7.11.2006

17 – O convidado ausente.

Tanto quanto me recordo, o João da Ega nunca almoçou connosco na mesa 19. Não poderei decerto jurá-lo, pois a outrora fiel memória vai já claudicando ao peso do anno domini, mas estou razoavelmente seguro de que não me teria esquecido, caso o facto se tivesse dado. Argumentam alguns, mais prosaicos, que tal coisa não pode obviamente ter ocorrido, sob razão de ser o Ega, simplesmente, uma personagem saída da ubérrima pena queirosiana. Dou ao desprezo o argumento espúrio e falacioso, toda a gente sabe que as personagens de Eça, maximamente o João da Ega, comem e bebem como toda a gente, realidade que as (muitas) páginas d’Os Maias abundantemente provam. Nada, ele podia perfeitamente ter passado por lá, apenas não calhou. Talvez o tenha mesmo tentado, quem sabe se não tomou uma destas manhãs a caleche do Torto, batedor de confiança, e, ajustando o monóculo na cana do nariz, mandou com impaciência bater para Leião, “e a trote, Torto amigo, que o almocinho não espera!”. Mas o pobre Torto sabia tanto ir dar a Leião como à Patagónia, Leião, no tempo dele, era apenas mais um matagal cerrado e temeroso, de onde a espaços surdiam javalis. Acabaram ambos, cocheiro e passageiro, por ir comer o coelho frito à Porcalhota, garfadas entremeadas com o espanto de lhe chamarem agora Amadora. E quem perdeu com o desvio deles fomos nós.

Sou, confesso-o sem orgulho, mas também sem pejo ou vergonha, um queirosiano indefectível, devoto, até. Conheço bem que há correntes contrárias, ainda há pouco o excelente cronista Pedro Mexia, senhor de um estilo lapidar, de um poder de comunicação fantástico, e do meu maior respeito, ainda há tempos, dizia, denegria ele a visão pessimista e demolidora de Eça, a forma como o escritor reduz a nossa portugalidade a uma choldra, ipsis verbis. Compreendo a opinião, e respeito-a, mas acontece que penso de outra maneira. Julgo que Eça considerava tudo isto uma choldra por uma razão bem simples, que era o facto de isto tudo ser, de facto, uma choldra. Creio sinceramente, com a melhor boa-fé, que Eça se mantém actual, e por uma razão bem triste, que é o facto de isto tudo continuar a ser, passe o termo, uma choldra. E se, para justificar este ponto de vista, fossemos agora solicitar o contributo do amável João da Ega, estou em que ele não hesitaria em apontar dez meninas das chamadas celebridades, por cada Raquel Cohen, mil médicos e advogados criminosamente incompetentes, corruptos e impunes, por cada Padre Amaro ou Negrão, dois mil políticos pusilânimes pelo Conde de Abranhos, seis mil altos funcionários da nação que se empertigam como o Gouvarinho, toda uma legião, enfim, de emproados émulos do saudoso Conselheiro Acácio. A sociedade, helás, não mudou tanto que deixe de se rever no retrato queirosiano. Apenas envelheceu e refinou, ao ponto de abundar hoje em novos canalhas, capazes de fazerem do Primo Basílio um malandreco traquinas, a pregar uma saborosa partida à prima.

Pergunta-me agora o paciente leitor, que resignadamente acompanhou esta diatribe, que coisa tem tudo isto a ver com a nossa mesa 19. Várias respostas se poderiam dar, mas uma há que se destaca, que é a palavra-chave, a palavra fetiche, “choldra”. A mesa 19 é muita coisa, é mesmo muitas coisas, e também, com frequência, o seu contrário, mas uma característica tem que sobressai: a mesa 19 é um núcleo de resistência contra a choldra. Eximo-me aqui da pequena mise-en-scéne, tão habitual nestes lances, em que o leitor me pergunta, Mas que choldra é essa, e eu tomo a deixa, e avanço com a resposta. E se me dispenso do canónico e venerando ritual, de utilidade tão consabida, é somente porque não me consigo forçar a pôr tal pergunta nos lábios do leitor, sob pena de lhe estar a chamar burro.

Entendamo-nos: que conceito formaria deus sobre Moisés, se lhe dissesse, “Sobe a essa montanha, que eu tenho ali umas tábuas da lei para te dar”, e o visse contemplar a planície em volta, o monte Sinai à sua frente, e perguntar intrigado, Que montanha? Que retrato guardaria a história sobre o capitão do Titanic, após o ver, do alto do convés, contemplar a massa granítica do iceberg assassino, apenas para inquirir o seu imediato, Disse que vamos chocar contra o quê? Nada disto me parece verosímil, assim como não consigo imaginar um comensal da mesa 19 a declarar solenemente que a sua vida quotidiana decorre pacatamente no melhor e mais bem organizado dos mundos. Sejamos por uma vez frontais, o país continua atolado na choldra que Eça diagnosticou, e miríades de organismos, dentro do corpo maior, acham-se infectados pela mesma doença. A patologia é conhecida, a choldra tende a gerar choldra, e em cascata. Uma empresa que, num país neste estado, não seja uma choldra, arrisca-se a ser prejudicada, sofrer revezes, tirar uma má nota. Enfim, corre o risco de se dar mal, como expressivamente dizem os brasileiros. E os brasileiros, nada de ilusões, percebem disto de choldra.

Foi de facto pena, não ter João da Ega conseguido almoçar connosco. Dava-nos jeito agora, para nos explicar, com a sua lucidez de Mefistófeles mal mascarado, que as empresas estão tão sólidas como a pátria que as aloja, que um patrão, como tantos há, capaz de distribuir incentivos como quem, distribuindo amendoins no zoo, desse um cartuxo ao saguim e uma vagem ao elefante, é patrão que sabe bem o que faz, a arraia é que não sabe entendê-lo. Discorreria ainda sobre outras aberrações, tantas que há, e tantas vezes discutidas, e sobre todas aporia a sua bênção, irónica e ligeiramente satânica. Depois, emborcaria a aguardente, não deixando de a declarar, “um veneno torpe”, ajeitaria o monóculo, e partiria na caleche do Torto, rumo a um mundo igualmente imbecil, se bem que menos complexo.

Não, tanto quanto me recordo, o João da Ega nunca almoçou na mesa 19. É pena, pois fazia lá falta.

2 comentários:

Anónimo disse...

Faria lá falta, talvez. Mas ainda bem que tu não faltas lá :) Um beijo grande e obrigada por me teres convidado a sentar à mesa. Estou aqui num cantinho, a saborear os pratos :) Beijo azul e verde.

Anónimo disse...

Isto promete. O nosso queiroziano começa a meter-se em terrenos difíceis...

Conde de Abranhos sem temperos, choldra à vista, Titanic comandado por um delfo alcoólico... Hum, hum!

Nunca percebi porquê certos conservadores eruditos e honestos se encontram no anti-capitalismo mais feroz! Os que estudaram os 'economy fundamentals' e perceberam, ainda vá que não vá! Mas não é de todo o caso do nosso Fo(n)zy. Daí a minha surpresa, e o cheiro a promessas. Para crentes, parece prova de que deuses escrevem por linhas tortas...

A actividade empresarial merece-me o maior respeito e consideração. Trata-se de desvrabar terreno desconhecido, evitar a repetição do mesmo. Chama-se ARRISCAR o pescoço! No mundo em que vivemos, de confubalações supranacionais, o RISCO é depositado no colo dos desgraçados dos contribuintes, que no tempo do Eça se chamavam cidadãos.

Em Portugal, todos os empresários falharam.