4.04.2007

82 – A mesa paralela.

“… poderemos, por exemplo, imaginar um universo paralelo ao nosso, idêntico, mas subtilmente diferente. No entanto, mesmo um tal universo teria de manter algumas invariantes. Assim, por exemplo, teríamos um mundo onde a Madre Teresa de Calcutá fosse uma criminosa, Hitler um santo, e George Bush um imbecil”.

(extracto de um livro que planeio escrever, quando me passar aquela comichão irritante).


Achando-me um pouco saturado do conteúdo sério de algumas crónicas recentes, e do tom apalhaçado de algumas crónicas recentes (reparo agora, curiosamente, que foram precisamente as mesmas), lembrei-me de fazer hoje algo de diferente, como, por exemplo, um ensaio mais científico. Obviamente, a coisa terá de ser em ficção: primeiro, porque não me vou pôr aqui a escrever um tratado, como se percebesse realmente alguma coisa do assunto; segundo, porque só isso se quadraria a estas crónicas, todas elas fictícias, como facilmente se depreende pelas verdades que narram.

Portanto, ficção científica. Mas ficção científica da verdadeira, não da chamada “fricção centrífuga”, com homenzinhos verdes com estranhas armas azuis, que disparam raios vermelhos, provocando grandes explosões amarelas. Depois, trocam-se as cores todas, e faz-se o episódio dois, que se chama algo como “O filho da vingança do regresso do homem-santola ataca de novo”.

Nada, que isto não é lugar para fantochadas dessas. Eu sou mais pelo “Império dos Sentidos” do que pelo “Império contra-ataca”, e tendo a preferir a estrela do Norte à Estrela da Morte, e a pizza-hut ao Jaba-The-Hut. Um tema que me atrai, no entanto, é o espaço multi-dimensional. Segundo essa teoria, que já foi discutida em volta da mesa 19, o nosso espaço tridimensional, isto é, o universo tal como o conhecemos, é apenas um de uma infinidade de espaços, paralelos ao longo de um eixo que se estende numa quarta direcção, invisível para nós.

Sendo esses universos paralelos, é de esperar que alguns deles estejam muito perto de nós, nesse eixo, estando uma infinidade de outros extremamente distantes. Não é, portanto, descabido admitir que a semelhança entre mundos seja bastante grande de início, diminuindo depois com a distância. Assim, tomando um universo suficientemente próximo, podemos considerar invariantes alguns pontos, tais como, por exemplo, a mesa 19.

Teríamos então um mundo muito parecido com o nosso, ambos com a mesma mesa 19, e outros pontos subtilmente diferentes. A turma do Harry Potter, por exemplo, seria nesse mundo a turma de Walt Disney (a professora Sprout, nesse caso, seria a Clarabela). A Vânia seria uma respeitada traficante de cocaína, que se dedicaria secretamente ao estudo da psicologia, a fim de custear as lições de dança exótica num cabaret. A Lana seria ela própria, mas cabo-verdiana, e a Marta seria tal e qual como é, só que com mais penas. O Vítor poderia ser uma cadeira, ou a Serra da Estrela.

E os convivas da mesa 19? Bem, vistos daqui, não parecem apresentar grande diferença, se exceptuarmos o facto de o Paulo ter trocado o casaco de cabedal por um resguardo fofinho de cetim, com folhos malva. A exuberância do acessório não esconde, todavia, o facto impressionante de apresentar o cabelo penteado! O Constâncio substituiu a barba por um bigode fino, mefistofelicamente retorcido, e o Cardoso ostenta um brinco de ametista. Nada de confusões, trata-se de um simples brinco, que nenhum mal tem, e que, de resto, condiz perfeitamente com o colar de pérolas rosadas que traz ao pescoço, formando um contraste provocador com os óculos roxo-eléctrico do Carlos Santos. A cor parece aliás popular, visto que foi também a escolhida pelo Zé Eduardo para tingir a sua barba.

Decididamente, esta mesa paralela não me parece uma melhoria, em relação ao artigo actual. Preso de alguma ansiedade, perscruto a minha própria figura, mas constato com alívio que tudo parece estar bem. Continuo gordo, feio, de aspecto desmazelado, e só a delicadeza pouco usual que ponho num pontual arroto faz sentir alguma inquietação. Seja como for, pareço estar igual a mim próprio.

Discute-se à mesa, como na nossa dimensão usual, uma qualquer arbitrariedade ocorrida em ambiente laboral, e eis que, justamente, me preparo para falar. Tudo se queda, na expectativa de beneficiar da minha habitual verve, e eis que se ouve, “Pois, pá, os gajos, pois, não deviam ter razão, mas pois, se calhar até têm, prontos. Pode ser que sim, e pode ser que não, mas, prontos, que se lixe isso tudo, o que importa é que o glorioso ainda vai a tempo de ganhar a liga. Pois”.

O restaurante perde gradualmente os contornos, e acordo com a cara quase colada à chávena do café. Aliviado, concluo que, mesmo assim, prefiro esta mesa 19. Constato com mágoa que a Marta está outra vez vestida, mas, neste mundo, não se pode ter tudo. E prontos.

1 comentário:

Anónimo disse...

É pena não podermos viver em duas dimensões diferentes ao mesmo tempo, permitiria ter 2 vidas completamente diferentes, já que uma só não dá para tudo.
Aquele Beijo. Poker