12.07.2006

54 – Quem matou a mosca morta?

A mesa 19, lesta e perspicaz como sempre, há muito tempo descobriu que o homem santola tem uma mosca de estimação. Tem tal mosca a peculiaridade de não andar com ele, mas antes se antecipar, e comparecer meia hora antes nos sítios aonde ele irá, alado arauto a trombetear a chegada do seu fidalgo. Ora bem, essa mosca está, desde hoje, na situação de desaparecida, presumivelmente morta.

Serve esta crónica para falar, justamente, do desaparecimento da mosca do Paulo Sousa. E, nada de confusões, desenganem-se aqueles que têm o tema por mesquinho ou insignificante, pois o assunto é da mais magna importância. É que aquela mosca, mais do que um simples artrópode, era um símbolo, um estandarte de liberdade, de dignidade humana, como que uma súmula dos direitos do homem, impressos em três milímetros de corpo preto e zumbidor.

Quando a mosca do Paulo voava sobre a mesa 19, nós figurávamos avistar nada menos do que um esquadrão da aviação inglesa, cruzando os céus da França ocupada. Aquela mosca chegava-nos de longe, vinha ferida e amarrotada do esforço de ter atravessado as baterias inimigas do lugar-comum, as mesmas que decretam não poder um homem ir a mais do que um restaurante na sua hora de almoço. Fazendo tábua rasa de tais bombardeamentos, a boa da drosóphila pairava sobre nós com a sua boa nova, anunciando que o Paulo triunfara de novo sobre os espíritos tacanhos, e era ali esperado para um digestivo. Onde estás agora, mosquinha? Quem te matou?

Encaremos a coisa como um caso de polícia. A primeira suspeita, evidentemente, é a Vânia. Não há que duvidar, ela foi já vista a tentar matar a mosca, e só os nossos esforços combinados foram capazes de a impedir. Quem sabe se, noutro dia qualquer, a boa da moça, vendo-se livre de tais peias, não acabou por consumar o mosquicídio? Móbil do crime, um mero boicote à mesa 19, um desejo maléfico de impedir a livre circulação de ideias, que ali tão habitualmente se pratica.

Temos depois a Marta. Ela bem disfarça, mas nós sobejamente sabemos como ela luta para se chegar à mesa 19, sempre que pode. A Vânia costuma ser um obstáculo intransponível, e matá-la, de qualquer modo, dava muito nas vistas, mas uma mosca é diferente. A Marta, definitivamente, é uma suspeita a considerar.

Temos depois a Lana, caso, entre todos, o mais provável. Compreende-se bem que o KGB, confrontado com um núcleo de pensamento livre, tenha accionado a sua agente no local, a loura e eslava Lana. A ideia seria matar todos os comensais da mesa 19, mas estes espiões russos já não são o que eram dantes, e matar uma mosca é uma alternativa viável, bem à dimensão da guerra fria dos nossos dias. Sim, a Lana é a minha suspeita favorita.

Depois, há os elementos da própria mesa, que se podem ter ressentido das atitudes do santola, ou, até, da sua própria existência. Mas acho isso menos provável, dado que não é nosso hábito ter consciência seja do que for. Mas são suspeitos, tout de méme, e convém não os esquecer.

Tudo considerado, acabamos por ficar sem saber quem matou a mosca do Paulo. E é assim que as coisas devem ser, nós vivemos num mundo de hipóteses, e não de realidades. Real, para nós, é apenas o termos de morrer um dia, coisa da qual, de resto, não estou inteiramente seguro. Tudo o resto é especulativo, e esta crónica não lhe fica atrás.

Mas a especulação é boa, ou pelo menos tem de sê-lo, dado não termos mais nada. Especulação por especulação, eu acho que o assassino é a Vânia. Porquê? Bem, por que sim, ora essa. A coisa é evidente, tão óbvia como ser o Paulo uma sanduíche de berbigão. Ou uma tangerina azul, como facilmente se demonstra.

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