12.05.2006

52 – De boas intenções…

Somos um país devoto. Ou seja, somos um país de devotos. Negue-se o que se quiser, mas isto não há que negar. Comprovei-o hoje, se de comprovativo necessitasse, ao embarcar num táxi que exibia, pendente de uma corrente respigada de um rosário, uma cruz de Cristo. Enxertada na mesma corrente, outra cruz pendia, bem como uma medalha, quem sabe se de São Cristóvão, padroeiro dos viajantes. No retrovisor dependuravam-se ainda os elos de outra corrente, talvez suspirando saudades de uma terceira cruz, entretanto extraviada.

Senti-me feliz e confortável, ao embarcar no carro de praça. Na selva do nosso dia-a-dia, senti-me ali como que tendo abicado a porto cristão. Fossem quais fossem as vicissitudes do caminho, contava pelo menos com um guia sereno, pio e canónico. Não foi, portanto, pequeno o meu espanto, quando vi aquele suposto apóstolo da temperança apostrofar animalescamente um peão, que cometera o solecismo de tentar atravessar na passadeira.

Mais percurso andado, os crimes de ódio iam-se sucedendo, um acintoso negar de prioridade, depois um triunfo espúrio, ao cruzar a frente de outro veículo, na entrada de uma rotunda. A cada manobra violenta, as cruzes oscilavam, e era de recear que o próprio Cristo se fosse já sentindo enjoado.

Esforcei então a memória, vasculhando pacientemente na velha arca poeirenta que é o meu escasso conhecimento bíblico. Diria o Sermão da Montanha, numa qualquer obscura bem-aventurança, que era dos alarves o reino dos céus? Penso que não, assim como não pertencerá também aos mais rápidos, ou sequer aos mais mal-educados. Parece que o cobiçado reino, depois de feitas as contas finais, ficará propriedade dos mansos, nem mais nem menos. Tudo certo, mas quem são eles, esses mansos?

No triste mundo em que vivemos, os mansos mais comuns são os cornos mansos, mas é discutível que a bem-aventurança se refira a eles, sob pena de se povoar o Paraíso com um mar de chavelhos, que não tiveram outra virtude que a de se terem deixado comer por alguém que, justamente, se deixou comer por alguém. A não serem os cornudos, terão de ser os calmos, os serenos, os que mantêm a calma e a equanimidade, os que dão mais do que recebem, contribuem mais do que usufruem, e serenamente vão fazendo deste um mundo melhor, um ensaio de Paraíso na Terra.

Não há cruzes na mesa 19, tanto quanto até hoje me apercebi. Também não há mansos, talvez por sermos ainda muito novos. Mas, sem cruzes nem medalhinhas, estamos bem mais perto do Céu do que aquele motorista de táxi. E estou em crer que os mansos, quando chegar a altura da verdade, mais depressa nos deixam entrar a nós no Céu, do que ao taxista. Tais pessoas, dir-lhe-ão, podem ir directamente para o Diabo que as carregue, com cruzes e tudo. Aquilo que esses são, não há missas nem bentinhos que redimam.

Amén.

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