10.03.2006

29 – Muito barulho por nada.

Não desejo que o amável leitor, que muito estimo e prezo, se precipite a extrair alguma falsa conclusão, baseando-se no facto de, para titular esta crónica, termos ido roubar ao Bardo Imortal o seu célebre “Much ado about nothing”. Não se depreenda daí, encarecidamente vos rogo, que se pretende nesta crónica dissecar a vida e obra de William Shakespeare. Não, senhores, não é disso que se trata.

Serve esta crónica, muito simplesmente, para falar de barulho. Termo vasto, esta palavra “barulho”, étimo a requerer mais rigorosa circunscrição, definição tão precisa quanto nos seja possível alcançar. O que vem a ser, afinal, essa coisa a que se chama barulho? O barulho é evidentemente um ruído, mas não há nenhuma sinfonia de Beethoven que não seja, também, uma série de ruídos e ninguém consideraria tais obras como barulho. Por outro lado, as patinhas do pequeno rato que passa pela mesa 19 fazem algum ruído, mas é usual dizer-se, Tão silencioso como um rato, o que significa que os passos do ratinho não constituem barulho. De resto, não há ratos naquele restaurante (tenho de dizer isto – está no meu contrato). O que é, então, o barulho?

Ora bem, partindo dos dois exemplos dados, vê-se que o primeiro tipo de ruído não constitui barulho, por ser um ruído agradável, enquanto o segundo se exime da aviltante classificação, por ser um ruído de baixo volume. Um ruído até inexistente, no nosso caso, já que não existem ratos naquele restaurante (desculpem lá o mau jeito, mas tenho de mencionar isto pelo menos três vezes). Daqui se depreende, julgo eu, que o barulho é muito simplesmente um ruído alto e desagradável. Estando tal assente e compreendido, pergunta o amável leitor, com alguma pertinência, de que raio lhe serviu ter ficado a saber disto?

O que trouxe este assunto à colação foi um pequeno mas significativo episódio, ocorrido aqui há uns dias. Estando nós invulgarmente silenciosos, talvez devido à gana com que atacávamos os nossos pratos, aconteceu repararmos num grupo que, numa mesa ao fundo da sala, fazia uma chinfrineira do catorze. Os ditos boçais eram gritados, para assim se sobreporem às gargalhadas soezes e despropositadas, e a combinação de sons discordantes, amplificada pelas paredes forradas a azulejo, tudo isto resultava num pasqueiro maior do que aquele que o Vasco da Gama teve de gramar, quando resolveu surpreender os indianos, aparecendo-lhes à sorrelfa por via marítima. Conseguem imaginar a algazarra de um bazar indiano às 10 da manhã? Pois bem, isto era três vezes pior.

Naturalmente que, de uma forma digna mas firme, participámos à Vânia o nosso desagrado, ante aquela sala de refeições transfigurada em Carnaval descabido e fora de calendário. Imagine-se o pasmo que nos acometeu, ante a inusitada informação de que os participantes daquela mesa costumavam justamente queixar-se do barulho feito por nós, pela mesa 19! A explicação óbvia, a de se tratar simplesmente de um grupo de dementes, ficou algo comprometida quando, no dia seguinte, a Vânia elaborou um pouco melhor o tema, explicando que todas as mesas habituais daquela sala, todas, repito, sentiam ter razões para se queixar de nós, que pela sua óptica leprosa seríamos, é com um sorriso que o escrevo, os barulhentos. Enfin, c’est un peu trôp fort, n’est ce pás?

Distingamos, como fazia o fidalgo da torre dos Ramires: qualquer rapport concebível entre os comentários cultos, refinados, eivados de intelecto e polvilhados de filosofia quantum satis, que lançam o seu distinto perfume sobre a mesa 19, e as alarvidades que em nosso redor vão sendo bolçadas, é tão acidental como a fortuita semelhança entre uma nota modulada pelo imortal Caruso, e um hipopótamo que por acaso larga um peido. O nosso riso é a justa recompensa de subtis ditos de espírito, nas outras mesas há quem ria só para não ter de meter os dedos à garganta. Caramba, senhores, haja o sentido das proporções, com mil diabos!

De resto, nós somos superiores a esses incidentes de pequena monta, e continuamos a patrocinar irrestritamente o estabelecimento. Introduzimos recentemente uma melhoria, que consiste em cantar os nossos pedidos, em coro, segundo as linhas melódicas da melhor música clássica. Digam-me lá, a sério, em que outro sítio se pode ouvir toda uma mesa entoar, “Traz o vinho! Traz o vinho! Traz o vinho”, num retumbante crescendo wagneriano? A Vânia, aliás, parece apreciar muitíssimo esta nossa inovação. A prova disso é que, mal começamos a cantar, ela corre a satisfazer o nosso pedido, fazendo sinais de que já ouviu. É sempre bom contribuir para alegrar o dia de alguém.

Falta apenas dizer, para quem não tenha percebido ainda, que não há ratos naquele restaurante (vou passar a ler melhor os meus contratos, palavra de honra que vou). Repito, nem um rato! Fugiram todos! Parece que gostavam bastante do sítio, mas não se davam bem com o barulho…

1 comentário:

Anónimo disse...

Ainda não tinha lido esta! genial! e os ratos já apareceram de novo ?

Animal