12.06.2006

53 – Epifania.

Já desde há dias que a Vânia nos tem dado algumas lições básicas de psicologia. Ora, todo o conhecimento tem as suas consequências, e este não foi excepção. Durante o almoço de hoje, entre nacos de porco e feijão com chocos, vivi inesperadamente uma experiência sobrenatural. A pouco e pouco, comecei a perceber melhor aquela coisa, até que, sem que nada o fizesse prever, desceu sobre mim o espírito de Sigmund Freud.

Interroguei-me, a princípio, sobre que coisa seria aquela, pouco afeito, como sou, a ser possuído por fantasmas, ainda que notáveis, mas a evidência impôs-se: eu era de facto o velho Segismundo, completo com a barbicha de bode, e a careca de supositório. Investido da minha nova personalidade, observei, com um olhar subitamente perspicaz, as pessoas que me rodeavam.

A Vânia, claro, em primeiro lugar. Que coisa mais óbvia, como foi que eu nunca me apercebi do síndroma obsessivo-compulsivo que a domina? Ela é obsessiva, isso é evidente. Mais, sofre de obsessões, e de compulsões. As compulsões são notórias, tanto como as obsessões. É isso, obsessiva e compulsiva. Ela não o pode evitar, juro-o, e seria capaz de passar aqui o dia a repetir, a Vânia é compulsiva. E obsessiva. Eu já tinha dito isto?

Segue-se o Cardoso, um caso evidente de esquizofrenia. Eu também acho. As suas múltiplas personalidades disputam o tempo do almoço, e isso vê-se na forma como come. Desculpa, não percebi, podes explicar isso? Claro, o que acontece nele é que uma personalidade come o bacalhau, outra a carne, duas outras bebem o tinto e o branco… Pronto, já entendi. E isso é grave? Até certo ponto, a esquizofrenia é uma forma de loucura. A sério? Caramba!

Vem depois o Zé Eduardo, claramente paranóico. Não apenas isso, mas acho que ele está combinado com os gajos que andam atrás de mim. Ele fala de conspirações, da CIA e da Mossad, mas a conjura é outra, eles querem é apanhar-me. Mas eu sou mais esperto, finjo que caio naquela conversa, como se ele não fosse paranóico, mas, às ocultas, vou juntando cartão em casa. Quando eles vierem, vão encontrar-me pronto.

O Carlos, sabem, é psicopata. Tem ilusões tremendas, podendo mesmo chegar a matar pessoas por causa das suas alucinações. É, igualmente, uma grande tangerina azul. Isso, ou um búzio, dependendo dos dias. Gosto muito dele, é claro, mas ele é um búzio, e os búzios têm de ser eliminados. Vou fingir que não percebi que ele é um mutante, e tentar aproximar-me sem ser percebido. Deverei usar uma faca, ou estrangulá-lo com uma corda de piano?

O Constâncio é maníaco-depressivo. Desculpem, eu não queria dizer isto. Retiro tudo, só não quero que se zanguem comigo. Sinto-me tão sozinho. Não queria dizer mal de ninguém, só apontei um caso, puramente hipotético, de depressão bipolar. A verdade, desculpem, é que ele passa períodos soturnos, seguidos de outros de exultação. É isso que se chama bipolar, não é? Hein, hein, é ou não é? Embora aí, vamos alugar um carro de som, e gritar a palavra ao mundo! Bipolar! Eia, eia, eia…

O Catarino, há muito que o sabemos, é um pervertido sexual. As suas acções não se afastam da normalidade, até que passe ao seu alcance uma mulher bonita. Aí, ele perde o controlo, não sabe o que diz… mulher linda, perdão, do que estávamos a falar? Que se lixe, anda cá, borracho, nham, nham, nham.

Só falta, nesta breve análise, a minha humilde pessoa. Sinto desapontar a audiência, mas eu não sou maluco. Nesta fantasia, eu sou o psiquiatra, que é o único que goza do privilégio de não ser louco, por mais que viva a loucura dos outros. Por isso, e por maioria de razão, eu não sou doido. Não, eu sou uma galinha.

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