9.29.2006

28 – Monólogos com a nossa psicóloga.

Esta crónica, é preciso que se diga desde já, não é uma crónica como outra qualquer. Não quero cair em exageros, mas julgo não errar se disser que esta é uma crónica merecedora de um olhar escalpelizante, capaz de abrir caminho através da realidade que transversalmente se oculta sob a metáfora epidérmica das palavras. Dito isto, deste modo oblíquo, já todos compreenderam que vamos falar sobre esse expoente das ciências psicológicas, a deusa ex machina da mesa 19, a nossa Vânia. Palmas, por favor, que ela merece.

Já, desde os longínquos primórdios destas crónicas, ficou devidamente exarado em auto que aquelas três meninas, a Vânia, a Marta e a Lana, são três queridas, mas faltou explicar que o são, todas elas, de maneiras completamente diferentes. A Lana é o arquétipo da digna reserva eslava, raça tranquilamente superior. A Marta é uma miúda alegre e brincalhona, que deu ultimamente em pintar-se, e pentear-se, como se fosse o resultado de um cruzamento entre a noiva de Drácula, e a deusa egípcia do bacalhau com couves (aqueles egípcios tinham deuses para tudo, é um facto sabido). Mas aquilo fica-lhe bem, e é mesmo uma refrescante pincelada de cor na aridez do nosso dia-a-dia. A Vânia… bem, a Vânia é a Vânia, sempre igual a si própria. Já disse aqui, e repito, que ela tem o encanto de uma jovem que usa a alma por fora, e não por dentro. Posso ainda acrescentar isto, ela é um coelhinho, branco e fofo como uma nuvem.

Falta agora saber isto, que coisa queremos dizer, quando dizemos que alguém é um coelhinho, mormente se trabalha esse alguém num restaurante, onde é mais provável ver surdir o láparo da própria ementa, do que da pessoa que nos traz a dita. Vem aqui a propósito contar uma história que se passou com o Pilindrau, velho companheiro de muitas guerras. Pilindrau era o nome dele, Bojardas Pilindrau, mas toda a gente o tratava pela alcunha que lhe ficara de infância, Dr. Osório Teixeira. O Dr. Teixeira, passe a familiaridade, era dono de dois coelhos de estimação, por quem nutria o maior carinho. Por essa razão, evitava sempre comer coelho.

Mas houve um dia em que, almoçando num restaurante onde jamais havia entrado, se viu assediado pelo empregado, que lhe inculcava o coelho em vinha-d’alhos, afamada especialidade da casa. Ora bem, pensou o Osório, isto pode ser mesmo coelho, mas pode também ser gato. Fará isso alguma diferença? Julgo que não, pois o gato mais não é do que a negação do coelho que poderia ter sido. O mesmo raciocínio, aliás, se aplica ao porco e à vaca, embora esses casos requeressem já um coelho descomunalmente desenvolvido. Vistas as coisas por este prisma, degustar um tournedó Rossini não é muito diferente de comer o meu Totó. Isto concluído, o bom Osório retirou-se do restaurante, e foi almoçar um coelho à caçadora na tasca em frente, que era de confiança, o que lhe dava a certeza de ser mesmo coelho aquilo que comia.

Desculpem-me a divagação, mas eu achei que era importante contar isto. Como se infere claramente desta pequena história, o problema da mesa 19 é que a Vânia está diferente. Não direi que está mudada, isso não, ela continua igual a si própria, mas está diferente, pelo menos connosco. Tem repentes de aspereza, momentos de enfadamento, ocasiões inteiras, em que vemos primar pela ausência aquele carinho que nos aquecia a alma. É certo que é a mesma Vânia que ali está, nós é que não somos mais os mesmos, para ela, pelo menos. E daí, quem sabe se será de facto a mesma Vânia que ali está? Quem, entre nós, saberá contar os mil espíritos que espreitam pelos mesmos olhos de mulher? Eis o dilema, a Vânia é outra, ou deixou apenas de gostar de nós?

O tema é momentoso, e não se me daria dispor de melhor cabeça para me orientar. O ideal seria ter, aqui à mão, pronto a ser folheado como um livro, o meu velho amigo, Bojardas Pilindrau. Mas não, sejamos democráticos, como convém a fraternos amigos de longa data, e chamemos-lhe Dr. Osório Teixeira. O Osório, poucos haverá que não o saibam, foi um nobre e denodado lutador anti-fascista, ao longo de muitas décadas. Não deixou todavia, de longe a longe, de assumir algumas atitudes de um colaboracionismo canalha. Era um pulha, em resumo, um esbirro às ordens do regime, indo mesmo ao ponto de, nos anos do último estertor do Estado Novo, fazer afixar a sua própria efige em duas salas de aula do país, entre o boneco do presidente da república, Américo Thomaz, e o retrato do presidente do concelho de ministros, Marcelo Caetano. Em suma, um palhaço, com toda a firmeza moral de um molho de espargos, nem sei por que razão estamos agora a perder tempo com essa esponja avinagrada, sei lá o que me deu para o ter mencionado…

Enfim, espero que isto tenha ajudado a esclarecer a questão. É contudo impossível dar o assunto por arrumado, sem mencionar aquilo que já foi dito lá na mesa 19, a Vânia está a amadurecer. Perguntámos-lhe se era isso, claro, e ela imediatamente negou, com tal maturidade, que vimos logo que era verdade. Fez-me de pronto lembrar aquela vez em que estávamos todos a almoçar, e entrou o Paulo, vestido de santola, com o seu castor debaixo do braço. Viu-se depois que não era um castor, mas apenas o Bojardas Pilindrau, usando uma vasta pele de urso. Mal se sentaram ambos, a Vânia trouxe-lhes a conta, e um grande livro de reclamações, ficando assim o assunto inteiramente explicado.

Ia agora contar uma história que isto me fez lembrar, mas já não tenho tempo de a contar. Isto de não ter tempo faz-me também lembrar outra história… mas adiante, o importante é que mantenham viva a boa luta, e que permaneçam do lado certo das barricadas, como eu sempre fiz. Se soubermos permanecer unidos, o fascismo será derrotado. Sem mais, despeço-me, cordialmente,

A bem da Nação,

Baptista Coelho.

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