesmo esse fino tecido, e tudo se tornou possível. A refeição do meio-dia à uma pode acabar às três da tarde, ou a meio da manhã, numa mesa cujo tamanho vai variando ao sabor de uma incógnita ferozmente irracional. Eis-nos caídos em plena “Alice no país das maravilhas”. O jarro de vinho é o espelho, e a Vânia é o coelho branco. A Marta é a rainha de copas, e o Rui Constâncio, com umas tranças em vez da barba, é a Alice. Quanto a mim, reclamo o direito de ser o chapeleiro louco.

Resta então saber, face a isto, se Lewis Carrol já sabia que e=mc2. É bem provável que sim, e, nesse caso, Einstein limitou-se a caricaturar toda esta situação, com a sua teoria da relatividade. A chave para a leitura é agora evidente, a Vânia seria a Alice, e o Rui seria a mãe do coelho branco. Eu seria o irmão mau do chapeleiro louco, personagem que constitui um desafio, por não existir, e o Paulo Sousa apareceria figurativamente, como uma chávena de chá. Penso que isto resolve o mistério, no caso de não haver dobrada. Se houver, teremos de recorrer à mecânica quântica, e todos sabemos o que o velho Alberto pensava acerca disso.

Antes isso, no entanto, que ter de achar a derivada da mesa 19. A nossa mesa não se deriva, porque é primitiva. E pronto.

10.27.2006

36 – E, finalmente, a sobremesa.

Hoje tivemos um convidado na mesa 19. O caso é raro, e de feliz nota, pois a nossa mesa tem alguma tendência para se fechar sobre si própria, e faz-lhe bem sair mais, conviver um pouco. Veio este novo comensal pela mão do Rui Cardoso, e responde pelo nome de Jerónimo, com J, para não se confundir com aquele Gerónimo que era chefe de índios, e tinha o estranho hábito de gritar o seu próprio nome, de cada vez que caía do cavalo.

Nada há de menos bom a dizer sobre este Jerónimo, nem seria de esperar que houvesse, vindo ele com quem veio. É sabido que os amigos do Rui são amigos da mesa 19, e tão adequados a ela como ele próprio. O almoço transcorreu entre conversa amena e bem disposta, houve risos sapientes, e também juízos finos e sérios, como convém a gente ilustrada. Chegou enfim a hora em que a Vânia inquire sobre as sobremesas, e foi aí que o Jerónimo cometeu o seu erro.

Não se pode realmente censurar o rapaz pelo lapso havido, pois este teria sido normalíssimo noutro lado qualquer. Não, acontece apenas que ele não conhecia a Vânia como nós a conhecemos. Só assim se explica que lhe tenha pedido para o informar sobre as sobremesas disponíveis. Pior, num extremo de imprudência, pediu-lhe para detalhar todas as sobremesas, todas elas, compreendem? Tivesse antes consultado um de nós, e já saberia que aquilo não é pedido que se faça, não naquela casa, pelo menos.

A Vânia exultou, como é evidente. Eu não sei se já o disse aqui, mas o maior prazer daquela jovem é recitar de memória a lista das sobremesas, lista que se pareceria bastante com o inventário das existências de um grande armazém, caso fosse um pouco mais curta. Enchendo o peito de felicidade, ela lançou de pronto a sua ladainha:

Ora bem, temos mousse de chocolate, mousse de manga, mousse de limão, mousse de tremoço, gel mousse para cabelos secos e molhados, doce de natas, doce da casa, doces de três outras casas, uma das quais em estilo colonial, muito bonita, argentino, marroquino, tuaregue, bósnio, outro argentino, primo do primeiro, mas que mora nos arredores de Buenos Aires, baba de camelo, ranho de camelo, camelo ao natural e cristalizado, bolo de bolacha…

Por todo o restaurante, a vida continuava. Numa mesa afastada, diziam-se disparates sobre o campeonato nacional de futebol. Na mesa 19, cigarros eram fumados, apagados, e substituídos por outros. Dois convivas iniciaram uma partida de xadrez. E a Vânia prosseguia, infatigável:

…tarte de amêndoa, bolo de noz, bolo de vós, bolo deles, bolo de chocolate, nas variantes com e sem, sendo este último a versão de dieta, com pequenos caracóis em vez do chocolate, torta de gila, direita de gala, torcida de gola, jesuítas, beneditinos, franciscanos, testemunhas de Jeová, pudim de coco…

A torre branca deu um salto felino na direcção do bispo preto, espécie de Desmond Tutu que ali estava especado sem fazer nada. O bispo, miseravelmente surpreendido, foi juntar-se aos montes de pedras que juncavam já os dois lados do tabuleiro. Os olhos em bico do Jerónimo começavam a trair uma inegável ancestralidade oriental. Sem se apiedar, a Vânia continuava:

…pudim flan, pudim de ovos, pudim de leite, pudim de ovos com leite, pudim de ovos com bacon, pudim de dobrada, encharcada, ensopada, alagada, bola de Berlim, cubo de Estocolmo, prisma de Sevilha, cilindro de Istambul, bolo inglês, francês, italiano, naturalizado húngaro, emigrante ilegal na Alemanha, travesseiros, almofadas, lençóis e cobertores, e pão-de-ló, pão de lá e pão daqui.

O bom Jerónimo, olhos já cerrados de tão chineses, ousou a medo respirar. Teria acabado a enumeração? No tabuleiro do xadrez, o rei branco, que tinha ficado sozinho no fim do jogo, parou de roer os quadrados pretos, e prestou atenção. Mas não, eram só os doces que se tinham acabado, não o fôlego de Vânia.

Quanto a fruta, temos abacaxi, melão, laranja, limão, tomate, que também é um fruto, maçã, uva branca e preta, em cachos ou jarros, banana, para quem gosta dessas coisas, kunami, maracaté, farfalle, manga, gola, bolso de camisa, mamão, só para maiores de 18 anos, pêra abacate, pêra rocha, pêra calhau, pêra e bigode, e pêssegos em calda. Ufa…

Acabara a lista! O Jerónimo, timidamente, pediu uma mousse de chocolate, mas parece que não havia, e a Vânia garantiu que nunca falara em tal coisa. Como não, fez o indignado cliente, foi logo o primeiro artigo da lista! Pois aí tem, triunfou a Vânia, acabou-se entretanto. A gerência pede desculpa pelo facto. Peça então o que quiser, desde que não tenha nada a ver com mousse de chocolate.

Face à visível hesitação do comensal, a Vânia sugeriu um argentino. Pode ser, balbuciou Jerónimo, mas o que vem a ser isso? Vai gostar, garanto-lhe, é muito bom. Trata-se de uma taça com um pouco de leite-creme, coberto com mousse de chocolate.

10.25.2006

35 – Os pequenos portugueses.

Foi num amplo salão acastelado, varrido pelo ar frio do Inverno, que penetrava traiçoeiramente pelas frinchas das paredes de pedra mal nivelada, que D. Afonso Henriques intimou a mãe a ir às boas, ou então ele fundava um país, e aí é que estava tudo lixado. Outros reis marcaram a nossa história, do alto dos seus tronos luxuosamente estofados. Estadistas vieram depois, deliberando gestas prodigiosas em salões apalaçados. Vingaram os descobridores sobre o tabuado dos seus navios, e noutra nau partiu esse Sebastião, que depois se esqueceu de voltar. A santa Sé, dos seus paços governava a cristandade, e a fé triunfou em magníficos mosteiros. Só de uma coisa não reza a história pátria, é de grandes cometimentos ocorridos em mesas repletas de comida, a menos que de feitos de glutonice se tratasse, mas desses não reza nunca a história.

Vem esta crónica a propósito de uma votação que presentemente decorre, intitulada “Os Grandes Portugueses”, e que tem por fim eleger o maior português de todos os tempos. Matéria pacífica, esta, que em nada despertaria o nosso comentário, se não fora o facto, bem patenteado no parágrafo anterior, de ser a mesa 19 inelegível para tal galardão. Dirão alguns que não, evocando grandes nomes da literatura que se realizaram nesse mesmo palco, gente como Pessoa, Mário de Sá Carneiro, e até Eça de Queirós. Não deixa de ser verdade, mas Pessoa só por derrota se sentava à mesa, e nunca Eça fez tal coisa, quando liderava a geração de 70. Só uma década mais tarde se juntou restaurativamente aos Vencidos da Vida, ao lado de outros nomes derrotados, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins, gente que reconhecera já a incapacidade da sua famosa geração para mudar o país. Podem ter sido grandes portugueses, não o foram, decerto, em torno da mesa. Quanto ao Mário, e os seus absintos, estamos conversados.

Também na mesa 19 me custa vislumbrar um vencedor para tal concurso, isto sem desprimor para qualquer dos convivas. A verdade é que se torna difícil equiparar um dito humorístico, mesmo epigramático, com o lapidar “Ou sais pela porta, ou pela janela”, que celebrizou os insurrectos de 1640, ou as opiniões avulsas sobre o que está mal no actual sistema, com o corte a direito que foi a expulsão dos Jesuítas. Mesmo a heróica actuação da Vânia y suas muchachas, que contra toda a esperança vão derramando comida sobre a mesa 19, empalidece no confronto com essa genial padeira, que em Aljubarrota venceu lançando pão sobre o inimigo. Haveremos, então, de concluir que de nada vale o nosso grupo, e que estão os pátrios destinos bem entregues a mãos alheias? Julgo que não.

Um projecto em grande escala, como, por exemplo, um país, parece-se bastante com um míssil teleguiado. Carece de impulso inicial para se lançar em voo, bem como de impulsos fortuitos, para corrigir a sua trajectória. Na maior parte do tempo, no entanto, o que conta é o motor que, discreto e eficaz, vai impulsionando o míssil na direcção que lhe foi estabelecida. Assim foi Portugal fundado e moldado por grandes portugueses, mas jamais chegaria a existir se não fossem os pequenos portugueses, todos eles.

Todos? Isto perguntava César, nas aventuras dos gauleses, e também aqui temos de responder, Não. É aqui que umas tertúlias se distinguem de outras, é aqui que a mesa 19 marca a sua diferença em relação às restantes mesas. É que a nossa tertúlia, a mesa 19, calha não ser constituída por uma cambada de patetas. E, perguntarão, basta isso? Pois basta! Hoje em dia, é quanto basta.

Seria interessante organizar a votação dos melhores pequenos portugueses de todos os tempos. O resultado, receio bem, excederia largas centenas de milhões, englobando medievais homens de mão, camponeses de todos os tempos, bem como cidadãos mais modernos. Excluídos seriam aqueles nobres do século XII que em má hora se bandearam com os mouros, os senhores feudais que não contribuíram para o crescimento do reino, os falso republicanos que não queriam derrubar a monarquia, os pretensos monárquicos que vivem à custa da república, todos os que votaram no Salgado Zenha para presidente, e os fãs do Manuel Luís Goucha.

Sobrava ainda bastante gente, pessoas com espírito e vontade própria, pessoas com ideias e objectivos, pessoas, digamos, como as que se sentam na mesa 19. É para essas pessoas, é sobretudo para essa histórica mesa, que eu reclamo o galardão de melhores pequenos portugueses. E deixem lá os grandes, que mais não fizeram, afinal, do que cumprir a sua inevitabilidade histórica. A história, de resto, já os recompensou largamente. Agora é a nossa vez.

10.17.2006

34 – O fantasma da mesa 19.

Conta-nos Almeida Garrett, nessa lindíssima obra chamada “Viagens na minha terra”, sendo aquele minha a sua, isto é, sua dele, e bem assim nossa terra, que de uma ida a Santarém se trata, mas dá-nos ele, dizíamos, logo no primeiro capítulo, esta estupenda máxima literária: há livros que não deviam ter título, e títulos que não deviam ter livro. Cita, como exemplo do segundo caso, o excelente “Poeta em anos de prosa”, título sublime, ao ponto de ser impossível produzir um livro que lhe faça justiça. O acto de escrever um livro, com efeito, implica que se tem algo para dizer, de preferência algo novo, e não há, pura e simplesmente, nada que se possa acrescentar a “Poeta em anos de prosa”, título que disse já tudo o que havia a dizer.

Passando agora a circunstância mais chã e comezinha, temos a considerar o título da presente crónica. Parafraseando certo humorista da nossa praça, o título é um bom título, e não havia necessidade de estar agora a hesitar quanto à crónica que se há-de escrever por baixo dele. Mas a caneta vacila, estaca numa desavergonhada indecisão, e não há quem a convença a escolher uma vereda, e meter pés ao caminho. Para cúmulo do impasse, arma-se ainda a descarada em carapau, daqueles de corrida, e tenta devolver o problema ao pobre escriba, sugerindo que talvez seja melhor título, “O espírito da mesa 19”. E esta, hein? Com quem havia eu de ter casado a minha prima…

Espírito, ou fantasma? Parece isto uma questão idêntica à das chamadas grátis ou à borla, e contudo não o é. As esferas de significados das duas expressões são distintas, conquanto se interpenetrem (como diria o Baptista Bastos, isto de se interpenetrarem faz-me lembrar uma outra história, mas não há tempo para a contar aqui). Por outro lado, diz o sábio povo brasileiro, a quem costumávamos chamar os nossos irmãos transatlânticos, mas já não chamamos, porque agora estão todos deste lado do Atlântico, e além disso é melhor que paremos de os chamar, ou ainda vêm mais para cá, mas dizem eles, repito, que “desgraça pouca é bobagem”. Só para lhes dar razão, deixem-me propor um terceiro título, “A alma da mesa 19”.

Alma, espírito, fantasma… todas estas palavras têm um significado comum, respeitando à porção imaterial de um ser feito de matéria. Têm todas, também, um segundo sentido, que é próprio de cada uma, e distinto das demais: alma é vigor interior, força que por isso se chama anímica; espírito é o ideal, o conjunto de noções e sentimentos comuns que norteiam um indivíduo ou um grupo; fantasma é uma ameaça, o calafrio que o crepúsculo nos traz quando as sombras dominam, o temor arrepiado do desconhecido, do perigo metafísico que impende sobre nós, o lado negro do além.

Estas considerações, necessariamente tão vagas como a natureza etérea do conceito que tentamos abranger, poderão ser melhor condensadas numa frase exemplificativa. Digamos, “Toda a alma da mesa 19 se insurgiu contra a falta de dobrada. O nosso espírito, verrinoso e cônscio dos seus direitos, meditou uma vingança digna da afronta. Talvez se fizéssemos pairar sobre o restaurante, qual sombra ominosa, o fantasma da deserção da mesa 19? Mas, não, quem é que nos acreditaria?”. Julgo que este exemplo ilustra bem o nosso ponto de vista.

Mas há ainda o outro significado, aquele que agrega os três significantes numa única interpretação, o lado espiritual de uma entidade material. O ente que assim se projecta não é por força um ser humano, nem sequer um ser vivo, isto no sentido convencional e biológico da palavra. De modo algum, pode muito bem ser uma instituição, como uma escola, uma igreja, ou uma mera tertúlia que se agrupa, digamos, em volta de uma mesa, como a 19. Nesse sentido, o fantasma da mesa 19 é uno mas também múltiplo, sendo como é o conjunto de todos os “nós” que aí se sentam, altas horas da madrugada, quando nós não estamos lá sentados.

Isto postulado, acho-me agora em sério risco de que me acusem de levar demasiadamente a sério a mesa 19. Ora, isto não é verdade, ou, se o é, não é pelo menos assim. Eu levo a sério, muito a sério, mesmo, toda e qualquer agremiação de pessoas que cultive o hábito de se reunir em torno de gostos e valores comuns, e que privilegie o costume de pensar por si própria. Creio firmemente que tais associações, e apenas elas, poderão constituir uma barreira efectiva contra a lógica corporativista que ameaça destruir a humanidade, tal como hoje a conhecemos.

Um almoço mais tardio, com regresso jovial e impenitente. Uma censura recebida com um sorriso, um paradigma de empresa deitado ao desprezo. Os poderes estabelecidos reprimem um arrepio, vagamente enregelados pela sombra que inesperadamente macula o sol doirado da nova ordem. Mas não, senhores, não é nada de grave. Grave, para vós, é somente o que é material e tangível, e de nada disso se trata. Não é ainda a revolta armada, é apenas o fantasma da mesa 19.

10.16.2006

33 – Dies Irae.

Tremei, mortais, pois que impende sobre nós a consumação dos tempos. Eu, que aprendi no livro do apóstolo João os sinais da besta imunda, do anunciado anticristo, conheço agora que a sua hora é chegada. Escutai, como eu escutei, as sete trombetas, vede, como eu vi, o romper dos sete selos, admirai, como eu admirei, o celestial galope dos quatro terríveis cavaleiros, esses quatro magníficos que vão remir a humanidade, destruindo-a. Temei o julgamento Daquele que está sentado, pois serão poucos os escolhidos, e muitos os condenados. Receai uma só coisa, mas fazei-o com toda a vossa alma: receai o sétimo dia!

Serve esta crónica para falar do apocalipse, e de como este está próximo. Desenganem-se os iludidos, pois é a esses que peço que abram os olhos, e vejam os sinais. Desde há muito que os quatro cavaleiros campeiam pelo mundo fora. A Peste vestiu roupagens mais modernas, e responde hoje pelos nomes de Sida, e de cancro, mas nem por isso é menor a sua pestilência. A Fome tem em avença metade do globo, e a Guerra por toda a parte decide os humanos destinos. Sobre os ricos despojos que estes três vão deixando, triunfa o sinistro cavalo pálido, cujo cavaleiro se chama Morte.

Resta então saber o seguinte, como se tem saído a mesa 19, neste turbulento final dos tempos? Como sempre, a nossa mesa está em sintonia com as grandes realidades, e também nela se tem visto o quebrar dos selos, também dela se têm escutado as ominosas trombetas. Prenunciou a primeira neve e gelo, e a atitude da Vânia para connosco arrefeceu. Com a segunda, tingiu-se de sangue a terça parte das águas dos rios e dos poços, e a Vânia pintou o cabelo com um tom mais escuro. Note-se que o cabelo da Vânia é, precisamente, um terço dos cabelos femininos que aí nos servem.

Há ainda as duas bestas do apocalipse. A primeira, vinda da terra, semelha um enorme urso, enquanto a segunda provirá do mar. Ora bem, já há algum tempo que o Zé Eduardo anda embezerrado como um urso, se é que os ursos podem parecer bezerros, e não é ilegítima a metáfora. Mais recentemente, o Rui Constâncio deu em passar toda a refeição calado, lembrando, pelo porte, postura e inacção, uma versão ampliada de um cavalo-marinho, embora a barba estrague um pouco o efeito. O hábito que o Paulo Sousa adquiriu recentemente, de se vestir de santola, não se enquadra bem nesta teoria, o que conduz à suspeita de que se trate apenas de uma manobra dele, para despistar.

Por falar nisso, o nosso Paulo tem um segredo. Gostava de o contar aqui, mas não posso, porque é segredo. Isto não significa, como se poderia pensar, que eu me comprometi a manter a coisa confidencial, mas sim que não posso mesmo contá-lo, porque também é segredo para mim. Ele não mo conta, porque diz que não sou de confiança. De qualquer modo, a coisa é intrigante: quando um indivíduo é um reconhecido pederasta, com toda a fibra moral de uma feijoada, e uma marcada apetência por pornografia alternativa, que outro segredo poderá ainda ter, que considere embaraçoso?

Estou apenas a brincar, como é evidente. O nosso amigo Paulo não é nenhuma dessas coisas. É mesmo, estou disposto a jurá-lo, uma das santolas mais porreiras que conheço, mas está-me a irritar não saber o seu segredo. O assunto veio à baila numa altura em que a mesa discutia episódios diversos, todos envolvendo o acto de cagar fora do penico. Tudo leva portanto a crer que o segredo do Paulo se enquadre neste esquema de merda, fazendo assim jus à sua proveniência de Bostis Merdix 7. Ou isso, ou então será outra merda qualquer.

E deste modo vamos indo, sempre receosos dos calamitosos portentos que nos aguardam. A Vânia está cada vez mais ríspida, e ameaça-nos a torto e a direito. É evidente que é ela o Sentado, que virá separar os justos dos culpados, lançando estes últimos nas eternas labaredas infernais. Bem se vê que já nos julgou, e estamos todos condenados a descer às catacumbas.

Está visto, vamos passar a eternidade na cave do restaurante, com o ar condicionado desligado. Não importa, mais tarde haverá luar, e talvez um penico para o Paulo, também.

10.13.2006

32 – Duas doses de jarros à portuguesa.

A paz quebrou-se. Singelas palavras, estas, que nem por um momento deixam entrever a brutalidade do facto que descrevem. A mesa 19 pegou em armas e ergue agora barricadas, por trás das quais se azafama a escorvar os fuzis, fazer provisão de chumbo e polvorinho, e aguçar o fio aos punhais das baionetas. Prepara-se uma guerra civil como nunca se viu igual, pelo menos em terras lusas, a Tomada da Bastilha recontada em língua portuguesa. Aux armes, citoyens.

Serve esta crónica para dizer os veros sucessos do escândalo que esta semana viu a luz do dia, verdadeiro watergate instalado à mesa 19, sendo que as revelações deste não provêm de nenhum garganta funda, mas sim, paradoxalmente, de um garganta estreita. Mais precisamente, de um jarro de garganta estreita. Eu explico…

Terminada que estava a refeição, bem como os seus legítimos complementos, entretínhamo-nos todos nas costumeiras actividades finais, tais como dividir a conta, manipular trocos diversos, atirar bolinhas de papel às empregadas de mesa, e procurar algum disparate novo, que se pudesse executar com as alfaias ainda disponíveis. Foi nesse espírito de curiosidade científica que o Carlos Santos, após tentar várias combinações possíveis, acabou por enfiar um copo de vinho dentro de um jarro vazio.

Movido por um natural impulso de solidariedade, o Rui Cardoso tomou de imediato o seu próprio copo, e tentou enfiá-lo no jarro vazio que tinha à sua frente. Tentou, mas sem resultado – é que o copo não entrava. Pasmo e estupefacção na mesa 19, onde a todos pareceu claro que alguma lei estava ali a ser violada, restando todavia saber se pertencia tal lei às da física, se às que protegem os direitos do consumidor. Para deslindar o imbróglio, foi a Vânia severamente convocada, com carácter de urgência.

Começou a nossa musa por confirmar os factos, atestando primeiro que um dos copos entrava sem dificuldade, o outro nem sequer com ela. Trocou depois os dois copos, manobra inteligente que lhe permitiu constatar o seguinte: o copo que entrava no primeiro jarro não passava no segundo, e o copo antes bloqueado por este jarro cabia perfeitamente no primeiro. A conclusão impunha-se, incontornável: apesar de ambos os jarros proclamarem, gravada no próprio vidro, a sua capacidade e predisposição para conterem cada um deles um litro, o facto é que os seus diâmetros eram dissemelhantes, logo, diversa a quantidade de vinho que transportavam. Estava ateado o barril de pólvora.

Pois então, nestes tempos de Europa e de normalização, de sal em pacotinhos e azeite em pequenos frascos, para que cidadão algum seja roubado da sua justa ração de condimentos; de doses servidas em travessas individuais, de forma a garantir a equitativa divisão das iguarias adquiridas; dos palitos embalados individualmente, tão individualmente que seria um escândalo caso se vissem dois no mesmo pacote; nestes tempos de rigor, em suma, andavam ali a vender-nos quantidades inexactas de vinho, como se de litros precisos, milimétricos, ou melhor, mililítricos, se tratasse? Ora digam-nos cá, o que havíamos nós de pensar disso?

O que realmente achámos disto, poderá o leitor facilmente adivinhar. É evidente, para quem nos conheça um pouco, que achámos muito bem, a tal ponto que teríamos todo o prazer, se solicitados, em patrocinar ao restaurante um conjunto de jarros desiguais, todos oscilando entre o quase litro e o litro e tal, como aqueles dois.

A verdade, se querem mesmo saber, é que ninguém naquela mesa simpatiza muito com esta Europa normativa e corporativa, protectora apenas do que lhe apetece proteger, seja ou não tal coisa relevante; que regulamenta o número de amêijoas em cada dose de carne à alentejana, e conta as gambas que se hão-de pôr sobre cada prato de arroz de polvo; que decide o tamanho que devem ter as maçãs, mas não se importa se sabem ou não a maçã; que me obriga a rasgar seis dos malfadados pacotinhos de sal para temperar decentemente a comida, e me garante que é tudo para o meu bem. Essa Europa é uma chatice, e é um perigo – no dia em que decidirem normalizar também o tamanho do cliente, lá vou eu ter de deixar de almoçar.

Os jarros não são todos iguais? Ora engole lá essa, Europa, que é assim que as coisas se fazem por cá. Os jarros são diferentes, porque também os clientes são desiguais, e é forçoso que a necessidades distintas correspondam meios diversos. Ao cliente sequioso dá a Europa o seu litro de vinho, e outro tanto ao cliente moderado. Que lhe importa, a ela, que falte a um o que ao outro sobra? Mas importa à Vânia, que terá o cuidado de servir um litro grande ao primeiro, e um litro menor ao segundo. Pagam os dois o mesmo, a troco de quantidades distintas? Não senhores, pagam o mesmo, a troco da mesma satisfação, o que é perfeitamente justo.

Mantenham-se então as barricadas, mas contra o verdadeiro inimigo. Quanto ao fenómeno dos jarros, é algo que terei sempre prazer em celebrar, numa copiosa libação. Com um jarro grande, se possível.

10.11.2006

31 – A espuma da mesa 19.

A manhã começou com o costumeiro nascer do sol, mas não se deixou ficar por aí, e seguiu em frente com a sua vida. Passava agora um pouco das onze horas, e o tal nascimento já ia bem longe, dissipada que estava a excitação da efeméride, e os cartões congratulatórios à feliz mamã, e ao baboso papá. O sol era agora um rapagão espigado, bem longe da idade dos cueiros e dos biberões, e começava a aproximar-se a hora do almoço.

O restaurante abriu as portas, num bocejo mal disfarçado, e os empregados aproveitaram a deixa e entraram por ali adentro, como se fosse para isso que a porta servia. Vítor contemplou a sala vazia e deserta, e preparou-se para a sua postura quotidiana. Principiaria, como já era hábito, pela mesa 19, ex-libris do estabelecimento. Tomou o seu lugar sob o ar condicionado, agachou-se, e, com um bater de asas e um cacarejar lamentoso, começou a pôr as mesas.

Lá dentro, a cozinheira não parava, excepto quando a tal era forçada pelo casual embate com alguma peça de mobiliário, entrando nesses casos em acção o mecanismo de bate-e-volta, que a levava a rodar sobre si própria, partindo logo em outra direcção. A maior parte dos preparativos ficara feita na véspera, ideia inspirada pelo prefixo “pré”, que encabeça a palavra “preparativos”, mas havia sempre ajustes de última hora a fazer. As coxas de galinha podiam ser um problema, mas estas, felizmente, eram da variedade de coxa que traz as suas próprias muletas e cadeiras de rodas. As salsichas frescas estavam firmemente enroladas no lombardo, embora o lombardo insistisse que aquilo não podia ser, pois tinha mulher e filhos, lá na Lombardia. A dobrada, contudo, vinha outra vez mal vincada, e foi necessário estender tudo, e voltar a dobrar.

Tiveram ainda de riscar apressadamente da lista os lombinhos de novilho aux champignons, quando descobriram que o merceeiro tinha voltado a mandar simples cogumelos, e o suposto bacalhau da Noruega foi uma decepção: não sabia uma só palavra de norueguês, e cumprimentou-os numa espécie de francês mascavado, com vincado sotaque palestiniano. Deitaram aquilo tudo fora, não fosse explodir, e substituíram-no, na ementa, por uma omoleta aux champignons. Usariam os tais cogumelos, paciência, talvez ninguém desse por nada.

Tudo a postos, meio-dia a soar, a Vânia deu o tiro de partida, atingindo mortalmente o primeiro cliente, que vinha justamente a entrar. Azar, pensaram todos, ninguém o mandara fazer uma falsa partida, mas a verdade é que sempre era menos um para pagar a conta, e coisas destas nunca são boas para o negócio. O cadáver removeu-se a si próprio, apressadinho como sempre, e os restantes clientes começaram a afluir, desta vez vivos.

Os comensais da mesa 19 foram os primeiros a chegar, isto se descontarmos várias pessoas que pouco interessam, por não serem da mesa 19. Um a um, cruzaram a soleira da porta, levando algum tempo neste processo, visto que era necessário voltar a descruzá-la após cada entrada, ou mais ninguém poderia passar. Vinham cinco ao todo, e a mesa posta pelo Vítor apenas acomodava quatro, mas não quiseram exigir-lhe novos esforços, e contentaram-se em roubar os lugares suplementares à mesa do lado. Esta ainda deu parte do roubo, na esquadra local, mas parece que lhe disseram que tinham muita pena, mas nada podiam fazer. Veio a descobrir-se depois que era mentira, eles não tinham pena nenhuma.

Daí em diante, os pedidos sucederam-se, três dobradas, meia de costeletas, um jarro de tinto, não, dois, uma esmolinha pelo Santo António, o picante, a carta e documentos do veículo, a mão da sua filha em casamento, outro jarro de vinho, que estes parece que vinham rotos, a conta. A Vânia não tinha mãos a medir, por isso nós emprestámos-lhe as nossas, que ela mediu conscienciosamente, chegando a um comprimento total que em nada diferia da soma das partes. A dobrada, pelo seu lado, deu boa conta de si, quase se podendo dizer o mesmo do feijão.

Já na hora dos aperitivos, os disparates que emanavam da mesa 19 tinham deixado a Vânia fora de si. Quando voltou a reentrar em si, constatou que o seu corpo tinha aproveitado a sua ausência para envenenar toda a mesa com cicuta. Mesmo o Rui Cardoso, esse habitual abstémio, fora perfidamente enganado com um pretenso licor de dobrada, uma especialidade que ele não quis deixar de experimentar. Ao contrário daquele prestável cliente inicial, os cadáveres recusaram-se firmemente a sair pelo seu próprio pé. Sobre a mesa 19, pairava uma certa flatulência post-mortem.

A tarde declinou já, e o sol morre no ocaso. Morre chateado que nem um peru, após constatar que se voltou a deixar enganar pelo mesmo velho truque, ranhoso e com barbas, com que todos os dias o matam. Serve-lhe de consolo a ideia de que voltará a nascer no dia seguinte, vagindo inocentemente o romper da aurora. Também a mesa 19 renascerá. Infelizmente, apenas para constatar que já não há dobrada.

10.10.2006

30 – Patanada é igual a 19.

Concordo que isto parece ser, a uma primeira vista, um teste para determinar se alguém ainda lê estas crónicas, ou se vão pura e simplesmente acompanhando o número em que isto vai, a fim de parecerem informados. A lógica seria a seguinte, ninguém que ache normal este título pode tê-lo efectivamente lido. A razão, todavia, é muito mais simples: eu não quis criar confusões desnecessárias, falando antecipadamente em dobradiscas.

Vem tudo isto a propósito do almoço de amanhã, sendo este amanhã um dia qualquer no passado, quando esta crónica vir a luz do dia, mas que é ainda futuro, enquanto escrevo. Para esse futuro iminente, estão prometidos à mesa 19 dois pratos da nossa preferência, dobrada com feijão branco, e pataniscas de bacalhau. O dilema não me toca pessoalmente, sendo, como sou, um dos raros comensais a não apreciar dobrada, mas prevejo severos danos mentais em muitos outros, com probabilidade de vários circuitos queimados, o que levará a copiosas encomendas de patanada e dobradiscas, num meltdown final da razão.

Ah, faz o leitor, com um sorriso pateta de semi-entendimento, isso explica aquelas palavras, pois, estou a ver, patanada, e tudo isso, não é? Só não percebi uma coisa, porque é que é igual a 19? Não percebe o leitor, nem há-de perceber mais ninguém, a menos que eu lhe explique, coisa que estou mesmo a ver que vou ter de fazer, senão ninguém vai entender patavinas disto tudo. Na verdade, tem tudo a ver com algo que foi dito hoje, sendo este hoje a véspera do tal amanhã, logo, situando-se igualmente no passado. Mas eu esclareço…

Em dada altura do almoço, as conversas que cruzavam a mesa semelhavam preocupantemente aquele caos babélico profetizado um dia pelo Zé Eduardo, observando-se locuções tipicamente assírias e fenícias a esgrimirem-se com verbalizações suspeitosamente apócrifas de hieróglifos e escrita cuneiforme. Foi nesse ponto de crise que o Carlos Santos sugeriu, num dialecto da antiga Atlântida que só eu entendi, que passássemos todos a falar por intermédio da matemática, sobretudo na altura de encomendar o almoço. A ideia agradou-me, e eu acarinhei-a, brinquei um pouco com ela, e acabei por ser detido para interrogatório, e indiciado por pedofilia – era, claramente, uma ideia muito jovem.

Mas não foi isso que me fez desistir dela, que eu, quando uma ideia me agrada, sou mais tenaz do que alguns antigos apresentadores de concursos televisivos. Creio que a matemática tem vastas aplicações à nossa mesa 19. Só para dar um exemplo, é lógico admitir que num universo infinito, como, por exemplo, este em que vivemos, exista uma quantidade infinita de brandy Croft. Qualquer quantidade finita da mesma substância, digamos três cálices, dividida pelo infinito total, resulta em zero. Logo, fica desde já demonstrado que estamos a pagar demais pelos digestivos!

Os exemplos, de resto, primam pela abundância. Sabendo que a Vânia é o centro daquele restaurante, podemos designá-la por C=(c1,c2). Tomando agora o cliente X=(x1,x2), é evidente que temos (x1-c1)2+(x2-c2)2=R2, onde R é a distância média entre a Vânia e as garrafas de cheirinhos, sendo estas tomadas, neste contexto, como a projecção ortonormada dos comensais. Tomando agora a derivada da expressão precedente, e resolvendo em ordem a X, obtém-se facilmente o preço da meia dose de dobrada, o que sobejamente evidencia a simetria do nosso modelo. Observe-se, a título de curiosidade, que poderíamos ainda multiplicar o quociente das duas equações por uma matriz quadrada, cujo determinante fosse um múltiplo primo de Pí. O sistema resultante permitiria traduzir, com bastante simplicidade, toda a ementa para um dos primeiros dialectos sumérios, embora o preço passasse a constar em algarismos romanos.

Sobra-nos então o desafio, como encomendar a nossa refeição em termos matemáticos? Os restaurantes chineses endereçam o problema de uma forma simples, numerando cada prato de forma unívoca, o que reduz qualquer refeição a uma mera soma de parcelas regulares. Trata-se, sem dúvida, de uma solução elegante, mas há que ter em conta uma diferença básica, é que todos os ingredientes usados na culinária oriental admitem primitivação parcial, conformando-se as resultantes com a álgebra booleana convencional. A aplicação de um tal sistema ao bacalhau à minhota iria obviamente igualar uma jardineira a umas favas, com grave perda de expoente para ambas.

Só vejo, com efeito, uma solução para o problema. Consiste esta no seguinte: cada conviva começa por estabelecer uma hierarquia dos pratos disponíveis, atribuindo-lhes valores tanto mais altos, quanto menos o prato lhe agradar. Assim, por exemplo, o Rui Cardoso daria zero a uma dobrada, e sete ou oito a um bacalhau com natas. Em seguida, todos comunicariam à Vânia a nota do prato pretendido. Isto feito, ela ficaria de posse de um sistema de N equações a N incógnitas, sendo N o número de elementos presentes à mesa 19. A correcta resolução do sistema, que não deveria levar mais de 45 minutos, permitiria determinar os pratos a servir, com uma margem de erro que, em princípio, não deveria exceder três ou quatro encomendas erradas.

Outra possibilidade, claro, seria cada um de nós dizer aquilo que pretende. Far-se-ia, para esse efeito, uso do nome do prato, como código distintivo. Assim, por exemplo, um de nós pediria umas “salsichas com couve lombarda”, referindo-se às salsichas com couve lombarda. O sistema é sem dúvida eficaz, pode ser dominado através de uma relativamente curta aprendizagem, e reduz as possibilidades de erro, mas, caramba, qual é a subtileza disso?

Pessoalmente, aprecio muito mais uma outra solução. Basicamente, tomam-se dois pratos relacionados, podendo-se forçar essa relação, se tal for necessário, e acha-se o limite de um deles, quando tende para o outro. O valor obtido indicará, após arredondamento à unidade, qual a mesa onde o prato deve ser servido. Fica portanto óbvio, neste momento, o nosso conceito inicial:

Patanada = Lim (Patanisca --> Dobrada) = 19
Dobradisca = Lim (Dobrada --> Patanisca) = 19, sendo este um 19 distinto do anterior, como é evidente.

Ou algo do género. O importante, aqui, é não entornar a travessa, ou chegaremos a uma indeterminação. Independentemente disso, os números imaginários dão sempre bons aperitivos, quando tomados como sub-espaços vectoriais de si próprios, e depois fritos ligeiramente, sem deixar queimar.

10.03.2006

29 – Muito barulho por nada.

Não desejo que o amável leitor, que muito estimo e prezo, se precipite a extrair alguma falsa conclusão, baseando-se no facto de, para titular esta crónica, termos ido roubar ao Bardo Imortal o seu célebre “Much ado about nothing”. Não se depreenda daí, encarecidamente vos rogo, que se pretende nesta crónica dissecar a vida e obra de William Shakespeare. Não, senhores, não é disso que se trata.

Serve esta crónica, muito simplesmente, para falar de barulho. Termo vasto, esta palavra “barulho”, étimo a requerer mais rigorosa circunscrição, definição tão precisa quanto nos seja possível alcançar. O que vem a ser, afinal, essa coisa a que se chama barulho? O barulho é evidentemente um ruído, mas não há nenhuma sinfonia de Beethoven que não seja, também, uma série de ruídos e ninguém consideraria tais obras como barulho. Por outro lado, as patinhas do pequeno rato que passa pela mesa 19 fazem algum ruído, mas é usual dizer-se, Tão silencioso como um rato, o que significa que os passos do ratinho não constituem barulho. De resto, não há ratos naquele restaurante (tenho de dizer isto – está no meu contrato). O que é, então, o barulho?

Ora bem, partindo dos dois exemplos dados, vê-se que o primeiro tipo de ruído não constitui barulho, por ser um ruído agradável, enquanto o segundo se exime da aviltante classificação, por ser um ruído de baixo volume. Um ruído até inexistente, no nosso caso, já que não existem ratos naquele restaurante (desculpem lá o mau jeito, mas tenho de mencionar isto pelo menos três vezes). Daqui se depreende, julgo eu, que o barulho é muito simplesmente um ruído alto e desagradável. Estando tal assente e compreendido, pergunta o amável leitor, com alguma pertinência, de que raio lhe serviu ter ficado a saber disto?

O que trouxe este assunto à colação foi um pequeno mas significativo episódio, ocorrido aqui há uns dias. Estando nós invulgarmente silenciosos, talvez devido à gana com que atacávamos os nossos pratos, aconteceu repararmos num grupo que, numa mesa ao fundo da sala, fazia uma chinfrineira do catorze. Os ditos boçais eram gritados, para assim se sobreporem às gargalhadas soezes e despropositadas, e a combinação de sons discordantes, amplificada pelas paredes forradas a azulejo, tudo isto resultava num pasqueiro maior do que aquele que o Vasco da Gama teve de gramar, quando resolveu surpreender os indianos, aparecendo-lhes à sorrelfa por via marítima. Conseguem imaginar a algazarra de um bazar indiano às 10 da manhã? Pois bem, isto era três vezes pior.

Naturalmente que, de uma forma digna mas firme, participámos à Vânia o nosso desagrado, ante aquela sala de refeições transfigurada em Carnaval descabido e fora de calendário. Imagine-se o pasmo que nos acometeu, ante a inusitada informação de que os participantes daquela mesa costumavam justamente queixar-se do barulho feito por nós, pela mesa 19! A explicação óbvia, a de se tratar simplesmente de um grupo de dementes, ficou algo comprometida quando, no dia seguinte, a Vânia elaborou um pouco melhor o tema, explicando que todas as mesas habituais daquela sala, todas, repito, sentiam ter razões para se queixar de nós, que pela sua óptica leprosa seríamos, é com um sorriso que o escrevo, os barulhentos. Enfin, c’est un peu trôp fort, n’est ce pás?

Distingamos, como fazia o fidalgo da torre dos Ramires: qualquer rapport concebível entre os comentários cultos, refinados, eivados de intelecto e polvilhados de filosofia quantum satis, que lançam o seu distinto perfume sobre a mesa 19, e as alarvidades que em nosso redor vão sendo bolçadas, é tão acidental como a fortuita semelhança entre uma nota modulada pelo imortal Caruso, e um hipopótamo que por acaso larga um peido. O nosso riso é a justa recompensa de subtis ditos de espírito, nas outras mesas há quem ria só para não ter de meter os dedos à garganta. Caramba, senhores, haja o sentido das proporções, com mil diabos!

De resto, nós somos superiores a esses incidentes de pequena monta, e continuamos a patrocinar irrestritamente o estabelecimento. Introduzimos recentemente uma melhoria, que consiste em cantar os nossos pedidos, em coro, segundo as linhas melódicas da melhor música clássica. Digam-me lá, a sério, em que outro sítio se pode ouvir toda uma mesa entoar, “Traz o vinho! Traz o vinho! Traz o vinho”, num retumbante crescendo wagneriano? A Vânia, aliás, parece apreciar muitíssimo esta nossa inovação. A prova disso é que, mal começamos a cantar, ela corre a satisfazer o nosso pedido, fazendo sinais de que já ouviu. É sempre bom contribuir para alegrar o dia de alguém.

Falta apenas dizer, para quem não tenha percebido ainda, que não há ratos naquele restaurante (vou passar a ler melhor os meus contratos, palavra de honra que vou). Repito, nem um rato! Fugiram todos! Parece que gostavam bastante do sítio, mas não se davam bem com o barulho…