7.25.2006

18 – Silly Season.

Agora que o calor finalmente aperta, e um encalmado mês de Julho se prepara para ceder a vez ao tórrido Agosto, que arde já em ânsias de nos fazer suar as estopinhas, entrámos de pés ambos naquela que, nos meios jornalísticos e afins, se usa chamar a Silly Season. Nos telejornais, jornalistas que gostariam de estar de férias substituem, sem vantagem aparente, os jornalistas que estão efectivamente de férias, e vão-se galhardamente esforçando por inventar as notícias que não há. Rato que se atreva a morder um gato, ou velha que se lembre de completar cem anos, têm nesta altura honras de reportagem de abertura, e peça de vinte e dois minutos, com entrevistas e tudo.

E isto não se fica por aqui. Os telejornais são as vítimas óbvias, mas o síndroma, não há que iludi-lo, é um fenómeno colectivo, e de dimensão nacional. Por toda a parte se assiste a esta dispersão dos temas candentes, das questões marcantes, dos grandes problemas de fundo, estruturais, como se, de súbito, nada houvesse de mais grave do que uns quantos banhistas picados por peixe-aranha, ou o preço da amêijoa no mercado do Bolhão. É o tempo das lérias e dos nadas, das ninharias e minudências, das quezílias e questiúnculas, das merdices e caganitas. Os espíritos grandes são amavelmente convidados a pôr de parte essa grandeza, trocando voluntariamente o Vítor Hugo pelo Vítor Espadinha, o bom do Eça por um programa de vídeos domésticos, que se poderia hipoteticamente chamar “Ora Essa”, ou então, “Homessa”. A forte pintura do José Malhoa cede a vez ao erotismo de vão de escada da Ana Malhoa, e não espantará que venham ainda a substituir o Salvador Dali por um gajo qualquer, desde que seja daqui. Oxalá seja pelo menos salvador, como o outro, que bem andamos precisados de um.

Facilmente poderá o leitor astuto depreender que a nossa mesa, a mesa 19, sendo, como é, um organismo vivo, parte integrante da urdidura do tecido social, não poderia jamais eximir-se a este processo predatório e deletério, que insidiosamente permeia a realidade do momento. Isso mesmo constatei com mágoa no almoço de hoje, o meu primeiro após três semanas de abençoada contemplação do meu próprio umbigo (pensei inicialmente dedicar-me a um estilo de meditação mais radical, que consistiria em contemplar os meus pés, mas acontece que deixei de os ver, mais ou menos na época em que Portugal se sagrou vice-campeão europeu. Estou no entanto persuadido de que ainda andam por lá, algures no fim das minhas pernas).

Tal como eu, também o Zé Eduardo regressava de férias, enquanto os outros dois falavam em iniciar as suas, um em breve, outro um pouco mais tarde. Em resumo, aquilo não era uma mesa de almoço, era a sala de espera de um aeroporto, um daqueles antigos, onde partidas e chegadas se entrecruzavam num mesmo bufete, conversas de quem vinha a entrechocar-se com os ditos de quem ia, visões de paraíso tropical em conúbio promíscuo com sonhos de emigrante regressado a casa. Isto resultou na única conversa possível, a conversa digna da Silly Season.

Tentámos bravamente fugir ao anátema: falámos um pouco de futebol, alguma coisa da situação mundial, até – valha-nos Deus – se falou de trabalho, mas tudo sem efeito. A coisa, como diria o Zé, não levantava voo. Chamámos a Vânia, insultámos gratuitamente o emplastro, mas o resultado foi oco, pouco convincente. Parecíamos quatro tigres que, num número de circo, trucidam o domador que derrubaram, mas por mero dever de ofício, sem terem verdadeira fome, nem lhes sabendo bem.

E isto não se vai resolver tão cedo. Trata-se, no fundo, de um dilema miltoniano: os que regressaram choram o seu “Paradise Lost”, os que partirão sonham já com a obra posterior, o “Paradise Regained”. Vamos precisar de alguns dias para pormos o Milton de lado, e resignarmo-nos antes à sentença filosófica de Alexandre O’Neill: “Há mar e mar, há ir e voltar”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fantástico o teu espírito crítico e a forma como desenvolves na escrita aquilo que sentes. Tens toda a razão quanto ao jornalismo. Agosto é o mês de marasmo e qualquer coisinha dá manchete :) Um beijo muito azul, com pintalgadas do teu verde :)