5.31.2006

10 – Os sonâmbulos.

Esta noite, caí da cama…

Pior, não foi sequer isto o que aconteceu. Cair da cama é algo que me tem já acontecido, embora com uma raridade que reputo extremamente feliz. Cair da cama é um acidente, mas atirar-me da cama abaixo é um acto de estupidez, ou não será? A verdade é que não é, trata-se apenas de um episódio de sonambulismo. Eu passo a explicar...

A palavra sonambulismo, que à letra quer dizer, locomoção durante o sono, designa genericamente os fenómenos em que o conteúdo do sonho se reflecte em acções no mundo real, como caminhar a dormir, ou falar em voz alta. Foi o que se deu comigo, sonhei que tentava escapar de um casa em chamas, para qual intento se impunha que saltasse através de uma janela baixa. Eu assim fiz, acordando quase no mesmo instante. Tive então, por uma breve fracção de segundo, um aflitivo momento em que experimentei a angústia do ser, enquanto dúvidas epistemológicas revoluteavam pelo meu espírito como andorinhas numa tarde de Verão, O que estou eu a conseguir da vida? Estarei a cumprir as minhas metas? E, acima de tudo, o que faço eu aqui, em plena queda livre?

A última pergunta perdeu a sua razão de ser, no momento em que colidi dolorosamente com a realidade. A realidade, nesta instância, tomou a forma material de uma grande porção de soalho, onde me deixei ficar estendido, meditando sobre a insensatez do ser humano, e sobre as razões de eu ser humano. Quando o fascínio deste exercício mental cedeu terreno ao desconforto da minha posição, levantei-me e fui para a cama, de onde tive o cuidado de não me voltar a atirar.

Pergunta-me agora o pouco paciente leitor, a que se deve a inclusão de tal episódio nestas crónicas, isto admitindo, como deverá ser admitido, que não foi da mesa 19 que eu caí, e nem sequer apareci a dormir no restaurante. Isso é sem dúvida verdade, e uma verdade muito bem vinda, uma vez que o meu hábito de dormir nu não deixaria de colidir com a moral severa e os austeros princípios desse excelente estabelecimento, com a estrita correcção dos dignos proprietários, e com o sentido estético dos restantes frequentadores. Isto esclarecido, devo dizer que veio a pelo relatar o nocturno episódio por uma simples razão, que foi ter o mesmo servido de ponto de partida para a conversa que dominou, no almoço de hoje, grande parte do período pós-prandial do repasto, também conhecido como a hora dos digestivos.

A narração dos meus apuros e vicissitudes foi acolhida com uma talvez imerecida ovação e aplauso, depois do que se contaram histórias subordinadas ao mesmo mote, o sonambulismo do Paulo e o de outros, que casos esporádicos também contam, a angústia de quem se perde num quarto escuro porque não se lembra de como lá chegou, ou o embaraço de acordar para encontrar a empregada, enquanto passeamos nus pela casa (esperem aí, esse também fui eu). Os casos iam-se cruzando, enquanto se perdia o fio à meada, quem foi mesmo que deu uma tareia à mulher, enquanto sonhava que combatia assaltantes? Foi nesse ponto que a verdade chocou estrepitosamente contra o mal aparelhado brigue das minhas ideias pré-concebidas: nós somos todos sonâmbulos, e não sabemos disso!

A coisa parecia bem achada, cristalina, até, mas a ambição de a arvorar em tese pedia mais fundamentada demonstração. Tal não era contudo difícil, tudo o que nós, os da mesa 19, fazemos o dia inteiro, é agir de acordo com a percepção da realidade que o nosso espírito nos fornece, e que nós quotidianamente tomamos pela própria realidade. Sobram todavia provas de que não é esse o caso, basta acordar um bocadinho, e olhar para os factos.

Ironicamente, o mais desperto de entre nós deveria ser, por direito de nascimento, o que era na realidade o principal sonâmbulo, o Paulo. Oriundo como era de Bostis Merdix, tinha a obrigação de compreender o que era a realidade, mas nunca ninguém foi capaz de determinar, infelizmente, se ele compreendia realmente alguma coisa, para além do acto boçal de introduzir comida na boca, e mastigá-la sem se babar, proeza que lhe custava um enorme esforço. Os restantes viviam um fenómeno que o Carlos chegou a descrever à mesa, sonhavam que tinham estado a sonhar, e que estavam agora acordados. Ora, não existe logro mais insidioso do que esse.

A estratégia é simples, tudo começa quando alguém decide criar macacos numa ampla jaula, pretendendo contudo que os símios se sintam livres. Encerra-os então numa pequena gaiola, a um canto da jaula, tendo o cuidado de munir a gaiola de uma fechadura fácil de abrir. Eventualmente, um macaco acabará por sair da gaiola, trazendo outros no seu rasto, e os macacos libertos passarão a habitar a larga jaula. Por terem escapado a uma prisão, serão incapazes de perceber que estão confinados a outra. Os macacos menos contestatários, pelo seu lado, continuarão a habitar a pequena gaiola. Chama-se a isto, em linguagem corporativa, o melhor de dois mundos.

E é assim que a mesa 19, como todos os que a rodeiam, lá vai realizando diariamente as suas sonâmbulas evoluções, representando no dia-a-dia o sonho que crê real. Mas a resistência alastra, mais pessoas são desligadas da matriz a cada dia que passa. E eu tenho esperanças de que um dia, não muito longínquo, um desconhecido se sente inesperadamente num lugar vago da mesa 19, e diga, apontando para um de nós, Foste designado para ser terminado. A história mostra que serás tu quem, um dia, vencerá a guerra contra o império corporativo. Os gestores do futuro enviaram um exterminador para te eliminar, e a minha missão é proteger-te.

Quem será o escolhido, a quem tais palavras serão ditas? A clarividência abandona-me, neste aspecto particular, e sei apenas que temos de estar preparados, e lutar para quebrar o sonambulismo em que nos movemos. Eu, pessoalmente, tenciono cair novamente da cama, esta noite.

5.25.2006

9 – ET, o extraterrestre.

Numa noite tépida de Verão, sem nuvens à vista, quando a Lua vai nova, experimentem deitar-se na relva e contemplar o céu, salpicado de estrelas que se estendem de horizonte a horizonte. Sem grandes pressas, deixando vaguear preguiçosamente o olhar, procurem a constelação que responde pelo nome de Cruzeiro do Sul. Poderá ser justamente aquela? Não, aquilo é mais um quadrilátero, e trata-se da Ursa Menor. Também não é essa, que poeticamente se chama Centauro. Busquem mais além, não desistam. Já a encontraram? É claro que não, vocês estão no hemisfério Norte, e a cruzeiro só é visível a partir do outro hemisfério, seus tansos. Cruzeiro do Sul, não é? Dãã?

Enfim, isto é apenas um exemplo simples, mas que mostra bem como a astronomia pode ser um passatempo apaixonante. Vamos agora dirigir a nossa atenção para um grupo menos conhecido de estrelas, a constelação do Macaco com Hemorróidas. É um agrupamento fácil de reconhecer pelas oito estrelas do topo, que replicam fielmente a efige do actual presidente dos EUA. Alguns astrónomos defendem, na realidade, que as poucas diferenças observáveis se devem a um erro do presidente Bush. Descendo ao longo do corpo do macaco, podemos observar uma estrela de magnitude oito, precisamente no ponto em que o figurativo primata se prepara para enfiar um dedo pouco limpo pelo rabo acima. É do sétimo planeta dessa estrela, que os astrónomos nomearam, pela sua localização, Bostis Merdix, que eu suspeito que o Paulo veio.

A vida não é nada fácil em Bostis Merdix 7. O simples facto de estarem situados na região anal de um gigantesco macaco galáctico não é coisa que estimule o amor-próprio dos habitantes, e a própria realidade do planeta pouco faz para melhorar esse estado de coisas. Até a língua conspira contra eles, ser terra-a-terra, ali, é ser merda-a-merda, e se alguém se assusta não fica aterrado, mas emerdado. Isto é, na merda. Em Bostis Merdix 7, terraplanar é esmerdalhar, e um terraço, naquelas bandas, não passa de um merdaço. Os cientistas de Bostis Merdix decidiram que o mal estava no planeta de bosta que lhes tinha calhado na rifa, pelo que era imperativo iniciar a colonização da galáxia.

Seleccionaram para esse efeito um longínquo planeta que, por uma cagada dos deuses do azar, acabou por ser justamente o nosso, e prepararam um foguete destinado a cá chegar. Nele depositara um bebé, a quem deram um nome baseado nas duas palavras mais pronunciadas na região de destino, Paulo e Merda. Já na fase do lançamento, contudo, um cientista entrou a gritar, É Sousa, malta, afinal é Sousa. Num ápice, os restantes corrigiram apressadamente o nome para Paulo Sousa, e o foguete partiu. Só posteriormente o mal-entendido foi desfeito, o Sousa era em vez do Paulo, e Merda continuava a ser o nome mais frequente no pequeno país a que a nave se destinava. Mas era tarde demais para corrigir o engano.

Acabou por correr tudo pelo melhor, o ser cósmico veio a integrar-se numa empresa muito parecida com o seu mundo original, ao ponto em que ninguém diria que ele era oriundo de Bostis Merdix 7. Ou então, para dizer melhor, ninguém diria que a firma não era nativa do planeta dele, tal era a bosta do seu funcionamento. A coisa só se notava durante os almoços, em que ele se mostrava mais feroz do que a maioria dos comensais, e por vezes desabridamente rude nos seus equívocos comentários, chegando a ser agressivo como a merda.

Ah, sim, e fazia mais bosta, também, mas a malta continuava a gostar dele.

8 – A coisa alastra-se.

Já lá disse Robert Heinlein, a chatice de ter uma gata é que ela está sempre a ter gatinhos. Ou então, vejamos o problema do ponto de vista dos ingleses, que defendem que nenhuma boa acção escapa sem castigo, verdade que me atingiu em cheio quando descobri que a publicação deste blog, a minha discutível boa acção, começava a convocar reacções externas, de maior ou menor poder de ameaça. Não apontarei aqui casos individuais, de forma a proteger, não os inocentes, mas a minha pobre cabeça, que gostaria de levar intacta para o túmulo. Direi no entanto que, de um modo geral, se começava a alastrar nos meios limítrofes ao nosso grupo a ideia de que a mesa 19 se compunha de um bando gargantuesco, pantagruélico, que gastava uma imensidão de horas em bacanais rabelaisianos de comezaina e vinhaça. À orgíaca degradação escaparia apenas um personagem, este vosso humilde cronista. Ora bem, há que dizer com toda a frontalidade que nada disso era assim, nem os outros bebiam tanto, nem eu tão pouco, e, se tal coisa parece depreender-se é justamente por ser eu o cronista, pelo que tenho sempre o cuidado de me pôr à margem dos exageros que vou inventando nos outros. São figuras de estilo com que se vai salpicando de alguma cor esta série de contos, e não oferecem perigo, quando lidos por quem conhece a real realidade, se é que esta frase se pode dizer assim. Depois, quando menos nos precatamos, vem alguém de fora, lê a direito o que era para ler na diagonal, e está armado o burburinho. Fique portanto descansada a população, que a mesa 19 é apenas um sítio onde pacatamente se almoça, onde alguns bebem mais que outros, mas sempre dentro do que manda a razão, e onde também estou eu para cometer os excessos, dizer os disparates, e ir convocando os jarros de bebida com que as nossas musas habitualmente nos brindam. E tenho dito.

Vem esta nota marginal a propósito da seguinte constatação, a crónicas saíram já da mesa 19, e esvoaçam soltas pelo mundo. Aquilo que começou por ser um diário íntimo da vida mundana de uns quantos rapazes (nota mental: nunca usar “íntimo” e “rapazes” numa mesma frase), acabou por se tornar numa crónica social, com interesse genérico, e significados por trás dos significantes, ou seja, tornou-se numa coisa chata. Por outras palavras, cresceu. As coisas ficam normalmente chatas quando crescem, menos os bolos, que têm antes tendência para arredondar. E depois, isto dos crescimentos costuma ser uma coisa que se pega, escrevemos uma crónica que vai adquirindo maturidade e, mal nos precatamos, damos connosco a crescer também, e vamos deixando de saber o que é feito daquele espírito juvenil e galhofeiro com que embarcámos na aventura. Até os leitores, mesmo os que, por felicidade, são providos de uma alma infantil, se vêem arrastados para longe dessa doce enseada, e empurrados na direcção dos fundos negros e insondáveis da adultice, essa doença alarve e estupidificante que sempre espreita no descuidado futuro de cada um de nós. Como prova de que não exagero, veja-se a Vânia, que ainda hoje comprimiu severamente o habitual sorriso menineiro, para me repreender, em tom sério e inflexível, pelos vitupérios com que salpiquei de opróbrio esse ícone do amor ideal, o seu namorado.

Por muito que eu tal coisa lamentasse, a verdade é que me vi forçado a assumir também um tom adulto, quando lhe expliquei que a crónica seis mais não é do que um pedido de desculpas pela famigerada crónica cinco, não constituindo a metáfora medieval qualquer ofensa, pese embora o uso de termos mais ou menos discutíveis. Ela não aceita tal coisa, no que me parece revelar um lamentável eclipse das suas notáveis capacidades psicológicas. Eu esperaria que isto fosse óbvio para qualquer psicólogo, uma referência a Miguel de Cervantes, feita por um psicopata, não pode ser senão elogiativa. Com mil diabos, Dom Quixote de la Mancha é o nosso ídolo, não há doido que se não reveja nele. Eu achei sinceramente que a minha criação, Dom Emplastro de la Mancha nas Calças, não era menos do que uma simpática homenagem ao jovem. Estava enganado, o que lamento, e nem a sétima crónica logrou pôr água na fervura. Fica portanto aqui esta, a última coisa com sentido que me permito escrever neste espaço, a declarar peremptoriamente que, no mundo real, nem os locatários da mesa 19 são uns bêbados, nem o emplastro é emplastro, mas apenas Gonçalo, um tipo porreiro que um dia fará a Vânia feliz (convinha talvez que aprendesse a descontrair-se um pouco, mas isso virá com o tempo). Isto declarado, peço encarecidamente a todos que não me voltem a obrigar a falar a sério, que não é para isso que este blog existe.

Muito obrigado.

P.S. Descobri hoje que o Paulo é um extraterrestre. Mais informações na próxima crónica.

5.19.2006

7 – Pontos nos Is.

Há muitos, muitos anos atrás, nasceram na longínqua cidade de Leitzpifpofpum dois irmãos gémeos, iguais como duas gotas de água, ou, pelo menos, como duas gotas de água que fossem iguais uma à outra, o que nem sempre acontece. Quando, porém, atingiram a idade da razão, revelaram possuir temperamentos bem diversos. João era um rapaz alegre e afável, sempre disposto a ver tudo o que lhe acontecia pelo lado melhor, e dando sempre o benefício da dúvida a toda a gente, enquanto José era amargo e desconfiado, tenebrosamente pessimista, sempre de pé atrás, suspeitando as mais sinistras intenções em cada sorriso que lhe dirigissem. Quando o avô, no seu leito de morte, lhes legou o habitual tesouro, na trivial condição de o descobrirem, ambos se lançaram na costumeira demanda. José, sempre antipático para todos, não encontrou quem o ajudasse, e acabou por regressar de mãos vazias, pobre e esfarrapado. João, o irmão simpático, contou com a ajuda de toda a população, e veio mesmo a descobrir o tesouro. Infelizmente, quando regressava em busca dos meios com que o transportar, foi vítima de uma séria infecção urinária, da qual por fim faleceu. A moral desta história parece-me sobejamente evidente.

Vem tudo isto a propósito das duas últimas crónicas, em que me tocou fazer o papel de irmão mau, ao denegrir a imagem do Gonçalo. A Vânia não gostou, o que prova apenas que é uma boa namorada. Alguns dos outros intervenientes puseram também ressalvas, mas, nesse caso, a doutrina divide-se. O argumento avançado é que o rapaz não pertence ao universo da mesa 19, não tendo portanto cabimento nestas crónicas. O facto, no entanto, é que esse universo não se esgota nos comensais que se sentam em volta da mesa, ou nem a própria Vânia teria aqui lugar. Estas crónicas tratam da mesa 19 como um todo, e discutem seja o que for que se relacione com a vida dessa egrégia colectividade. O emplastro, nome afectuoso que nós lhe dávamos, tinha aqui o seu papel, basta ver as vezes em que tive de esperar pelo meu brandy, para não lhes interromper o namoro (note-se que as palavras “esperar” e “brandy” não deveriam jamais ser encontradas na mesma frase). Só por isso, ele tem cabimento aqui, honra de que pouca gente se pode gabar. Se o humor cáustico que é um apanágio destes textos o leva a ofender-se, e não se sente disposto a levar a coisa à conta de uma brincadeira, pois que disso se trata, tem sempre o bom remédio de não nos ler. No caso inverso, é com prazer que o acolhemos na fraternidade.

Outro aspecto que poderá, quiçá, merecer reparos, é a observação que de passagem deixei na última crónica, quando afirmei que estamos todos apaixonados pela Vânia, bem como pela Marta, embora com algumas flutuações. Disse-o espontaneamente, e fi-lo por ser verdade, mas vejo agora que se trata do género de observação capaz de lançar a minha pobre carcaça nas mãos da Polícia Judiciária, por suspeita de pedofilia. Que diabo, sempre era verdade que não passávamos de um bando de cotas, todos com idade bastante para sermos pais das moças, que história vinha agora a ser essa, de estarmos apaixonados? Mesmo o adjectivo “platónico” parecia, naquele contexto, uma desculpa de última hora, pretexto improvisado para fugir aos calabouços da prisão preventiva.

Pois bem, eu explico, não era nada disso. A verdade é esta, nós estamos apaixonados pelas duas raparigas, tal como estamos apaixonados pela vida, e pelas mesmas razões: elas são vida, o género de vida que brilha, ilumina e aquece, que ri e compreende e esquece, e é de facto um grande prazer privar com elas. Caso, por alguma razão que eu pessoalmente desconheço, não seja já permitido descrever tal prazer como sendo uma paixão, mesmo que seja paixão platónica, eu peço então desculpa, retiro as crónicas ofensivas, calo-me para sempre, pedindo apenas que parem o mundo, porque eu quero descer. Não sei para onde irei em seguida, mas sei que me recuso a ficar num sítio onde a minha língua só será aceite, se for primeiro castrada.

É um assunto do qual vou estando farto, essa mania do Politicamente Correcto, que de há uns anos a esta parte vem infestando o mundo, e que é ela própria uma das maiores incorrecções de sempre. É graças a essa tese que eu não posso chamar preto a um preto, embora ele me chame branco a mim, e que ao mesmo tempo assume que eu não posso falar de paixão entre mim e a rapariga do restaurante, ou entre mim e qualquer pessoa minha amiga, sem presumir de imediato que eu a quero levar para um qualquer motel, e fazer com ela o que Adão fazia com Eva, enquanto Deus vigiava as maçãs. Ou seja, o preto não é preto, porque isso poderia ofendê-lo, mas eu sou um tarado perverso, um bode velho e devasso, daqueles que só pensam nas mulheres para um fim, e ai de mim que tenha a veleidade de me ofender com tal coisa. Percebo a componente política, mas o que há de correcto nisto?

Mais uma vez, creio que a moral da história é evidente.

5.18.2006

6 – Crónica da Idade Média.

Pensando bem nas coisas, estou convencido de que talvez tenha sido um pouco duro demais com o Gonçalo (que nome, santo Deus), na minha última crónica. A culpa não é do rapaz, mas toda nossa, por via de um facto que com tristeza aqui deixo exarado: nós tínhamos ciúmes dele! Isto é a pura verdade, e o mundo não conhece emoção mais devastadora do que o ciúme. Com toda a razão o bardo imortal admoestava o mouro de Veneza, nas sábias palavras de Iago: “guardai-vos, senhor, do ciúme, de que se nutre o monstro de olhos verdes”. É certo que, no fim do livro, se acaba por descobrir que o Iago é que era o filho da mãe, e bem lixou Otelo, mas isso não vem agora ao caso. A realidade é que todos nós estávamos apaixonados pela Vânia (e pela Marta, também, mas no caso dela estavam mais uns do que outros), e um amor platónico sofre tanto de ciúmes como outro amor qualquer. O nosso profundo desejo de a levarmos para uma ilha tropical, onde gastaríamos as tardes a beber caipirinhas geladas (que ela faria o favor de ir trazendo), era incompatível com aqueles braços que possessivamente a rodeavam, com aquele olhar que se assenhorava dela, e lentamente a ruminava. Mas era uma falha da nossa parte, nós não tínhamos o direito de o criticar.

Para não correr o risco de reincidir no mesmo pecadilho, vou hoje fazer uma crónica diferente. Abandonando, por uma vez sem exemplo, o registo histórico e preciso de verídicos sucessos, peço que me consintam a licença de perambular pelas veredas nevoentas da lenda e da fantasia, fontes de onde naturalmente brotam tantas sagas que, apesar dos seus contornos fantásticos, não deixam de encerrar em si alguma avisada moral. Com a vossa permissão, vou dizer-vos a história do cavaleiro da triste figura.

Explica-nos a lenda que, no tempo em que os animais falavam, e toda a gente era homossexual, desde os cowboys até ao primeiro-ministro, vagueava pelas charnecas ibéricas um cavaleiro, que tomara para si próprio um nome sonante, Dom Emplastro de la Mancha nas Calças. Acompanhado pelo seu fiel capachinho, que cavalgava um jumento, buscava levar o seu braço justiceiro a toda a parte onde houvesse fracos e oprimidos, desde que os fracos e oprimidos fossem miúdas novas, e de preferência giras. Animava-o, além disso, uma séria e nobre missão, que era o seu Graal e último objectivo. Com efeito, jurara sobre a espada nua, na fria madrugada de uma capela onde por toda a noite velara armas, que devotaria sangue e vida a resgatar a sua princesa, Dulcineia Sofia Pinto, que vivia escravizada numa masmorra, à mercê dos famigerados dragões da mesa 19, que por todas aquelas terras medievais infundiam terror, com as suas bocas que soltavam enormes jactos de bacoradas. O capachinho, pelo seu lado, não jurara coisa nenhuma, e desejava apenas que o seu dono perdesse o hábito de o pintar com cores foleiras.

Os dragões, porém, eram sempre muitos, e extremamente perversos, pelo que era necessário usar de manha. Uma das estratégias favoritas do cavaleiro permitia-lhe cegá-los e enojá-los ao mesmo tempo, o que conseguia exibindo-lhes de longe o seu capachinho, até que este se aborreceu, e começou a mostrar relutância em participar nestas manobras. Optou então por lhes envenenar a comida, fazendo-lhes servir, por exemplo, um caril de galinha, enriquecido com aquilo que as galinhas põem quando não estão a pôr ovos, mas os dragões tinham estômagos de ferro, e resistiram também a essa prova. Dom Emplastro desesperava…

Concebeu por fim o plano perfeito. Desta vez é que era, não ia haver falhas. Usaria o próprio segredo da mesa 19 para os exterminar, de uma vez e por todas. Secundado pelo fiel capachinho, avançou com determinação, e foi realmente uma pena que um camião do lixo, que recuava na sua direcção, o deixasse completamente esborrachado. Quando finalmente acabaram de raspar os restos dele do pneu de trás do veículo, encontraram vestígios de uma pequena quantidade de substância cinzenta que seria o seu cérebro, ou aquilo que no seu caso passava por ter esse nome.

Não se pense, todavia, que o nosso herói morreu totalmente, porque os cavaleiros de antanho não morrem nunca. No exacto momento em que a alma o abandonou, exalando um derradeiro beijo na direcção da dedicada Dulcineia, surgiu no firmamento setentrional uma nova constelação, a constelação do Emplastro. A novel plêiade continua a brilhar nos nossos céus, onde a podemos observar, numa noite de céu claro, abaixo da constelação do Dragão. Mesmo logo abaixo, com efeito. Bem, para dizer a verdade, parecem estar as duas empenhadas numa relação de carinho mútuo, com a constelação do Dragão a explicar à outra como se fazem meninos. Mas que a constelação do Emplastro está lá, lá isso está.

5.17.2006

5 – O segredo da mesa 19.

Hoje foi um dia especial na mesa 19: o Paulo veio fazer-nos uma visita. Estão certamente recordados do Paulo, que eu mencionei logo no primeiro capítulo destas crónicas, um que foi de lá e depois deixou de ser, são partidas que a vida nos vai pregando. O Paulo esteve presente na fundação da mesa 19, viveu grande parte dos divertidos anos que aqui têm vindo a ser descritos, e partiu há uns meses para outros almoços, atitude muito natural da parte dele. Hoje resolveu dar-nos o prazer da sua companhia, o que muito lhe agradecemos, e mostrar que não esquecera os velhos tempos. Só para que não restassem dúvidas a esse respeito, começou por pedir, mal se sentou, o livro de reclamações. Sempre em forma, o velho Paulo.

Estava também lá o Carlos Lopes, conjugação de circunstantes que nos levou a abdicar da fiel 19, pelo menos no sentido físico, uma vez que éramos sete, número que, conforme se explicou já, excedia as capacidades da nossa boa mesa; fomos assim relegados para o fundo da sala. Nada disso tinha a menor importância, pois continuávamos a ser a mesa 19, pelo menos em espírito. O Paulo, apenas para não perder a prática, lançou para a mesa uns quantos insultos que, confesso, me pareceram soezes, e que teriam seriamente ofendido a minha dignidade, caso eu possuísse qualquer coisa nesse género. Eu respondi-lhe à letra, e isso levantou naturalmente a questão, que marreta era ele? Após alguma discussão, ficou decidido que se tratava do Animal, o baterista meio selvagem, cuja grandeza do ritmo só encontra rival na pequenez do intelecto. Aproveitou-se o embalo para atribuir ao Carlos Lopes o papel de Ralph, o cão pianista, personagem que quadra admiravelmente com a boa índole e trato cordato do nosso amigo. A mim, em contrapartida, insistem em não me deixar ser o Gonzo, o que me parece injusto.

O Paulo, não sei se vocês sabem, é um rapaz de trato chão e rude, o género do sal da terra, a perfeita combinação de um cavalheiro de província com o incrível Hulk, vestido com uma camisa Pierre Cardin. Capaz de actos de uma delicadeza que ninguém saberia adivinhar sob a insociável crosta, tal como, por exemplo, passar espontaneamente o vinho a alguém, depois de lhe terem gritado que o fizesse, pode igualmente sair-se com gestos de uma rudeza escarpadamente gótica, como fez quando de chofre perguntou à Vânia se ainda tinha o mesmo namorado. Mas a curiosidade venceu o meu repúdio, e acabei por me comover ao ouvi-la declarar que a tal relação estava em vias de completar um ano e dez meses. Um ano e dez meses, caramba, para onde vai o tempo? Um ano e dez meses, isso é quase, sei lá, as bodas de papel de alumínio. Quantos casais maduros andam por aí, que não estão sequer divorciados há tanto tempo como o que estes levam de estar juntos. Até faz ternura, caramba.

Isto levanta, como é natural, uma relevante questão, por que razão não falei eu ainda sobre o namorado da Vânia? Bem, a razão é simples, é que, por todo este tempo, eu não acreditei realmente que ele existisse. Quero dizer, é claro que ele estava sempre lá, que agarrava a Vânia e a beijava, mas não era por isso que tinha de existir. Também há o elefante cor-de-rosa que está sempre lá quando saímos, e estou certo de que ele não existe. Bem, quase certo. O chamado namorado da Vânia era para mim uma coisa vaga, uma fantasia juvenil da miúda, que por um acaso era corpórea, até que ela nos confiou que estavam prestes a comemorar as bodas de lata de sardinhas, e que ele se chamava Gonçalo. Isto atingiu-me como um raio, nenhuma jovem que se prezasse iria chamar Gonçalo à sua fantasia juvenil. Nenhuma jovem que se prezasse, de resto, chamaria Gonçalo fosse ao que fosse, excepto, possivelmente, a uma nova doença sexualmente transmissível. O assunto não admitia discussão, o Gonçalo existia mesmo, e era talvez aquele cidadão, de cabelo original, que por vezes estorvava, com a sua presença, a costumeira lepidez do serviço prestado à mesa 19.

Ficava apenas por resolver a questão, de que forma era possível que um rapaz que – sem o desmerecer, nem lhe tirar qualidades – apresentava uma assustadora semelhança com certos bolores que vulgarmente se associam à penicilina, tivesse conseguido namorar a nossa etérea Vânia? Eu julgo saber a resposta, ele é um extraterrestre disfarçado. Hipnotizou a Vânia com poderosos raios mentais, e tenta usá-la para, por seu intermédio, descobrir o segredo da mesa 19. A verdade é que perde o seu tempo, e está a ir por mau caminho. O segredo, é tempo de o dizer com muita clareza, apenas se revelará a quem dedique toda a sua atenção aos… que diabo, vocês já viram que horas são? Já estou atrasado, tenho de me pôr a andar. Até amanhã.

5.15.2006

4 – Sim, mas a gestão corporativa será melhor?

Estas modestas crónicas, pobres como são, têm pelo menos a virtude de exsudar em cada palavra o aroma inconfundível da verdade. Trata-se de um estado de coisas desejável, e é na intenção de o manter que o pobre cronista se vê forçado a lançar um vigoroso desmentido, antes que as coisas se confundam. É com efeito concebível que algum leitor mais incauto, desses que lêem as linhas e desprezam as entrelinhas, tenha formulado o seguinte conceito, a Vânia era perfeita. Ora bem, pesem embora os meus sentimentos pessoais, vejo-me forçado a repor a verdade dos factos, e dizer sobriamente que não, a Vânia não é perfeita. Tem sobretudo um hábito detestável, que é o de inspeccionar todas as mesas, mas principalmente a mesa 19, em busca de artigos consumidos mas não declarados. Na nossa mesa, sobretudo, ela vai ao ponto de sondar a firmeza das tampas dos pacotinhos de manteiga e patê, para ver se não estão vazios, como se nós fossemos alguma vez capazes de a enganar desse reles modo. O facto de a termos por diversas vezes enganado, precisamente desse modo, é um detalhe inteiramente irrelevante, e só é mencionado neste texto para mostrar até onde pode ir a desconfiança humana.

Não nos limitávamos a enganá-la, de resto, pois iam já longe os dias da tampa ingenuamente colada com restos de queijo fundido, a restituir à embalagem vazia um aspecto virginalmente intacto. Nessas não caía ela já, e era por isso que espetava o dedo inquisitivo nas películas da cobertura, a ver se cediam. Tivemos então de inventar novas farsas, e um de nós – não fica bem estar aqui a dizer que foi o Rui, mas foi – tomou mesmo a liberdade de suprimir um pratinho do couvert, completo com pastas de barrar, pires e tudo, e reza a lenda local que ainda hoje o conserva em lugar de destaque, no museu de façanhas idas que mantém em casa. A manteiga está provavelmente rançosa, e o queijo emboloreceu, mas não deixa de ser um orgulhoso troféu. Diz-se por aí, em temerosos murmúrios, que lhe mandou mesmo encastoar uma placa em cobre martelado, onde se pode ler, em tipo arcaico, a data verídica da heróica façanha, bem como este singelo lema, Trouxe-o, e não o paguei. Coisas da infância da mesa 19, que, como todos nós, teve direito à descuidada meninice dos verdes anos, antes de amadurecer e constatar, com súbito choque, o molho de brócolos em que a vida a metera. Foi também desse tempo uma outra rábula, a das caixas coladas ao prato.

Foi uma ideia que evoluiu a partir de um facto simples, alguém se lembrou de passar a virar ao contrário as pequenas caixinhas, tanto as cheias como as vazias, e a moda pegou. É claro que a nossa Vânia, imperturbável, pegava em cada caixinha e tornava a virá-la, para a costumeira inspecção. Mas um dia trocámos-lhe as voltas e, quando ela pegou na primeira caixa, todo o conjunto de pires e caixinhas, unido por uns pingos de cola de secagem rápida, veio atrás da caixa seleccionada. Um a zero para a equipa visitante, mas o jogo ainda ia no início. Daí para a frente, o controlo tornou-se muito mais rigoroso, e nós éramos sempre apanhados.

Pois bem, pode perfeitamente imaginar-se como era detestável para nós esse controlo, considerando sobretudo que era um controlo selectivo, que visava especialmente a nossa mesa. Quem não se enfureceria, ante uma tal inspecção sistemática? Eu digo-vos quem, nós não nos enfurecíamos, e o controlo que a Vânia fazia era pura e simplesmente delicioso, e não desejaríamos jamais que acabasse. Não quero com isto dizer que fôssemos um bando de masoquistas com carências, coisa que não poderia estar mais longe da verdade. O único desvio comportamental que alguma vez tive ocasião de apreciar, na mesa 19, teve a ver com dois ou três indivíduos, que me pareceram gostar de sexo. Nada disto tinha a ver com o controlo da Vânia, que evocava de maneira admirável um merceeiro dos antigos, sempre atento ao seu pacote de rebuçados. Cada sondagem de um pacote de manteiga era mais um passo rumo ao passado perdido, passado que sobrevive hoje uma vida alegórica nestas casas, e vai fingindo que vive ainda nas chamadas casas de fado, centros comerciais pretendendo não o ser, sempre a enterrar o enfermo que simulam salvar. O facto é que, extintas as tabernas e vendida a alma do fado, é só em certos restaurantes que subsiste ainda uma qualidade de vida que por toda a parte agoniza, e o nosso restaurante é disso paradigma. A maior parte das pessoas não se apercebe desta perda, e vai assim contribuindo para ela. Enfim, sunt lacrimae rerum.

Vem isto tudo a propósito do seguinte, a gestão corporativa não inspecciona embalagens usadas nas mesas, e isso por duas razões, sendo a primeira o facto de não dispor geralmente de uma Vânia para esse efeito. A segunda razão é ainda mais problemática, a gestão corporativa não tem, simplesmente, qualquer forma de impedir que algo seja ou não feito, ou de forçar a feitura, ou a não feitura, seja do que for. O primeiro passo, na implementação de qualquer processo num modelo corporativo, é a criação de uma estrutura rígida, a encapsular o projecto. Essa estrutura, que terá por missão desenhar, conduzir as actividades de implementação, e por fim manter em funcionamento o processo, é naturalmente constituída por seres humanos, e é neste ponto que todo o edifício cai por terra. As corporações são constituídas por pessoas, mas jamais serão capazes de entender as pessoas.

A razão por que isto se dá é verdadeiramente simples, e está ao alcance de qualquer pessoa que se dê ao trabalho de olhar com um pouco de atenção: as corporações encorajam, na sua cultura de empresa., um processo mental que o escritor George Orwell denominou, na sua histórica novela 1984, double-thinking. A expressão, segundo o autor, designa a habilidade cultivada de pensar numa mesma coisa a dois níveis, contraditórios entre si, e mutuamente exclusivos, sem detectar conscientemente a menor discrepância. Esta técnica permite ao moderno gestor considerar uma pessoa como uma mera unidade produtiva, redundante e, possivelmente, auferindo um vencimento excessivo, quando se trata de avaliar o seu mérito, enquanto lhe possibilita exigir à dita unidade produtiva a iniciativa, capacidade de inovação e esprit-de-corps de um técnico altamente qualificado, com uma brilhante carreira no seu futuro. Ao empregado em causa, que naturalmente se não revê em qualquer das imagens dadas, acaba por suceder aquilo que se deu com o cavalo de Sir Lancelot, quando o nobre cavaleiro conheceu o perigo em que se encontrava a rainha, e, segundo rezam as crónicas, “montou o seu fiel ginete, e galopou furiosamente em todas as direcções”. Está mais que visto que a pobre alimária se estatelou, ainda antes de sair do ponto de partida.

Se o nosso restaurante fosse entregue aos cuidados de um desses modernos gestores, é mais que certo que a obstinada mente empresarial começaria por classificar a Vânia, a Marta e a Lana como empregadas de mesa, peça simples e barata da engrenagem restaurativa, ao mesmo tempo em que, sem embargo da opinião anterior, as veria como algo abstruso e complicado, tipo, Paradigmas do interface do cliente com a empresa, posição que naturalmente multiplicaria as responsabilidades do seu cargo. Isto levá-las-ia a serem tratadas, de um modo geral, sem a menor consideração, dado o seu baixo estatuto, ao mesmo tempo em que seriam penalizadas por não estarem à altura do seu elevado estatuto. Não levaria muito tempo até que elas baixassem os braços, desistissem de competir nesse jogo esquizofrénico, e se limitassem a transportar uma outra bandeja, atendendo tarde os clientes, e de má vontade. Nunca mais um pacote de manteiga voltaria a ser conferido.

Nada disto se dava aqui, seja Deus no céu louvado. O restaurante era uma pequena empresa à moda antiga, onde quem servia era invariavelmente parente ou amigo da casa, e trabalhava com o entusiasmo e a dedicação de quem veste uma camisola. Não há camisolas para vestir no mundo corporativo, reino onde o próprio monarca vai sempre nu, mas aqui havia, e dava gosto ver o orgulho com que eram envergadas. Era por isso que a Vânia corria quando lhe pedíamos algo, e era por isso que se esmerava a desempenhar o seu papel, quando inspeccionava os pacotinhos das entradas.

Era também por isso que nós lá voltávamos, dia após dia, quase todos os dias, para encontrar um mundo mais saudável do que aquele que cada vez mais nos rodeava, embora nem sempre nos déssemos conta do que realmente buscávamos. E também nesse dia, que era como uma curta sinopse de todos os outros dias, observamos com agrado a Vânia, que com denodo cumpria o ritual de todos os dias, e se certificava de que não enganávamos a casa. Iria fazê-lo de novo amanhã, e isso era bom. É importante saber que há coisas das quais as pessoas não desistem.

5.10.2006

3 – Mulheres.

Tenho visto muitas histórias que lançam no título o seu tema mais ou menos chocante, qual tiro de nove milímetros dextramente apontado ao coração da hipotética sensibilidade do leitor, para expenderem depois vários capítulos a tergiversar sobre as coisas divertidas que os querubins possivelmente farão com as suas pilinhas, desde que os pipis consintam em tais práticas, actividade a que vulgarmente se chama discutir o sexo dos anjos. Não se atolam nesse lodaçal estas crónicas, que se jactam de primar pela frontalidade e pelo desassombro, que se dizemos merda não é para irmos depois falar de cocó. Este capítulo traz o estigma, e com ele a honra e a glória, da palavra mulheres, e é delas que vamos falar.

Era um facto pertencente ao domínio público, embora escassamente entendido, que as únicas mulheres dignas desse nome, naquele restaurante, trabalhavam para a casa. Não sabíamos porquê, mas era como se o Todo-Poderoso tivesse um dia decretado, Todas as clientes do sexo feminino que frequentem este estabelecimento serão exemplares dignos de pertencer a uma exposição intitulada, Como seria o mundo se Deus não tivesse permitido que o homem erradicasse a sífilis. Para compensar esta aberração teológica, os clientes eram servidos por lindas jovens, semblantes de Vénus de Milo sobre corpos de Vitória de Samotrácia. Isto era pelo menos um alívio, mas as clientes… as clientes, santo Deus.

Mas que coisa esta, então não é que uma acusação de machismo, crescente murmúrio que semelha um rosnar surdo, se exala rumorosamente de uma multidão de mulheres, e um anátema, Marialva, é claramente desenhado por milhares de lábios femininos? Tento dizer-lhes que se acalmem, que não é nada disso que pensam, mas elas enfrentam-me com teimosia, e insistem em saber como se aplica esta minha regra aos homens, e se nós somos porventura bonitos. Minhas queridas senhoras, tranquilizo-as eu, é evidente que não. Nenhum homem neste mundo é bonito, a não ser algumas excepções que, acreditem-me, não vos serviriam para nada. Um homem bonito é como um cavalo cor de laranja, pode atrair por momentos a vista, mas não deixa de ser uma aberração da natureza, cuja mera existência desorganiza sistemas, e cuja utilidade se prefigura extremamente discutível. Eu sempre defendi que os monstros estão melhor quando se juntam, pelo que teria o maior prazer em acasalar esses delicados palminhos de cara com outras tantas halterofilistas, das que exibem matas virgens debaixo dos braços, pernas como barrotes e maxilas de quebra-nozes, e uma halitose capaz de abater vacas a dez passos. Resolvido o problema desses dois grupos, poderíamos finalmente tratar do assunto mais premente, que é o destino dos homens feios e das mulheres bonitas. Isto é, os seres humanos normais.

Parece o parágrafo anterior enfermar de uma incongruência, e a verdade é que não se dá esse caso. O facto é que as mulheres são todas bonitas, o que acontece é que algumas delas se deixam ficar feias. O aspecto exterior de uma mulher é um mero reflexo da sua aparência interior, e uma mulher que se mantenha bonita por dentro será sempre bonita por fora. Já no caso dos homens, o seu aspecto exterior é um reflexo da aparência dos quartos traseiros do último bisonte que os seus antepassados mataram, numa daquelas caçadas com que os homens se costumavam distrair, antes de as televisões serem equipadas com controlo remoto. É fácil de imaginar que esta cara não constitua um espectáculo agradável, e é por isso que a mulher perfeita é uma estonteante flor de delicada beleza, enquanto o homem ideal se assemelha ao doutor Marques Mendes, com as caretas e o suor do Silvester Stalone, em Rocky IV ou no Rambo. No pertinente caso da mesa 19, a Vânia, a Marta e a Lana eram as flores que nos estonteavam com o seu perfume, e nós os trogloditas que elas acarinhavam com a sabedoria milenar de todas as fêmeas. Depois disso, havia ainda as mulheres feias…

Elas são imperdoáveis, as mulheres feias. Uma mulher feia é um ser que deixou apodrecer e morrer a beleza do seu Eu íntimo, pelo que só pode apresentar ao mundo exterior uma máscara oca, ou a múmia de um cadáver. Víamos muito disso, da nossa mesa 19, mas nunca nos habituámos a deixar de lamentá-lo, por que razão não podiam as nossas inverosimilmente longas estadias ser suavizadas pelo alegre desfilar de uma procissão de ninfas, ostentando todas uma etérea beleza? O facto é que as ninfas desfilavam, todas as três, mas a sua vincada tendência para transportarem enormes travessas, o vício arreigado de se cobrirem com aventais informes, eram tudo coisas que prejudicavam grandemente o efeito final. Mesmo assim, ninguém poderia deixar de reparar em como eram bonitas.

Já falei delas antes, julgo eu. Havia a nossa Vânia, é claro, e também a Marta e a Lana. A Lana era um caso curioso, com um semblante de esfinge determinado pela sua ascendência eslava, capaz de nos trazer um jarro de tinto com a mesma serenidade gélida com que transportaria uma taça de cicuta. A Vânia e a Marta eram umas queridas, daquelas miúdas que usam a alma do lado de fora do corpo, o que lhes permite serem íntimas dos amigos, ao mesmo tempo que salvaguardam a sua verdadeira intimidade, pois uma alma é bem mais eficaz do que um cinto de castidade. Nós abusávamos vergonhosamente da Vânia, pedindo-lhe isto e aquilo e o dobro ao quadrado, com molho, se possível, mas tudo tem um limite, e não lhe tínhamos ainda pedido para arranjar mais mulheres para lá irem almoçar. Também não o fizemos nesse dia, mas eu reconheço que namorei por algum tempo a ideia de lhe perguntar porque era que aquele restaurante, de empregadas tão bonitas, só acolhia clientes feias.

Nessa minha imaginação, a Vânia ponderava pensativamente o problema, e diria, muito séria, Compreendo o dilema, uma mulher que não é bonita por fora porque não consegue ser bonita por dentro pode ser ofensiva, mas não deixa de ser gente, e como tal vê-se forçada a almoçar, como todos os outros. O facto, ponderou ainda, é que, se nós não lhes dermos de comer, a fome fará com que fiquem ainda mais feias.

E com esta, calou-me.

5.08.2006

2 – Os sapatos assombrados.

2 – Os sapatos assombrados.

Éramos muitos, naquele dia. Os cinco do costume, é claro, sem o esporádico Catarino, mas com a adição de um tal de Godinho, João de seu nome próprio, mais um Carlos, mas Lopes, que nesse dia se juntaram a nós, possivelmente com fins turísticos. Bastará pois ao amável leitor dispor dos miolos que Deus costuma dar aos gansos, mais uns quantos rudimentos de aritmética básica, para concluir que compúnhamos ali uma comitiva de sete pessoas, e bem galharda que ela era. Tinha contudo um defeito, que era o de exceder a lotação da mesa 19. com efeito, a nossa fiel mesa não era capaz, por mais que se esforçasse, de albergar um número superior a seis comensais, uma vez que os acrescentos necessários a esse efeito inviabilizariam por completo o acesso ao resto da sala. Não tivemos portanto mais remédio do que tomar para nós outra mesa, a do fundo da sala, que podia sem inconveniente ser estendida de parede a parede. Não sei qual era o número da mesa, nem quero saber. No nosso espírito, continuava a ser a mesa 19, e a mesa 19 é sobretudo um estado de espírito. A nossa mesa 19, além disso, é uma boa mesa, uma mesa às direitas, que perdoa com bonomia estas pequenas traições, que por vezes não têm outro remédio senão acontecer, e pior ainda é quando não acontecem, mas vão só acontecendo.

Havia uma leveza impalpável no ar, uma ténue atmosfera de magia, nesse almoço em que gastámos mais de três horas, o que era um excesso, até mesmo para nós. Era sexta-feira, para começar, o que basta para explicar muitas coisas, mas tinha havido outras sextas-feiras antes desta, em todo o caso. Talvez tenha tido a ver com o facto de três de nós, o Carlos Lopes, o José Eduardo e eu próprio, estarmos marcados para passar todo o dia de sábado a trabalhar, e sem qualquer compensação visível. Suponho que foi isso, mais do que outra coisa qualquer, que nos fez sentir que podíamos gastar o tempo que quiséssemos nesse almoço, coisa que de facto fizemos. Houve segundas rodadas de digestivos, houve mesmo terceiras, e, quando não podíamos sem vergonha pedir mais whisky, acabámos de esvaziar os jarros que tinham sobrado da refeição. Como eu disse já, havia uma leveza mágica que tudo desculpava, fosse pelas razões já adiantadas, ou apenas por estarmos a entrar no Verão. Outra possível explicação para esse ambiente surrealista eram os sapatos do João Godinho, que estavam assombrados.

O João deu o toque exacto de estranheza, logo à saída do local de trabalho, quando comentou, dirigindo-se a ninguém em especial, Os meus sapatos, hoje, estão a ranger. A observação mereceu uma ou duas respostas de rotina, nenhuma delas primando pela cortesia, e pareceu depois cair no esquecimento, mas aqueles sapatos continuaram a ranger-me no espírito. Rangeram por todo o caminho até ao restaurante, apesar de irmos num carro, e o barulho característico persistiu durante toda a refeição, bem depois de o seu proprietário estar sentado e quieto. Aquilo bulia-me com o juízo, que raio de coisa faria uns sapatos ranger, quando os pés que vestiam estavam postos em sossego? Na minha opinião, rangidos eram um ruído que se não ligava bem com sapatos, antes os associava mais a portas decrépitas de velhas mansões góticas, casas das quais se diz que têm uma “atmosfera”, pretendendo com isso significar que sentimos, ao entrar nelas, que continuam a ser habitadas pelos antigos proprietários, iguais ao que eram nesses tempos de antanho, só que mais mortos. Aí estava a explicação do mistério, os sapatos do João estavam assombrados.

Seria isto uma coisa inédita, um par de sapatos assombrado? Tradicionalmente, as assombrações tendem a manifestar-se em cemitérios ermos, igrejas vetustas, e casas de idade respeitável. Se entendermos a palavra “casa” como designando o conceito mais amplo de local de habitação, e nos lembrarmos da história da velha que vivia num sapato, as coisas começam a fazer sentido. Não quero dizer com isto que os sapatos do João fossem habitados, isto é, que fossem habitados por qualquer entidade corpórea diferente dos pés dele, mas nada disto impedia que um espírito os tivesse possuído. Que razões levariam tal espírito a ranger de uma maneira que mais fazia lembrar um velho colchão de molas, sobre o qual decorresse a visita de estudo de uma convenção de pedófilos a uma escola primária, era algo que por completo me ultrapassava, mas o som não deixava margem para dúvidas. Não sabia se era o único a ouvi-lo, ou se os outros todos estavam meramente a disfarçar, receio que amiúde me assalta, mas aquilo eram definitivamente rangidos. Talvez nem todos os fantasmas tenham os fundos necessários para adquirir correntes que possam chocalhar, e alguns tenham de se limitar a ranger, tal qual como se fossem uma porta. Ou um sapato.

Confesso que desconheço em absoluto quais são as regras de etiqueta aplicáveis, quando se almoça com um lémure, uma avantesma do outro mundo. Pela minha parte, comi disciplinadamente a minha inócua omoleta, e embarquei depois, com empenho e com denodo, na tranquilizadora ronda de digestivos, que se repetiu por várias vezes. Quando saímos de lá, alguns acusavam o toque das pouco habituais libações, mas eu vinha perfeitamente bem, a conversar com familiaridade com o nosso fantasma. Algumas das coisas que ele me disse tiveram o condão de me iluminar o espírito, e quando vi que ele exibia uma tromba de um tom rosado, em que ainda não reparara, atingi finalmente uma conclusão cósmica, que até aí me escapara: tenho de começar a beber menos, pelo menos ao almoço.

5.06.2006

1 – O grupo dos Marretas.

Tenho de confessar que hesitei longamente, antes de me aventurar a lançar ao papel estas curtas historietas, que serão talvez de pequeno interesse lúdico, e escasso proveito moral. Uma questão, sobretudo, me tolhia a ponta da esferográfica, a saber: deveria eu, à semelhança de tantos cronistas mais experientes, ocultar as veras identidades dos protagonistas, a fim de, como se diz nos meios jornalísticos, proteger os inocentes? Acabei por me decidir pela negativa, baseando-me principalmente num facto consabido: não havia inocentes na mesa 19! Conhecíamos até bastantes inocentes, é certo, mas tinham felizmente o hábito de almoçar nos seus próprios curros, bem longe dos lugares onde costumávamos pastar. Quanto aos diversos psicopatas que constituíam o nosso grupo, estava determinado: nomes verdadeiros, e cada um que assuma, com desassombrada frontalidade, o seu papel nesta absurda tragédia grega a que chamam vida. Isto combinado, erga-se o pano, ritmando a sua subida pelo surdo rufar dos tambores. Senhoras e cavalheiros, apresento-vos a mesa 19.

O grupo, como seria de esperar, não foi sempre o mesmo, não há quem não saiba que estas coisas tendem a variar, ao longo do tempo e das conveniências. O Carlos e o Rui constituíam o núcleo histórico, e houve também um Paulo, que depois deixou de haver, são voltas que a vida dá. O Catarino ia entrando e saindo, e um dia caíram lá de pára-quedas um Zé, um Nuno, que é este vosso cronista, e ainda outro Rui, redundante adição ao ménage, o que obrigou a chamar Cardoso ao primeiro, e ao segundo Constâncio, tudo culpa de o registo civil nos obrigar a contentarmo-nos com meia dúzia de nomes próprios. Cretinos de vistas curtas, é o que eles são, por que cargas d’água é que eu não podia chamar Sonasol ao meu filho, afinal ele é meu, ou não é? Enfim, passe em branco o desabafo, e vamos em frente.

O Zé Eduardo era claramente o pior, isso se não contássemos com o Carlos, que era o pior. Não sofria, contudo, comparação com o Catarino, que se via bem que era o pior, além dos dois Ruis, qual deles o pior. Manda no entanto a verdade dos factos que se confesse que nenhum era tão mau como aquele a quem chamavam Nuno, quando não lhe chamavam coisas mais coloridas, que infelizmente não têm cabimento em textos de palavra impressa. Tratava-se de um canalha da pior espécie, que se ocultava sob os mais variegados disfarces, com que ia enganando os incautos. O facto de estarem estas crónicas abundantemente pontuadas de referências elogiativas a esse sacana deve-se meramente ao facto inteiramente acidental de ser ele, isto é, eu, o autor das modestas linhas. Esclarecida que fica esta particularidade, sigamos adiante.

Há uma tendência, deveras desagradável, para agrupar todos os malucos no mesmo saco, com manifesto incómodo dos próprios, conscientes que estão da sua individualidade alienada. Com efeito, a única coisa que um paranóico, um neurótico e um depressivo bipolar têm em comum é um furioso desejo de matar os outros dois, de preferência recorrendo a meios repulsivamente sangrentos. Enquanto ao nosso pequeno grupo, ficou já dito que éramos todos psicopatas, mas talvez fosse mais preciso se dissesse que éramos todos sociopatas, em menor ou maior grau, com particular destaque para o Zé Eduardo e para o Rui Constâncio. Estou francamente persuadido de que qualquer deles, se fosse deixado sozinho num quarto vazio, por um período de tempo suficiente, acabaria inevitavelmente por, à falta de outro alvo, se insultar a si próprio, de uma forma tão ofensiva que se veria forçado a desafiar-se para um duelo, como retaliação. À parte esta peculiaridade, eram dois excelentes rapazes, de trato ameno e cordato. Os restantes eram meramente malucos, isto é, uns tipos inteligentes, razoáveis e sérios, que consideravam o mundo real um sítio excelente para se visitar, mas que preferiam não viver lá.

Tem essa vaga entidade chamada O Povo o hábito de dizer, nos seus modos rudes e boçais, És maluco, vai-te tratar, e não deixa de ter razão, à sua maneira minimal e simplista. Os malucos precisam com efeito de tratamento, e nós não éramos uma excepção. Isso leva-me a notar que ainda não vos apresentei a Vânia, falha da qual contritamente me penitencio, e me apresso a colmatar. A Vânia era a nossa terapeuta, função para a qual estava particularmente bem equipada, pois, além de dispor dos necessários conhecimentos técnicos, aliava a uma carinha de anjo a paciência de uma Madre Teresa de Calcutá. Era de facto edificante, depois de o Constâncio ter feito o seu melhor para lhe pedir tudo menos o que de facto queria, com um sorriso sonso que teria posto Jesus Cristo a dar pontapés às criancinhas, vê-la afastar-se para voltar com a garrafa de whisky que tivera de adivinhar. Quando não estava ocupada com os distúrbios da nossa psique colectiva, a Vânia aproveitava a breve folga para nos trazer quantidades monstruosas de todo o tipo de bebidas, e até, por vezes, alguma comida. Se o tempo não lhe chegava para tanto, era assistida nessa função pela Marta e pela Lana, mas essas não eram psiquiatras, eram só uma espécie de tratadoras.

O grupo original reconhecera, desde muito cedo, a sua afinidade com uma famosa série televisiva, “Os Marretas”, e os dois fundadores que ainda subsistiam haviam reservado para si próprios o papel dos dois velhotes que, do alto do seu camarote, se empenhavam em boicotar o espectáculo. Quando tivemos de atribuir papéis aos recém-chegados, ninguém hesitou em associar o Zé Eduardo com a águia Sam, não tanto pelo puritanismo exacerbado da personagem, mas antes pela forma altiva e dogmática com que exercia esse puritanismo. O Constâncio ficou a ser o Proveta, ajudante de laboratório de acentuado semelhança física, e eu fui baptizado de Urso Fozy, numa discutível homenagem ao facto de eu saber uma ou outra piada, que não me coibia de partilhar com o resto da mesa, ou antes, com as pessoas que a ela se sentavam, como é evidente. De nada me valeu ressalvar que as pessoas tinham o hábito de rir efectivamente das minhas piadas, ao contrário do que se dava com as do Fozy. A aproximação era assim mesmo suficiente, e um urso parecia ser uma personagem adequada, por razões de peso, literalmente. Não me refiz, contudo, do desgosto de não me deixarem ser o Gonzo, o anormal roxo que gostava de galinhas. Eu não aprecio a galinha como prato, mas, tanto quanto sei, ele também não. Enfim, são injustiças da vida, de que nem a mesa 19 está isenta.

O problema de todas as comparações é que não passam disso mesmo, meras tentativas de associar coisas distintas, a partir de detalhes que calham ser iguais. A Islândia e a Austrália são comparáveis, posto que são ambos países, isto é, extensões de território soberanas, organizadas em núcleos populacionais, tais como vilas e cidades, todas habitadas por pessoas que, na essência, não se distinguem umas das outras, já que pertencem todas ao género humano. Seria contudo ingénuo extrapolar, a partir destas, outras semelhanças, e presumir cangurus que, em largos pulos, corressem as estepes geladas onde brilha o pálido sol da meia-noite. Pois também a minha identificação com o Urso Fozy deixou de lado inúmeras diferenças, como seja o facto de só um de nós ser gordo (e não era o urso). Isto abriu insidioso caminho a que um dia, inesperadamente, o Carlos me desvendasse uma revelação chocante, que teria sido óbvia para mim, caso eu tivesse o hábito de me ver no espelho em que os outros me contemplam: eu pareço-me, na realidade, com a personagem principal de uma série de animação norte-americana, chamada “Family Guy”.


A revelação foi particularmente devastadora para mim, porque a série em causa narra a saga do gordo, estúpido e preguiçoso pai de uma família disfuncional, e eu não me considero estúpido. Revi mais tarde alguns episódios, e vi-me compelido a aceitar a semelhança. A estupidez era uma mera discrepância em que poderíamos ir trabalhando, nada que a passagem do tempo não pudesse resolver. Toda esta história tem uma moral bem clara, que é o terrível perigo de comparar coisas distintas, no fito de as identificar uma com a outra.

E aqui fica, num breve relance, uma primeira impressão dessa vetusta organização que é a mesa 19. A refeição chegou eventualmente ao fim, e retirámo-nos todos, com os melhores votos de uma muito boa tarde. No dia seguinte, voltámos a almoçar lá.