8.01.2007

87 – Banha da Cobra.

Esta manhã, sucedeu-me acordar indefinido. Coisa rara em mim, esta. Já me tenho levantado triste, e, mais raramente, alegre. Uns dias céptico, outros esperançoso, mas sempre alguma coisa. Hoje, pelo contrário, não sabia se me apetecia rir, estar morto, ou emigrar para o Japão. Não me sentia coisa nenhuma, apenas indefinido.

Nesse estado de espírito me arranjei e saí de casa, aberto a qualquer ideia, sem ter eu próprio nenhuma. E calhou que a primeira coisa a sair-me ao caminho fosse um papelucho que um jovem distribuía à entrada da estação de comboios, e que, em letra apertada e fraseado ingénuo, anunciava aos povos o astrólogo e médium africano, mestre Alimo. Isto deu-me algo com que ocupar o espírito, e logo um tema bem actual – o fenómeno, neste século supostamente iluminado, da proliferação descontrolada da treta.

Não vale a pena alongar-me aqui sobre o disparate que é a astrologia, nem sobre as baboseiras que comumente se ouvem a propósito da necromancia, do tarot e da bola de cristal. Quem quer acreditar nessas coisas está no seu pleno direito, e não mudaria de opinião, só por eu me pôr aqui a repetir os argumentos que sensatamente têm sido aduzidos contra tais teses. Creio, todavia, que mesmo essas pessoas, ou sobretudo elas, teriam alguma dificuldade em engolir que o mesmo homem acumule os poderes simultâneos de astrólogo e de médium. Já agora, poderia oferecer o serviço completo, algo como, Reparam-se bicicletas, desentopem-se canos, e fazem-se refeições para fora. Também se tratam calos.

Lendo o texto subsequente, constato que talvez me tenha precipitado, quanto à questão dos calos. É que parece que o homem é, além de tudo o resto, “um grande vidente, espiritualista, curandeiro e conselheiro”. Chiça, se eu tivesse a certeza de que também sabia cozinhar, levava-o já para minha casa. Quanto ao âmbito de actuação, o folheto esclarece que o fenomenal indivíduo “resolve rapidamente qualquer problema difícil ou complicado”. Excluídos parecem estar, portanto, os problemas fáceis e simples, o que não augura nada de bom para os calos, claramente pertencentes a esta última categoria. A prometida rapidez também pode vir a revelar-se indesejável. Se o meu problema for, por exemplo, o desejo de me ver livre da minha sogra, gostaria que ele me desse pelo menos tempo para me ausentar temporariamente do país, antes de limpar o sebo à velhota.

Mas o homem é bom, é mesmo muito bom. Logo à cabeça, na lista dos problemas difíceis que ele se acha apto a resolver, contam-se Amor, e Aproximar ou afastar as pessoas amadas. Essa do amor merece uma grande chapelada. O próprio Deus, que terá alegadamente criado toda esta confusão em que vivemos, anda às voltas com esse problema, desde o dia em que foi ter com os seus inquilinos, uns tais de Adão e Eva, para os avisar que tinham de fazer as malas, porque a renda só estava paga até ao final daquele mês. Enquanto ao resto, a proposta é ainda mais ousada. Com efeito, qualquer pessoa que se encontre a braços com a necessidade de “afastar a pessoa amada”, tem de facto um problema “difícil e complexo”, daqueles que só se resolvem com um astrólogo verdadeiramente grande. Ou, em alternativa, com uma lobotomia.

O resto é trivial, a costumeira panaceia universal, mais a variada lista dos problemas que se resolvem, e que são os do costume – dinheiro, saúde, emprego, impotência sexual, outros mais (porque é que estes místicos africanos insistem sempre na questão da impotência sexual? Será afinal mentira o que se diz dos africanos?). A lista termina com o protocolar etc., o que muito me convém. Com efeito, se alguma vez eu acabar por lá ir visitá-lo, será certamente por causa de etc.

Mas não sei se irei. Vejo na papeleta que o cavalheiro atende de 2ª a sábado, das 8 às 21 horas, numa morada pouco convidativa. Eu sei que estou bem longe de ter os seus portentosos poderes, mas, caso um dia os tivesse, confio que começaria por os usar para melhorar a minha situação na vida, de forma a não ter de trabalhar 13 horas por dia, 6 dias por semana, num cacifo delapidado de uma rua escusa. A magia, afinal de contas, deve começar em casa.

Em resumo, treta. Ainda bem, pensei eu, que a mesa 19 não tem nada a ver com coisas destas. Não só todos nós temos profissões de verdade, como ainda nos reunimos num restaurante sério, onde recebemos os amáveis serviços de uma jovem que está, ela própria, prestes a exercer uma profissão a sério. É verdade, a nossa Vânia concluiu a sua licenciatura, e em breve se dedicará a psicanalisar os confusos e os desorientados, o que lhe dará uma fatia de mercado de, aproximadamente, 90%.

Isto, sim, é um trabalho meritório. As pessoas com problemas, tomadas de desespero, virão falar com ela. E a Vânia, conversando com eles, irá dizer-lhes, em tom calmo e tranquilizador, qual é o seu problema, e qual a solução. Isto é, eles têm problemas de, digamos, amor, impotência sexual, ou aproximar e afastar as pessoas amadas. O problema está na cabeça deles. A resposta também. A cabeça é a deles, mas a Vânia é que dá a resposta. Pensando bem, talvez me tenha precipitado um pouco, quando falei de um emprego a sério.

Alguém disse uma vez que os médicos mais não fazem do que inventar doenças de nome sonante, das quais uma humanidade papalva logo se presta a morrer. Para os psicólogos, isto é especialmente válido. O processo costuma ser algo como isto: eu estou deprimido, porque queria ser rico, e não sou; o psicólogo explica-me que o meu trauma se deve a uma preocupação subconsciente com o tamanho do meu pénis; eu sinto-me melhor, com esta explicação, e pago a consulta; à custa de gente como eu, ele fica rico; eu não; o pénis, entretanto, continua do mesmo tamanho.

A génese da psicologia é bem conhecida de todos. Em Viena, um tal senhor Segismundo, após dar tratos à bola, na busca de um negócio novo e lucrativo, confidenciou a um amigo que achara finalmente a fórmula vencedora. A troco de dinheiro, escutaria os problemas que as pessoas lhe quisessem confiar. Depois, arvorando um ar sério e profundo, dir-lhes-ia quais eram os problemas delas, coisa de resto fácil, já que acabara de os ouvir. Estás a brincar, espantou-se o amigo. Ninguém te daria dinheiro a troco de um disparate desses, a menos que fosse maluco. Boa ideia, regozijou-se Segismundo, é isso mesmo. Estava definido o mercado-alvo.

Mais coisas há que eu gostaria de observar aqui, mas terão de ficar para uma próxima crónica. Quero apenas salientar que nada disto é ilegítimo, pois toda a gente tem o direito de receber o dinheiro que lhe queiram oferecer, em troca seja do que for. É isso que, desde o tempo dos antigos fenícios, tem feito girar o mundo.

Nenhum mal advém à sociedade, pelo facto de uns quantos indivíduos ganharem a vida a vender gambozinos empalhados. A sociedade só está em perigo, e perigo grave, quando as pessoas começam de facto a comprar, com ânsia e avidez, os tais gambozinos empalhados. É aí que é caso para dizer: Temei a sétima trombeta, porque o fim está próximo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Desta feita não posso deixar de discordar... Acho esta crónica. no mínimo, uma descriminação intolerável. Que mal tem as pessoas irem dar dinheiro a ganhar ao Mestre (qq coisa) ou ao psicanalista? São tão enganados como quando entram numa loja de chineses e compram uma gaiola com um pássaro irritante que "canta" (com a agravante que este ainda vai irritar os outros cidadãos que têm de o ouvir) ou que aproveitam fabulosas campanhas de crédito com taxas promocionais acima dos trinta por cento para fazerem aquela viagem fantástica em que passam três dias enfiados num autocarro a ouvir outras campanhas promocionais mas ficam felizes porque no fim recebem um presunto rançoso!
Viva a liberdade de enfiarmos todos os barretes! Beijo Poker

Clara Vasconcellos disse...

Nuno, vim retribuir as visitas e elogiar teus textos... maravilhosos.
Beijo grande