1.02.2008

93 – Fin de Saison.

Mais um ano que finda, bla, bla, e as coisas boas que aconteceram, bla, bla, e também as más, bla, bla, e o ano que vem será melhor, tal como este afinal não foi, apesar do cuidado que tivemos em o começar com os mesmíssimos votos, mas pronto, ainda não foi desta, e também não há-de ser da próxima, mas fica na mesma desejado o feliz ano novo, embora bem lhe baste que além de ano seja novo, já é preciso ter lata para ainda lhe estarmos a pedir que seja feliz, o que vale é que isto de desejar ainda vai sendo uma coisa bem diversa de prometer, ou então ainda acabaríamos todos presos. Ou eleitos, se o diabo assim se lembrasse de escolher. Seja como for, e dê lá por onde tiver de dar, Feliz Ano Novo a todos.

Nos blogues, bem assim como nos telejornais, não choca nem destoa que se dediquem os espaços desta época a um resumo, em jeito de balanço, do ano que se despede. Pois façamos também aqui um balanço, não do banal e sobejamente conhecido 2007, mas de algo mais raro, e possivelmente menos documentado. Nada menos do que isto, uma era que finda, e de boamente confia aos bons cuidados do tempo os seus ouros e os seus verdetes, para que de ambos ele faça a estatuária que a há-de imortalizar. Em traço amplo e claro, com pincel descomprometido e jovial, dediquemos aqui um amigável in memoriam à mesa 19.

Cumpre salientar, para que não surdam indesejáveis mal-entendidos, que a mesa 19 não acabou. Ela ainda lá está, rija e duradoura tábua, sobre as suas pernas inflexíveis, e em sua volta ainda se sentam, e continuarão a sentar-se, muitos dos egrégios convivas que, ao longo destes anos, compuseram essa estimável congregação de almoçantes. Mas nem todos lá estarão. Talvez se continue a voltar lá todos os dias, talvez os que faltam não façam realmente falta, mas acredito que não será meramente uma continuação do mesmo, mas o início de algo diferente. Talvez melhor, sem dúvida, mas certamente diferente.

Gostaria de poder dizer que a culpa desta mudança cabe à nova lei sobre o tabaco, mas isso não seria inteiramente verdade. A nova lei, neste caso, apenas ajuda a tornar oficial o falecimento de algo que já não estava realmente vivo, apenas mal enterrado. Muita gente que compôs estas páginas, tanto sentada como sobretudo de pé, tem vindo desde há tempos a deixar de andar por lá, e ultimamente até a Vânia, musa e alma mater destas crónicas, tem tido outra agenda, e só esporadicamente lá aparece, e quando o faz é como visita: está lá, até atende, mas já não pertence. Nem pertence a nós, e nós também lhe vamos deixando de pertencer. Lentamente, pouco perceptivelmente e, de uma forma talvez natural e inevitável, aquilo foi-se tornando apenas num restaurante.

Desmentindo o que afirmei no início desta crónica – prerrogativa indiscutível, e talvez única, do cronista – não vou aqui fazer qualquer resumo de tudo o que foi nestes últimos anos a mesa 19. Se as 92 crónicas que antecederam a presente não são bastantes para tal, não sei então o que o será, mas não é decerto mais uma que vai remediar o problema. Também me recuso a escrever aqui um epílogo dramático e pungente. Caramba, nem o restaurante vai ser destruído por um cometa, nem eu vou emigrar para Timbuctu. Hei-de continuar a almoçar em muitos sítios, incluindo, se deus me guardar vida e frescura de alma, na mesa 19. Talvez o faça muitas vezes, que talvez me pareçam poucas. Que talvez aos outros pareçam demais. Que talvez à casa pareçam o retorno de todas as pragas bíblicas, mas o que se há-de fazer? Apenas como uma dica, a Igreja Católica Apostólica, nossa Santa Madre, inclui o convívio esporádico com a minha pessoa na sua brochura intitulada, “300 maneiras de ganhar o céu, apesar dos meninos do coro”. Penso que a recomendação se manteria, mesmo que a brochura começasse por “3 maneiras…”, ou nem que fosse uma. A utilização repetida da palavra “brochura” neste aparte, já agora, é inteiramente acidental.

Mas também não cometo a hipocrisia de afirmar que apenas troco um restaurante onde não posso fumar por outro onde continuo a desfrutar dessa liberdade. Isso não é verdade, na medida em que omite que aquele não é para mim, simplesmente, “um restaurante”. A mesa 19 foi muito mais do que uma experiência restaurativa. As ligações que criei com todas as pessoas que passaram, ou estiveram relacionadas com a mesa 19, transcendem em muito a mera patanisca de bacalhau, ou o cheirinho acrescentado ao digestivo, e não se vão dissolver se deixarmos de almoçar juntos. A Vânia, com quem começámos por brincar, depois fomos conhecendo mais a sério, sobre quem eu escrevi tantas coisas que sentia, e deixei tantas mais por escrever. O Emplastro, sobre quem escrevi coisas que a Vânia jamais me perdoará, senão pela veracidade, pelo menos pelo resultado final. Os colegas que passaram a amigos, frase banal que me dispenso de aprofundar, sob temor de a indevidamente banalizar, por via de tanas banalizações que correntemente passam por reflexões profundas. E também, sejamos honestos, a patanisca de bacalhau, e os cheirinhos, coisas que ali se não chamam comida e bebida, mas simpatia e amizade.

Hei-de lá voltar em 2008, uma vez ou dez, ou trinta, ou todas. Ouso até imaginar que estarei de certa forma lá, mesmo quando não estiver. Sempre que alguém perguntar o que fica esse resto a fazer na garrafa, será um pouco de mim quem faz a pergunta. Quisesse eu ser dramático, e proclamaria, tenebroso e cavo, Quando um de vós arrotar a despropósito, aí eu estarei, no meio de vós. Preferindo ser pragmático, limito-me a constatar que a minha pessoa, completa em todos os seus acidentes, inclusivamente o hábito de fumar após, e mesmo durante, as refeições, deixou de ser tolerada em alguns estabelecimentos, pelo que, naturalmente, me passo a restringir aos que ainda me permitem manter os meus hábitos. Os factos são estes, e o resto é novela. Mas, as novelas são giras.

A Vânia sugeriu, na amenidade de uma conversa quase fraternal, que não iriam sentir de forma alguma a minha falta, o que me parece razoavelmente lógico. Estamos só a falar de negócios, porque, ali dentro, um cliente vale tanto dinheiro como qualquer outro, e amigos é coisa que podemos continuar a ser em qualquer lado. E isso não vai mudar. A Nicole, pelo seu lado, disse-me taxativamente que ficava muito contente por se ver livre de mim. O que só prova que, aconteça o que acontecer, há sempre alguém que fica feliz. Neste caso, calhou ser a Nicole. Eu, pelo meu lado, fico mais descansado.

2 comentários:

Abobrinha disse...

Nuno

Que se passa? Vais fechar o estabelecimento? Não pode ser! Nem que se faça uma colecta para dotá-lo de ventilação adequada à prática nojenta e altamente nociva de fumar (mas eu voto numa consulta de desabituação tabágica).

Ora esclarece lá isso devidamente! E faz o favor de voltar a escrever aqui (e no meu estabelecimento, quando der jeito e inspiração).

Anónimo disse...

Um beijinho de saudade para os fumadores da mesa 19... (Vânia)