4.23.2007

83 – O problema já vem de trás.

Muitos se têm interrogado sobre a recente estagnação que se tem verificado neste espaço público. Na realidade, isso deve-se ao facto de o autor se encontrar imerso num transe de meditação catatónico, provocado pela súbita constatação de que as joaninhas são muito mais felizes do que ele, e raramente pagam impostos. Este infeliz estado de coisas irá provavelmente prolongar-se até a Santa Casa da Misericórdia lhe atribuir um cheque de valor avultado, ou o Sr. Jean-Marie Le Pen decidir edificar uma sinagoga em Paris. Por essa razão, resolvemos convidar um fidalgo espanhol quinhentista, Don Cuerno-Ybérico Y Contente, grande frequentador da corte de Isabel, a Católica, para escrever a próxima crónica da mesa 19. Uma surdez profunda e persistente, talvez devida ao facto de estar morto há tanto tempo, levou-o contudo a perceber “Cristóvão Colombo”, em vez de “Mesa 19” (aquilo deve ser mais uma mania, porque, quando lhe disse para tirar o dedo de dentro do meu copo, ele também percebeu “Cristóvão Colombo”). Esta crónica nada tem, portanto, a ver com a nossa mesa. Mas também é interessante.

Hola, hombres. Se bem compreendi, coisa que não garanto, querem que vos fale do marinheiro genovês que virou do avesso a corte de Espanha. Mencionaram também algo que eu não percebi, assim um qualquer-coisa-qualquer-coisa-19, mas isso deve ser confusão vossa. Colombo, se bem me recordo, tinha bem mais de 19 anos, quando eu o conheci. Mas era o querubim da nossa rainha Isabel, lá isso era. A um tal ponto que, depois da sua memorável viagem pelos mares ignotos do ocidente, a soberana chamou o principal conselheiro do trono, para lhe recomendar que aumentassem o financiamento atribuído ao italiano. E foi aqui, justamente, que as coisas se começaram a complicar. Mas, eu conto-vos como foi.

O conselheiro curvou-se em profunda vénia às reais majestades, e escutou em respeitoso silêncio as suas instruções. Estando tudo dito, o nobre pigarreou discretamente, e contrapôs, em tom baixo mas firme, Perdoe-me vossa majestade, mas receio que isso não seja uma ideia sensata. Tudo o que temos vindo a saber sobre o almirante genovês levanta enormes questões. A um tal ponto, devo dizê-lo, que já não há sequer a certeza de que ele seja mesmo almirante.

- Não é almirante? Que disparate! Ele disse-me que era almirante. Aliás, disse à corte toda que era almirante, não há quem não o tenha ouvido.
- Bem sei que o disse, majestade, mas os factos não parecem comprovar tal asserção. A realidade, aparentemente, é que ele é apenas um dos filhos de um humilde tecelão de Génova.
- Bem, mas pode sempre ser o filho de um tecelão, e ter-se formado em marinhagem.
- Pode, evidentemente, mas também isso é problemático. Ele afirma, com efeito, ter feito os seus estudos na Universidade de Nápoles, Itália, mas há inconsistências. Para já, não se percebe por que razão iria um genovês estudar para Nápoles, tendo melhores escolas na sua cidade. Depois, tenho-me correspondido com mestres dessa instituição, que me garantem não conhecer qualquer Colombo, embora a sua passagem por aqueles claustros seja atestada por manuscritos que apareceram subitamente, com datas contraditórias, e, estranhamente, assinados pelo Doge de Veneza.
- Um pouco estranho, de facto. Mas enfim, tudo isso há-de ter uma explicação. De resto, suponho que essa Universidade de Nápoles, Itália, seja um sólido e reputado estabelecimento de ensino?
- Saberá vossa majestade que não. Os marinheiros que tem formado foram, até hoje, responsáveis pelo afundamento de mais navios do que todas as esquadras turcas que navegam os sete mares, com a agravante de se tratar sempre do seu próprio navio. Nem é seguro que a escola tenha um grande futuro, pois consta que estão a ser investigados por sua santidade, o Papa, em relação a diversas acusações de heresia. Diz-se, inclusivamente, que levam a impiedade ao ponto de nem sequer observar o Domingo.

- Essas são, de facto, notícias preocupantes. Eu acolhi-o, na minha boa-fé, quando ele veio ter connosco…
- Perdoe vossa majestade, mas ele só veio ter connosco mais tarde. Inicialmente, dirigiu-se à corte de Portugal, quem sabe se por ficar mais perto do mar. Tentou então vender os seus serviços a D. João II, mas parece que a tal universidade não é acreditada naquele reino, pelo que o puseram, desculpe vossa majestade a expressão, com dono. Depois, sim, veio para cá.
- Bem, mas temos de ver que as habilitações de um homem não são realmente o mais importante. Fará mesmo diferença, se ele é ou não almirante?
- Talvez não, majestade, mas o facto é que ele disse que era almirante. Note que, se um helvécio, louro e de olhos azuis, afirmar que é marroquino, e depois conseguir ferrar duzentos cavalos de enfiada, isso fará dele um excelente ferrador, mas decerto um mau mentiroso.
- No entanto, o que conta não é o homem, mas as suas realizações. Afinal de contas, não se pode negar que este Colombo, seja lá ele o que for, conseguiu descobrir a Índia.
- Lamento, majestade, mas não descobriu. Aquilo que ele afirmou ser a Índia não passa de uma terra selvagem e coberta de árvores, sem qualquer préstimo conhecido. A promessa de descobrir a Índia é mais uma das que ele fez, mas não há registo de uma única que tenha cumprido. Com franqueza, aconselho vossas majestades a verem-se livres do indivíduo.

Foi aqui que o rei se meteu na conversa, dizendo, com um sobrolho pensativo, Não podemos fazer isso. Depois de tudo o que dissemos dele, o que iriam as pessoas pensar? Não, o melhor é deixar andar, e fingir que não se passa nada.
- Mas, majestade, está seguro de que isso será uma boa ideia? Deseja realmente que um tal indivíduo fique para sempre ligado à lenda e glória do reino de Castela? Um troca-tintas, que atirou a Espanha para uma aventura despropositada no meio do Atlântico, enquanto o próprio reino de Portugal já chegou às Índias, e pelo caminho correcto?
- Meu caro amigo, tens-nos servido fielmente e bem, mas deves aprender que, em política, é por vezes necessário fazer a gestão das situações, e a contenção de danos. Para já, a nossa atitude é esta: não sabemos de nada, e, caso alguma coisa seja falada, dizemos que se trata apenas de mentiras e conspirações. Depois, é tudo uma questão de esperar pelos portugueses.

- Pelos portugueses?
- Sim. Se bem os conheço, mais dia, menos dia, vai aparecer algum a clamar que Colombo não era italiano, mas sim português. Aqueles tipos gostam de glória, como toda a gente, mas têm um jeito inacreditável para fazer sempre as escolhas erradas. Quando eles vierem com essa conversa, a gente finge que resiste, depois vai cedendo, e acaba por deixá-los com a batata quente na mão. E, o que é mais, muito felizes com isso.

- Vossa majestade pensa realmente que isso dará resultado? E o que acontecerá depois, quando eles perceberem que foram enganados?
- Não se preocupe, tudo o que eles vão fazer é dizer as coisas do costume: que não é bem assim, que nada está provado, que é tudo uma cabala. O rei virá a público, garantindo que o assunto, em todo o caso, não tem qualquer importância. Vozes indignadas gritarão que as acusações são mesquinhas, o importante são as realizações do homem, se bem que ele, como bem apontou, não tenha realizações nenhumas. Não sei em que ponto da história tal se dará, mas espero que não seja em breve. É que os gajos, se o apanham ainda vivo, são bem capazes de fazer dele primeiro-ministro.

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