10.26.2007

89 – Do you understand quand je dis ça?

Há muitos milénios atrás, quando Deus decidiu que era melhor parar de fingir que existia, e deixar o macaco evoluir em paz e sossego, só para ver o que é que aquilo dava, levantou-se, naturalmente, o problema da comunicação. A questão foi lançada a debate no dia em que um dos proto-homens tomou um pernil de dinossauro e declarou, após prolongada reflexão, “Ghrung”. O segundo hominídeo indicou a sua decidida discordância, apontando para o mesmíssimo pernil, ao mesmo tempo em que pronunciava, com estudada ironia, “Gharogh”. Apontou em seguida uma árvore próxima, e silabou, triunfantemente, “Ghrung”. O primeiro macacóide considerou a clara insuficiência do argumento, e sentiu-se obrigado a discordar, o que fez pela via epistemológica de rachar o crânio do opositor com o pernil em causa. Quando o segundo troglodita recobrou os seus debilitados sentidos, contemplou com receio o pernil semi-desfeito, e resmungou submissamente, “Ghrung”. Estava inventada a comunicação.

Desde esta data histórica, ficou em definitivo estabelecida a importância da correcta correspondência entre significante e significado. A própria bíblia viria a demonstrar, no seu divertido mito da torre de Babel, a risível futilidade de pronunciar, à toa, sons a que ambas as partes não hajam acordado conferir um mesmo sentido. O princípio norteou a humanidade durante séculos, e não faltam referências a ele em toda a literatura disponível. Humberto Eco, no livro que nomeia a flor impossível de nomear, estigmatiza a inanidade irrisória do homem que dissesse “bilrribiti”, e Art Buchwald narra o caso de um poeta vanguardista que se não consegue fazer entender sobre o conceito de “castanho”, termo que para ele designa uns biscoitos fenomenais, com sabor a sardinha. Até aqui, portanto, nada de novo.

Mas a idade moderna veio dar uma volta a isto, e acabou por relançar a torre de Babel. Só na segunda metade do século XX, Nixon redefiniu a palavra “honestidade”, a guerra do Vietname deu novo sentido à palavra “vitória”, e, em Portugal, o estado novo reescreveu “democracia” (e também mudou o significado a “ditadura”, mas disso já ninguém se lembra). Mais tarde, o 25 de Abril tomou a seu cargo o sentido da palavra “revolução”, o Copcon o do termo “processo pacífico”, a AR usou “transparência” em acepções que teriam lançado um linguista em demenciais convulsões de riso, e o senhor Sócrates catapultou a palavra “engenheiro” para baixios que a desgraçada jamais conhecera, ao ponto de os actuais licenciados em engenharia preferirem hoje ser identificados por títulos alternativos, do tipo, “construtor mestre e burlesco de sua majestade, a rainha de copas”, de preferência a ostentarem o étimo soez.

Em todos os meios se verifica este movimento desconstrutivo da capacidade humana de comunicação. Em literatura, por exemplo, a coisa atingiu o seu pico com “Finnegans Wake”, proclamado o livro mais ilegível de todos os tempos. Na vida real, o troféu cabe indiscutivelmente à Vânia, com a sua chef-d’oeuvre, “O Anhuca da Mesa 19”. O princípio que norteia aquela pequena mente, já muito frita por anos poli-saturados de psicologia, é tão simples como asinino: se eles já sabem que há um anhuca, posso dizer impunemente o que me der na bolha (e o que dá naquela bolha, santo Deus, não está nem na Divina Comédia, apesar do cuidado que Dante pôs na sua compilação). A imbecilidade do conceito foi-lhe cabalmente demonstrada com um simples SMS, que a deixou a apanhar os bonés que nos eram destinados. Bastou assinar, Anhuca, e era vê-la, qual barata tonta, a perguntar qual de nós era o Anhuca. Qual era o Anhuca? Mas, não era ela que sabia isso? Dããã!

Mas houve um dia em que ela me irritou. É algo que só muito raramente me acontece, irritar-me, e geralmente prenuncia um cataclismo do género daquele que destruiu os dinossauros, ou, pelo menos, que o touro prodigioso de Minos está em vias de encontrar Ísis, a vaca sagrada, em conúbio lésbico com a cabra do Zodíaco, no que será o prólogo agoirento de uma bela chanfana. Teve a distinta lata, a nossa menina, de nos informar, com um daqueles sorrisos irritantes, tão comuns nas gárgulas e nos filmes com gajas nuas a matar gajos amaricados, um daqueles sorrisos que só um picador de gelo espetado na têmpora consegue amenizar, mas teve a lata, dizia eu, de nos informar que o pessoal da cozinha mandava os seus cumprimentos ao Anhuca. O picador de gelo falhou a sua entrada em cena, ela retirou-se, lampeira, e eu rosnei com os meus botões, Isto ainda vai dar merda.

A Vânia dá-se ao luxo de soberanamente ignorar o pacto dos dois macacos primitivos, e usar a seu bel-prazer uma palavra arbitrária, cuja chave nós não possuímos, facto que ela não ignora, já que é ela que se nega a fornecê-la. Pois bem, quem somos nós, brutos e incultos, para argumentar com a sua universitária sapiência? Uma mulher capaz de saber, a um mesmo tempo, o significado de “déspota” e “anal-retentivo”, não é pessoa com quem se discuta de ânimo leve. Sejam então válidas as regras dela: o significado de uma palavra é um assunto particular de quem a usa, e os destinatários que se lixem. Se não perceberam nada, é porque talvez não fosse mesmo para perceberem. Posto isto, a crónica começa aqui.

E acaba, também, exactamente no mesmo ponto. Não é que o texto não exista, é só que eu não o vou escrever. Caramba, até o meu descaramento acaba por ter um limite, e não poderia voltar a encarar a Vânia, depois de escrever aquilo. Mas não é porque seja mentira, uma vez que, pelas regras dela, nada há que seja mentira; o que se diz pouco interessa, interessa só o significado, e esse, não há quem o conheça. Vendo as coisas assim, eu até lhe podia chamar lambreta azeda. O que quer dizer isto? Como já afirmou o bardo imortal, That, my friend, is the question. Mas pronto, ficamos por aqui, e ela que me perdoe por todas as coisas que não cheguei a escrever. Caramba, como é que eu fui capaz de me lembrar daquilo? O pormenor do chantili, sobretudo, foi francamente excessivo!

O último parágrafo é confuso? Não dá para se perceber nada? Pois bem, a coisa é assim mesmo: eu sei o que quero dizer, e os outros, se quiserem, podem entreter-se a imaginá-lo. Será isto chato? É, pois, é sempre chato não perceber. Por muito menos do que isso, até já houve quem ficasse completamente anhuca!

2 comentários:

Patrícia Grade disse...

E pronto, mais uma vez desvirgindo um espaço, que é coisa que simplesmente me deixa extasiada...
Dou a mão à palmatória, estou anhuca com este texto, sobretudo com a parte que não escreveste, aquela cena do chantilly então... anhuca é mesmo o termo!!
Meu caro Nuno, há comentários que não se escrevem, limitam-se a ser pensados... este é um deles!
Foi um prazer dos diabos ler-te. Anhuca é já uma das minhas palavras preferidas. Será por ser mulher?

Nuno Baptista Coelho disse...

Caríssima Indomável, muito bem vinda a este espaço, que tem sempre o maior prazer em ser desvirgindado (não há nada como primeiras vezes, over and over again). Muito obrigado pelos amáveis comentários.

Disseste, num outro comentário, que tinhas de ser mais contida, pois este não é o blog da Abóbora. Com a devida vénia à nossa badalhoca de serviço, acho que ainda não leste o suficiente do que por aqui se escreve (a numeração das crónicas não é inventada, são mesmo 90, até à data). Até existe uma ou duas com palavrões, embora seja coisa que eu geralmente evito. Mas geralmente não é o mesmo que sempre, e o principal prazer da transgressão é ser excepcional.

Se gostaste da palavra Anhuca, talvez queiras ler a Crónica 86, que explica (na medida em que as crónicas explicam seja o que for), a génese desse crisma arbitrário, prepotente, e potencialmente anhuca. Lá se fala também de Irmãos Metralha, da Clarabela e da Clara-de-Ovos, e outras coisas sérias do mesmo calibre.

Agora, a questão do chantilly... pois, a questão do chantilly... é, há comentários que não se escrevem mesmo. Ainda podia a Abóbora passar por aqui, e eu não quero ser responsável pelo post que ela escreveria sobre isso, com séria desonra para toda a respeitável classe profissional dos pasteleiros e afins. Mas talvez ainda escreva uma crónica.