9.13.2006

26 – O Perna-de-Pau.

Assim é a vida: fomos de férias, gozámos as férias. Nenhum de nós ganhou a lotaria, e não tivemos mais remédio do que voltar de férias, quando estas se acabaram. Agora já cá estamos todos. Contrariados, é certo, mas estamos.

Mas não estamos bem. Pelo contrário, a mesa 19 anda um bocado estropiada. O Rui Cardoso partiu o cóccix, antes das férias, e ainda faz lembrar um pouco um caranguejo, quando anda. Hoje, foi a minha vez. A meio da noite atirei-me da cama, por razões que prefiro não aprofundar, tendo magoado o cóccix, com uma lamentável falta de originalidade, e um artelho. Isso produziu-me um interessante coxear, em que alio o arrastar da pata ferida com divertidas caretas, provocadas pelas dores lancinantes que as lesões me causam. Não se pode portanto dizer que a nossa mesa, neste momento, venda saúde, mas lá iremos.

Tem almoçado connosco um outro Paulo, que não é Sousa, mas Mendes, vizinho e amigo de longa data do Rui Constâncio. Para além do prazer e boa disposição que naturalmente experimentamos, o convívio desse cordato exemplar da boa cepa alentejana traz-nos ainda a preciosa mais-valia de saber umas quantas histórias sobre o Rui, dessas que os colegas não chegam geralmente a ouvir. Hoje, por exemplo, contou-nos o hábito que o Taliban tem de, a meio de uma refeição prolongada, interromper a dita para fumar alguns cigarros, e comer um gelado, de preferência um Perna-de-Pau. Terei ouvido bem? Sim, é isso mesmo, um Perna-de-Pau.

Pareceu-me na altura genial, a ideia de alguém suspender um pernil fumado, ou pousar umas patas de sapateira, para se pôr a chupar um gelado de natas, chocolate e doce de morango, findo o qual retoma os seus couratos ou percebes. Interessante, também, o convívio promíscuo dos cigarros com o chocolate, a sugerir um conflito de infância mal resolvido, qualquer coisa oral, certamente. Brinquei um pouco com a ideia de lhe mudar a alcunha, de Taliban para Perna-de-Pau, mas compreendi depois, com um choque, que o tiro seria mal dirigido: no estado em que tenho a pata, o Perna-de-Pau sou eu!

Meditei sobre o assunto, e a verdade surgiu-me, finalmente, não de chofre, mas suavemente, como uma imagem mal entrevista que se vai gradualmente focando, ganhando nitidez, até que reconhecemos que se trata da Lili Caneças, o que significa que voltámos a comprar a Lux em vez da Playboy, malditos óculos que ficaram em casa! A verdade que me atingiu nesse momento foi a seguinte: eu não sou um compére da mesa 19, um ser humano com família e responsabilidades, um profissional sério e qualificado. Não, eu sou, muito simplesmente, um gelado!

Revi os factos no meu espírito, mas não parece existir qualquer dúvida. Para além da minha actual condição de Perna-de-Pau, o meu volume barrigudo qualifica-me para um Super-Maxi (parece mesmo uma expressão inventada para me descrever), ou então um Magnum. Quando me excedo nas bacoradas que digo, o que só acontece quando falo, as pessoas tendem a exclamar, Epá, com ar reprovador. Sou, além disso, casado, pelo que nada me garante que não seja um Corneto. Não há volta a dar-lhe, eu sou um gelado da Olá.

Isso explica muita coisa. Compreendo agora por que razão tantas mulheres me dizem que não sou bonito, mas sou doce e agradável. Contam-me que tenho uma alma pura e alva (é tudo baunilha), mas depois acabam comigo num instante. Deve ser para não derreter. Só tenho pena de ser, aparentemente, um gelado de chocolate, dos que se comem à dentada. Preferia ser um dos velhos sorvetes de neve, que era preciso chupar. Mesmo assim, com a sorte que eu tenho, elas eram capazes de passar a preferir couratos, ou patas de sapateira.

Percebo também, evidentemente, por que razão ninguém me respeita. De facto, pode-se gostar ou não de um gelado, pode-se ansiar por ele numa tarde quente de Verão, ou evitá-lo porque se está a fazer dieta, mas não é costume respeitá-lo. Ninguém se dirige ao congelador para cumprimentar os seus gelados, quando chega a casa. Ninguém diz aos seus convidados, depois de lhes apresentar os miúdos e a sogra, Vamos agora à cozinha, quero que conheçam os meus gelados.

A minha sorte é que isto dá para os dois lados. Vão ver todos, quando a próxima conta chegar à mesa 19. Estão à espera de quê, que eu tenha dinheiro comigo? Tenham juízo! Eu sou só um gelado…

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