4.02.2007

81 – Defecção.

O mundo roda, e retorna,
Sempre, ao ponto de partida.
Assim a mulher encorna
O homem, se é mulher perdida.

- Das “Crónicas Mirabolantes de Relim-Chim-Chim,”, antigo profeta sumério que eu acabei de inventar.

Não sabemos ainda tudo sobre a origem do universo, mas alguma coisa vamos sabendo. A tese comumente aceite, nos nossos dias, é a de que o universo terá surgido na sequência de algo a que se chamou o “Big Bang”, ou “Ganda Estoiro”, vindo desde aí a expandir-se. O seu futuro, no entanto, permanece uma incógnita, cuja resolução depende da real quantidade de matéria existente. Se a massa dessa matéria estiver abaixo de um determinado limiar, não bastará para deter a expansão do universo, que irá gradualmente perdendo energia, e morrendo. Se, pelo contrário, essa massa for suficiente, chegará um momento em que será capaz de travar a actual expansão, e iniciará uma contracção cada vez mais acelerada, que nos levará de novo ao primordial ovo cósmico, e a novo “Big Bang”. É a teoria do universo iô-iô.

(O escritor Douglas Adams, pelo seu lado, conta-nos que uma estranha raça, algures nos confins da galáxia, acredita que o universo foi espirrado por um ser chamado “Grande Confiscação Verde”. São uns indivíduos peludos e amorosos, com mais de cinquenta braços, sendo portanto a única raça da história a ter inventado o desodorizante antes da roda. Esta teoria, contudo, não está muito disseminada no nosso planeta).

Sabemos igualmente pouco sobre as origens da mesa 19, e muito do que se sabe é vago e impreciso, para já não dizer apócrifo. Quanto ao futuro, pelo contrário, sabemos muitíssimo mais. Aqui, é a história que acorre, pressurosa, a mostrar-nos as inúmeras vezes em que aquela mesa se fez e desfez, agora reduzida a um modesto núcleo, logo expandida pela sala inteira. Trata-se de um processo normal, e é no meio da normalidade de um desses processos que neste momento estamos, agora que ocorreu um cisma.

O ponto de fé na origem da ruptura foi o seguinte, a asserção que num restaurante se deve, entre outras coisas, comer bem. Ora, não serei eu quem negue tal axioma, mas continuo a manter que isso não é tudo. No entanto, alguns disseram que não, que urgia descobrir outro reduto. Deram então com um restaurante, que proclamaram templo gastronómico, encómio que se veio depois a revelar algo exagerado. É claro que este estabelecimento bate aos pontos o nosso restaurante habitual, mas isso, convenhamos, não é muito difícil. Servir refeições comestíveis, por exemplo, é já meio jogo ganho, e o resto é uma questão de templos.

Eu sou sensível a estas questões, como é evidente. Tenho sempre tentado, pacientemente, reconduzir o pessoal do nosso restaurante, essas ovelhas tresmalhadas, ao redil das boas práticas culinárias, partilhando alguns lampejos da arte de Pantagruel que emanam do senso comum, e que são pertença de todos, menos, pelos vistos, da cozinheira de lá. Mesmo agora, faço daqui um apelo, em relação ao bacalhau com natas. Já conseguiram dominar a técnica do molho, que é o que distingue o verdadeiro artista (não é o Serafim Saudade, é o da culinária). Para produzir algo que justifique o trabalho de o colocar num prato, algo digno de ser servido ao cliente, algo que não esteja, enfim, incurso em sanções previstas no código penal, basta agora, simplesmente, fritarem as batatas em condições, antes de as juntar ao preparado. Quero dizer, será assim tão difícil, chiça? Que diabo, os fritos já eram conhecidos em Portugal no tempo de D. Afonso Henriques (é certo que, nesses tempos, se fritavam sobretudo os muçulmanos que subiam às muralhas, mas o princípio é o mesmo, caramba).

Por estas e por outras, a mesa 19 entrou em contracção, e vê-se de novo reduzida a um núcleo primordial. Os outros, les compéres du beaux temps, que abandonam o convés quando a chuva começa, vão gastando as horas do almoço a dedilhar serenatas sob as varandas de outras Julietas. Almocei lá um destes dias, no tal sítio, e voltei a ouvir a apreciação habitual, “Isto hoje não esteve lá grande coisa, mas, de um modo geral…”. Ora, batatas! De um modo geral? De um modo geral, o testículo esquerdo do meu avô não era verde, mas as gaivotas também não, e isso não prova nada. Este comentário é um pouco cabalístico, mas vocês percebem aonde eu quero chegar: aquilo é só outro restaurante, e pronto.

Como qualquer restaurante, tem pratos bons e maus. O nosso também. É mais comum terem bons pratos? Pois claro que é, mas isso é normal na maior parte dos restaurantes (o nosso, como já se viu, é uma orgulhosa excepção). Agora, que se enfiam lá barretes, ah, isso enfiam.

O nosso restaurante tem pouco que o recomende, em termos de comida. Mas tem algo que nenhum restaurante tem, em todo o mundo, tem a mesa 19. Quando digo isto, refiro-me à mesa 19 completa, com mesa e pratos, e Vânia e Marta e Lana, e nós a fazermos barulho, e a atirarmos bolinhas de papel, enquanto dizemos coisas sérias com ar estúpido, e coisas estúpidas com ar sério. Alguns amantes da boa conversa fartaram-se da tertúlia, ou então não se fartaram, mas trocaram-na por uma ração melhorada? Tudo bem, lá nos encontraremos, de vez em quando. E continuaremos amigos, como sempre.

O resto é irrelevante. Até eu atraiçoo, esporadicamente, tal como outros o fazem a título permanente. Não é uma questão ideológica, mas apenas de comezaina. E a boa comida, como bem se sabe, não tem nada que ver com a mesa 19.

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