7.11.2006

16 – Dispersão.

Nesse dia de fins de Junho, fomos só dois à mesa, o Rui Cardoso e eu. Houve ainda duas chegadas tardias, um que almoçava à pressa no intervalo de uma reunião, outro que só vinha para um rápido whisky, nada, em suma, que alterasse fundamentalmente a estatística. O facto é que éramos só dois, nessa segunda-feira que se ia encostando a Julho como uma rameira barata a um bêbado endinheirado. Senti que o facto merecia que dele se tirasse uma qualquer ilação, e lembrei-me então das férias de Verão, esse grande disruptor das sociedades que sofrem o acaso de não serem tropicais, como, para dar um exemplo inteiramente aleatório, a nossa.

Se alguém porventura cuida que exagero, rogo-lhe apenas que atente nas grandes datas, que são outros tantos marcos miliários no lento processo em que se forjou a nossa nação. Já no século XVII, é no início de Dezembro que expulsamos o espanhol; faz-se depois a república em Outubro, o estado novo num temeroso fim de Maio (em que por certo chovia, ou a coisa não tinha ido lá); enfeitam-se de cravos as metralhadoras num arriscado Abril, contingência que não foi possível evitar, tendo falhado a muito mais sensata tentativa de derrubar o governo em Março; há ainda quem se oponha ao novo regime, mas, não tendo podido organizar as coisas antes do Verão seguinte, opta por lançar a intentona em Novembro. Falhou, o que não deixa de ser estranho, vindo de um povo que tem invariável sucesso em tudo quanto organiza, excepto quando calha ser Verão.

Não nos iludamos, há em tudo isto um claro padrão. Tivessem os rebeldes de mil seiscentos e quarenta cedido à ideia precipitada de restaurar a independência em Agosto, e teriam por certo recebido de um cortês mordomo esta informação, que lamentava muito, mas o senhor Miguel de Vasconcelos encontrava-se a banhos no Estoril, iria depois tomar os ares de Setembro à Serra de Sintra, não quereriam os senhores voltar em Outubro? Os conjurados teriam então confabulado, se a data servia a todos, ou se trazia incómodos, até que um mais pragmático terá declarado, Nada, voltamos mas é em Dezembro, que ele há-de estar em casa, Mas não muito tarde, ou mete-se de permeio o Natal, Bem cedo, tornou o primeiro, vimos logo no dia um. Até fica uma data com estilo, agora que penso nisso, Primeiro de Dezembro.

Idênticas razões presidiram ao 28 de Maio, data que fora rejeitada por todos os grandes estrategas da época, sendo estes depois forçados a aceitá-la, contudo, ema vez que a maioria dos homens fortes do novo regime tinha já apartamentos reservados no Algarve para o mês de Junho. Assim foi também o 25 de Abril, bizarra insistência no tema derrotado um mês antes, mas que se impôs aos generais como um indiscutível desígnio nacional, visto que se aproximava a largos passos a época dos gelados em São Martinho do Porto. Pareceu então que o país ficava em paz, uma paz agitada, era certo, mas ninguém receava grandes violências. O 25 de Novembro tentou desmentir tal coisa, mas gorou-se. Há todavia, hoje em dia, a certeza histórica de que um 25 de Agosto teria apanhado o novel regime militar, literalmente, com as calças na mão. Só por uma razão se deixou de dar este bem sucedido golpe, é que os rebeldes, em Agosto, também estavam a banhos.

Num tal contexto, ninguém esperaria realmente que a mesa 19 se eximisse de tão nacional síndrome. Dos que faltaram no dia em que falamos, um entrara já de férias, outros andavam a treinar para as suas, todos intentavam partir. Até o humilde cronista sonhava já com três lânguidas semanas, entretanto começadas, de onde teria a oportunidade de escrever estas crónicas num jardim ensolarado, como é o caso desta. Voltarei em breve, mas será sempre de esperar uma nítida dispersão da mesa 19, maleita psicossomática a requerer uma boa dose de Outubro, em devido tempo. Até lá, façam todos o favor de ter umas boas férias.

2 comentários:

Leo disse...

E aqui a "je", que nunca marca férias em Agosto, tem que se aguentar a ver todos partirem, sonhando com o fim de Setembro. Talvez afinal, seja dada ao masoquismo... Mas definitivamente, também aprecio a calma de Lisboa em Agosto e não acompanhar as multidões, quando isso é possível.

Boas férias e boas crónicas!

Gostei particularmente desta. Acho que dava um óptimo artigo de jornal. É absolutamente pertinente e retrata com muito bom humor a nossa realidade.

Anónimo disse...

Concordo inteiramente com o que diz a Leo. Subscrevo! Esta tua teoria é fabulosa :) Um beijo verde e azul :)