3.13.2007

80 – E vós, ó tágides minhas…

Hoje, a mesa 19 escandalizou o restaurante. Digo a mesa 19, porque é tudo malta fixe, que não se importa de levar com as culpas, mas a verdade é que fui eu, apenas eu, que provoquei o escândalo, e me tornei para sempre persona non grata naquele estabelecimento, o resto da mesa não fez nada de mal. De resto, eles até são uns tipos bem comportados, pelo menos quando comparados comigo. Mas também, por essa bitola, quem é que não o é?

A coisa começou de um modo simples. Após nos sentarmos à mesa, o Carlos, pessoa mais atenta do que eu, observou que a Marta, situada atrás do balcão, trazia hoje uns calções curtos, coisa inédita e portentosa, pelo menos naquelas paragens. Sendo eu, como sou, um indivíduo histericamente calmo, reagi com a minha costumeira serenidade, começando de imediato a roer o guardanapo, enquanto babava abundantemente a gravata. Ao longo da refeição, consegui controlar-me admiravelmente, não tendo feito mais do que uma dúzia de tentativas baldadas para a trazer cá para fora. Mas, apesar de toda essa aparente indiferença, a coisa estava a moer-me, cá por dentro.

Não resisti, à saída, e espreitei para dentro do tantálico balcão. Confirmado o prodígio (e que prodígio, meu santo Priapo), vi-me compelido a intimar a jovem, em tom carinhoso mas firme, para que no dia seguinte servisse às mesas, nas mesmas vestes em que se achava. Ela não me levou muito a sério, helás, mas levou-me a patroa, que estava ali perto. Ofendi, ai de mim, a digníssima senhora, que logo me prometeu, em tom seco, que todas elas estariam de mini-saia, no dia seguinte. Agradeci com entusiasmo, mas, pensando melhor no assunto, começo a suspeitar de que ela talvez estivesse a ser irónica. Eu não sou de intrigas, é claro, mas receio bem não ver ninguém de mini-saia, amanhã.

Serve esta crónica para falar de pernas, e do desproporcionado fascínio que estas parecem sempre exercer no sexo masculino, o dito sexo fraco (assim chamado porque as mulheres, infelizmente, não costumam sofrer de fraquezas destas). É claro que quem fala de pernas, fala de outros atributos femininos, não apenas os boçalmente evidentes, como a proeminência das glândulas mamárias, ou a rotundidade daquela parte da anatomia que serve para sentar o resto do corpo, mas também as linhas suaves do antebraço, a curva esbelta de um pescoço bem delineado, a graciosidade de salgueiro jovem de uma cintura que se inclina ternamente. Tudo isto nos enleia e mesmeriza, e isso, dizem elas, é mau, e só prova que somos todos uns tarados sexuais. Mas, seremos mesmo?

Entendamo-nos: todas as mulheres que eu conheço partem de um mesmo princípio, que tem para elas o valor de um dogma. A saber, que sempre que um homem admira um atributo físico feminino, está por força a pensar em ter sexo com a dona desse atributo. Este ponto de vista, redutor como é, apresenta todavia a vantagem de permitir a qualquer mulher, sem muito esforço intelectual, supor que compreende os homens.

A coisa, uma vez que se aceite esta premissa básica, torna-se de uma simplicidade infantil: o homem detém-se na contemplação de um decote mais profundo, ou mal consegue conter um assobio de admiração, ante umas pernas bem torneadas? Está a pensar em sexo! Admira, numa jovem, o olhar límpido, e o pé breve? Ora bem, toda a gente sabe o que fica a meio caminho entre os olhos e os pés, e é claro que o gajo tem sexo em mente! O homem opta antes por elogiar, com entusiasmo, a gaze diáfana do vestido mimoso? Qual gaze, e qual diáfana, o que tu queres é ver-me descascada, que é para me saltares em cima! O homem é, enfim, um lírico, um sonhador, um Lord Byron, que lhe suspira ao ouvido, “She walks in beauty, like the night / of cloudless climes, and starry skies; / And all that’s best of dark and bright / meet in her aspect, and her eyes”? Céus estrelados e climas sem nuvens, o meu rabinho! Ele está mas é a pôr-se a jeito, e, se não me precato, isto ainda acaba em sexo!

Pessoalmente, acho lamentável que as mulheres pensem de tal forma, e não posso impedir-me de sentir que estão a perder uma parte importante da vida, ao fugirem dessa sensualidade que pode sempre estar presente na camaradagem entre duas pessoas de sexos opostos, mesmo que jamais esteja em causa, por diferenças de personalidade, de cultura, de idade, até, a possibilidade de acabarem juntas na cama. Não, é como se cada homem fosse, única e exclusivamente, um feroz predador sexual, sempre com o fito de passar à acção, e toda a mulher devesse escolher, a cada momento, entre ser uma puta ou uma freira.

Não me compete falar pela globalidade do sexo masculino, e não estou sequer mandatado para falar pela mesa 19. Mas, falando exclusivamente por mim próprio, confesso aqui, pelo que possa valer, e não obstante as penalidades que isso me possa acarretar, a minha incondicional admiração pela beleza feminina. Mais, para os devidos efeitos, aqui declaro e juro que essa admiração, ou antes, essa obsessão, se confina exclusivamente ao corpo feminino, não se estendendo a qualquer dos seus adornos e atavios. Por essa razão, evidentemente, prefiro vê-las nuas.

É claro que esta minha preferência, mais do que justificar, explica inteiramente o lamentável episódio que deu o tom de abertura à presente crónica. Ver as pernas da Marta era, para mim, uma tentação irresistível. E por que razão não o seria, de resto? Ninguém estranharia que eu passasse horas na fila de entrada de um museu, para ver “Os girassóis”, ou “A ronda nocturna”. Porque não haveria, nesse caso, de me debruçar sobre o balcão, a fim de contemplar essa outra obra de arte, as bonitas pernas da Marta?

Ninguém ganha o rótulo de tarado por querer ver a Mona Lisa, ou as pinturas de Renoir, que, convenhamos, são todas feitas de gajas nuas. Por que razão serei eu obcecado por sexo, se gosto de olhar para as pernas da miúda? Nunca tive sexo com um par de pernas, nem conheço quem o tenha tido. E se eu admitisse que também não me importava se ela estivesse ainda mais despida, isso valer-me-ia o quê, seis anos de prisão efectiva?

O paraíso, para mim, é algo assim como um prado florido, esvoaçado por coloridas borboletas, e percorrido por lindas jovens nuas. Ninguém cuida, decerto, que eu tenciono papar as borboletas, ou enfiar as flores no rabo. Porquê pensar, então, que o que eu quero é saltar para a espinha das moças? Beleza é beleza, e uma mulher nua, convenhamos, é uma perfeita beleza. Haverá certamente quem pense de outro modo, mas eu, pessoalmente, gosto.

P.S. Nem de propósito. Antes de me ir deitar, entretive-me a ver uma série policial. Tratava-se de um psicopata que assaltava bancos, e obrigava todos os seus reféns a despirem-se. O mistério do seu comportamento confundia os detectives, que não sabiam o que pensar dele. Eu, como espectador, fiquei igualmente intrigado. Quero dizer, porquê bancos? Então, não os podia obrigar a despir noutro lado qualquer? Ele sempre há com cada maluco!

3.05.2007

79 – Os Óscares da mesa 19.

Aviso ao leitor: esta crónica contém linguagem adulta, susceptível de chocar algumas sensibilidades. Nomeadamente, deverão abster-se de a ler todas as pessoas que se ofendam com a palavra “caralhinho”. Quanto às pessoas que se ofendem com a expressão “caralhinho de ouro”, deverão, além de se absterem de ler esta crónica, procurar urgente ajuda psicológica, porque, com franqueza, isso não é normal, caramba!

Já diz o povo que a coisa é certa e sabida, chuva em Novembro, Natal em Dezembro. Com idêntica regularidade, retornam uma vez mais os prémios da academia americana de cinema, os famosos Óscares. Conta-se que o galardão terá sido inicialmente instituído por um emigrante português, o senhor Óscar Tibúrcio Alho (mais tarde celebrizado pela canção, “Lá vai o Óscar Alho / Alegre e trabalhador / Lá vai ele para o trabalho”). No projecto original, os prémios seriam constituídos por peças de cerâmica, importadas, expressamente para o efeito, da terra natal do artista, as Caldas da Rainha, mas depois lembraram-se da estatueta dourada, e pronto, apaneleiraram a cerimónia toda.

A mesa 19 não é Hollywood, nem se parecem os nossos filmes com os filmes deles (a própria palavra Hollywood, de resto, significa “Santo Pau”, coisa de certo modo afastada dos nossos gostos e preferências). Sinto, aliás, uma certa pena daquela pobre gente, dos trabalhos e custos em que incorrem para produzir a mais simples cena de um filme, que, assim mesmo, se arrisca a ser um fiasco de bilheteira. O que não daria o Martin Scorsese pela possibilidade de assegurar um sucesso com o mero acto de partir um copo, pedir a conta, ou falar muito alto. Como ele seria feliz, vivendo num mundo onde a simples invenção de uma nova forma de arreliar a Vânia garante uma lotação esgotada. O problema dos americanos, é claro, é que têm sempre de fazer as coisas da maneira mais complicada.

Ao longo de quase oitenta crónicas, e muitos mais almoços, tem-se feito grande cinema na mesa 19. Alguns filmes notáveis, curtas-metragens com abundância, diversos documentários, e animação em quantidades que fariam empalidecer de inveja os estúdios da Warner Brothers. Se há coisa que não nos podem negar, é que nós somos muito animados. Só não nos podemos considerar, com inteira propriedade, uma indústria do celulóide. Esse título, há que admiti-lo, pertence ao próprio restaurante, embora o celulóide se apresente geralmente com outros nomes, como frango de caril, favas à portuguesa, etc. Mas, adiante…

A questão é esta, parece-me bem que, nesta fase do campeonato, já vamos merecendo os nossos próprios Óscares. Longe de mim a pretensão de ganhar uma das tais estatuetas rabichonas, mas não me desgostava de ver o meu talento recompensado com uma caneca malandra, das que trazem uma surpresa no fundo, com um frade garanhão, de cordelinho, ou até um simples “das Caldas”, que eu pudesse exibir em prateleira nobre, lá em casa, informando orgulhosamente os amigos, “E ali está o meu Óscar, não reparem ser só um”. Está então decidido, a mesa 19 passa a atribuir Óscares, os bonecos logo se arranjam. Procedamos, para já, à sua distribuição.

Logo para começar, e antes que haja confusões, reclamo para mim o prémio de melhor argumento. Qual será esse argumento, é algo que ignoro, mas podem escolhê-lo livremente, entre as diversas crónicas. De resto, quem mais é que escreveu já um argumento, para além de mim? Ele há por aí um rapaz que afirma ter o seu próprio original, pronto para publicação, mas confesso que ainda não vi nada. É certo que nada do que eu até hoje escrevi é merecedor de um Óscar. Pronto, tudo bem, eu também não gosto desse nome, mudemo-lo, então. Senhoras e senhores, o caralhinho de ouro para o melhor argumento vai para… o Nuno.

Poucos almoços chegariam a acontecer, se não fosse pelos excelentes serviços do Carlos Santos, que habilmente dirige todo o cast, e nos coloca a todos em cena, no momento oportuno. Para além disso, tem a habilidade de reconduzir o filme ao seu enredo correcto, quando o elenco começa a descambar. Por todas estas razões, mesmo que outras não houvesse, vai para ele o caralhinho de ouro de melhor realizador.

Mas a essência, o frémito e a emoção dos prémios da academia, chega no momento de premiar as grandes actuações. Pouco interessa ao grande público, na verdade, quem escreveu ou realizou, tudo gente que de facto não chega a aparecer na tela. Não, as multidões pagam para ver o herói exclamar, “I’ll be back”, ou a heroína, dengosa, “Is that a gun in your pocket, or are you just glad to see me?”. Vamos, então, conhecer os actores.

Boas representações, eis o que não tem faltado ali, mas uma há, que a todas se sobrepõe. Trata-se do papel mais clássico e apreciado, desde “E tudo o vento levou”, até “António e Cleópatra”. Um homem e uma mulher que se detestam, porque gostam um do outro, e isso porque não gostam, mas até simpatizam, ou não, tudo com a finalidade de chatear o espectador. No meio de tudo isso, conseguem construir entre si um rapport que oscila entre “Música no Coração” e “O resgate do soldado Ryan”. Só tais papéis podem aspirar ao prémio supremo. Por essa razão, os caralhinhos de ouro de melhor actor principal, e melhor actriz principal, vão, respectivamente, para o Rui Cardoso, e para a Vânia.

Não se esgotam aqui, todavia, os prémios atribuídos à casa. De enfiada, saem três caralhinhos de ouro: a Marta, com o melhor guarda-roupa (sobretudo os brincos); a Lana e o Victor, ex-aequo, com o melhor filme mudo; e o patrão Pinto, com a melhor imitação de Marlon Brando no clássico “O Padrinho”. Em jeito de bónus, o caralhinho de ouro do melhor drama, atribuído à cozinha, pelo filme “Osso duro de roer”.

Após muita deliberação do júri, processo que chegou a envolver verbalizações de insultos politicamente incorrectos, ameaças completamente impróprias, e episódios esparsos de sodomia não consentida, decidiu-se atribuir colectivamente, ao Constâncio, Zé Eduardo, e Carlos Silva, o caralhinho de ouro de “Actor mais inapropriado para figurar numa cena pró-americana, a não ser que apareça como contestatário, e nesse caso tem de ser morto logo, ou o filme arrisca-se a ser X-rated”. Eu votei vencido, sobretudo por causa do comprimento do nome do prémio, e terei muito mais a dizer sobre isto, quando me puder sentar melhor.

Outros caralhinhos de ouro existem, e podemos enumerá-los brevemente. Temos o sempre importante caralhinho de ouro dos melhores efeitos especiais, que vai para o Paulo Sousa, o homem santola. O caralhinho de ouro do melhor filme estrangeiro vai para o Paulo Mendes, com o comovedor “As vinhas do vulcão dos pretos”, filme de uma intensidade que nos deixou zonzos. Por último, mas muito importante, temos o Carlos Lopes, cuja obra, “O homem frequentemente invisível”, lhe valeu o prémio “Assim também eu”. Fiquem bem, e um caralhinho para vocês todos.