2.27.2007

78 – O retrato da mesa 19.

Hoje não me apetece escrever. Ele há dias assim, dias em que a criatividade continua a fazer sentir o seu apelo, mas não da forma usual. Hoje, por exemplo, apetecia-me antes pintar. Eu cheguei a pintar, in illo tempore, um quadro cubista. Diversos especialistas, que o avaliaram, foram da opinião unânime de que eu, de futuro, deveria antes dedicar-me à pintura de portas. Pintei então uma porta, mas toda a gente me disse, Deixa-te disso, quem é que vai querer uma porta cubista? Desisti da pintura.

Ainda hoje me fremem os dedos, quando vejo uma tela e tintas. Resisto, porém, à tentação. Como disse uma personagem do Quino, quando a professora lhe perguntava quanto eram dois vezes sete, “Aquele que conhece as suas limitações, sabe dois vezes dois”. A tinta não é de facto para mim, que me ajeito bem melhor com as palavras. Mas hoje apetece-me pintar, e pronto. Está decidido, vou aqui pintar, em veras palavras, a mítica mesa 19.

Queira então o estimável leitor contemplar a modesta tela. Enquadrada em moldura nobre, destaca-se uma mesa corrida, cuja amesendação de papel sugere uma continuidade, onde apenas há duas, três, ou mesmo quatro mesas pequenas, e justapostas. Sobre o fundo de papel barato, exibe-se uma natureza morta, sábia composição de azeitonas, queijo fatiado, cestos de pão, e um pires com umas coisitas merdosas, tipo manteiga e patê, que não ajudam em nada o conjunto, mas não deixam de fornecer um curioso toque de cor.

Em volta da dita mesa, sentam-se uns quantos indivíduos, de aspecto esquálido e patibular, que semelham o Cássio de Shakespeare, temido pelo seu ar “magro e esfaimado”. Trata-se da entourage da mesa 19, entre a qual avultam os dois decanos da confraria, o Carlos Santos e o Rui Cardoso. Muito dissemos já sobre estes dois, pintemos agora a sua vera efígie.

A comparação, feita há tempos, entre este par e os velhotes do camarote, na série dos Marretas, não foi ocasional. As parecenças, contudo, são meramente a nível de atitudes, e não físicas. Fisicamente, são muito diferentes dos tais velhos, chegando mesmo a ser alguns anos mais novos. O que se passa, na verdade, é que eles riem da mesma maneira, e basicamente das mesmas coisas.

Isto, como é evidente, diz tudo. De que serviria aqui acrescentar que são ambos de estatura mediana, nem magros nem gordos, que o Rui se exibe num vampiresco casaco de cabedal, e que o Carlos todos os almoços troca os óculos de trabalho pelos óculos de lazer, excepto quando põe o terceiro par, que serve apenas para procurar os outros dois? Nada, está tudo dito, e aí ficam as duas figuras em tela, uma de cada lado da mesa.

Os dois lugares seguintes são ocupados por mim. Lá vou conseguindo, de uma forma ou de outra, usar uma única cadeira, mas acabo sempre por dar a impressão, mercê de uma curiosa ilusão de óptica, de que é a cadeira que está sentada em mim. Este breve intróito terá já sugerido ao leitor que eu sou, digamos, gordo. Pois bem, é verdade. Caso eu um dia participasse de um concurso literário, e um qualquer bambúrrio me guindasse ao lugar vencedor, estou certo de que as notícias diriam, “Temos em terceiro lugar um bom escritor, em segundo lugar um excelente escritor, e em primeiro lugar um gajo gordo, que parece que também escreve umas coisas”. C’est la vie

Mas nem tudo está perdido, pois ando a fazer dieta. Perdi até agora vinte quilos, e actualmente a balança falante do centro comercial limita-se a dizer, “Porra, que você é mesmo gordo” (antigamente, costumava gritar muito alto, em tom aflito, “Socorro, tirem o elefante de cima de mim”). Afora isso, uso o cabelo muito curto, quase rapado, que é para pesar menos, cara escanhoada, nas raras vezes em que me barbeio, casaco surrado e pouco limpo sobre camisa amarrotada, e calças no mesmo estado, a compor um ar geral de desmazelo, a que uma gravata distinta e sempre renovada fornece uma nota de divertido contraste. À parte isto, sou gordo.

Os restantes lugares são algo variáveis, ocupados como são por gentes de índole mais nómada, e mais afeita a variar. À minha frente, tanto se pode sentar o Zé Eduardo como o Rui Constâncio, duas figuras que importa aqui retratar, se a tanto me chegar a tinta que sobrou, após as vastas pinceladas requeridas pela minha volumosa barriga. O melhor instantâneo que posso fazer deles é o seguinte, se algum dos dois tentasse viajar de avião, durante um estado de alerta, passaria um mau bocado no aeroporto.

Não se dá isto porque tenham ar de terroristas. Nada de confusões, pois têm ambos ar de terroristas, e de que maneira, mas não é só isso. Vultus índex animi, o rosto é o espelho da alma, e, no caso deles, vultus índex tavoli XIX, o espelho daquela faceta da mesa 19 que é essencialmente anarquista, e não se consegue impedir de ver a destruição espalhafatosa como senda de progresso, e o camartelo como instrumento civilizacional. Entre os dois, um é mais espalhado e demolidor na crítica, o outro mais preciso e acerado, são talvez diferenças de idade, mas a essência é a mesma. São, de resto, invariavelmente intransigentes, e estou certo de que, caso tivessem feito parte da milenar seita dos assassinos, chefiada pelo lendário Velho da Montanha, que decidia quem devia ou não ser morto, o primeiro a ser assassinado seria mesmo o Velho, e lá ficava a seita sem mestre. É mesmo assim que eles são, não perdoam. Para além disso, são dois tipos impecáveis.

Estes são, digamos assim, os comparsas diários, mas há também os eventuais, os que, em vez de aparecer, vão aparecendo. Dentre os históricos, há que destacar o Paulo Sousa, pela originalidade de continuar a frequentar a mesa 19, tendo embora deixado de lá almoçar. Depois de compartilhar a refeição do meio-dia com a sua cara-metade, o que faz a coberto de um sigilo que a maioria das pessoas reserva para a amante ilegítima, de preferência do mesmo sexo, e seropositiva, o santola esgueira-se até à mesa 19, onde gasta o seu bom quarto de hora a olhar-nos ameaçadoramente, por sobre a borda do copo. Depois, esgueira-se, como a brisa por uma janela entreaberta, ou uma sapateira que vislumbra uma rocha convidativa. Mas é tarde demais, pois já ficou no retrato. Aquele casaco de cabedal, que ali vedes a esvoaçar junto à porta, era ele.

Histórico é também o Catarino, sendo bem mais recente o Carlos Lopes. Não é por acaso que aqui os junto, em pincelada promíscua. Para além da semelhança óbvia, que é a raridade com que somos honrados com a presença de qualquer destes beneméritos, eles compartilham ainda um mesmo aspecto, que não pode deixar de figurar nesta pintura: eles são excelentes pessoas, pessoas cuja boa índole é, talvez, boa demais para a nossa mesa. É coisa magnífica, o ser-se boa pessoa, mas tende por vezes a embotar outras qualidades, como o sarcasmo, o cinismo, e a maledicência. E daí, serão talvez eles quem tem razão. Não sei, realmente não sei. Afora isso, distingue-se o Catarino por ser o melhor técnico de assadura de sardinhas de que há memória em terras deste reino. Fazendo-lhes em breve esquiço o boneco, nota-se com facilidade que, entre os dois, não juntariam cabelo com que sujar o chão de uma barbearia, um por o trazer rapado, outro por não ter já grande coisa para rapar. Mas, nisto de cabeças, conta menos a cagadela de pombo na testa do que a merda que vai lá dentro, que é como quem diz, do crânio para fora, pouco interessa.

E, last but never the least, temos um terceiro Carlos, desta vez, o Silva. Perdão, não é bem assim, permitam-me que recomece. Peço então, estimados senhores, a vossa vénia e aplauso para o mui preclaro jurisconsulto, o bacharel Carlos Silva. Ecce homo, ei-lo que avança em direcção à lendária mesa 19, no que promete ser o encontro de duas lendas. A basta cabeleira, onde a respeitabilidade das cãs se alia à força anímica do azeviche, ilumina os tenebrosos meandros do restaurante, enquanto prossegue com destemor. A fronte alta guarda os mistérios do quid das coisas, o alfa e o ómega das leis que regem as gentes humanas, e os humanos destinos. Eu, porque escrevo uma crónica, posso sempre ir preso. Em igual pena incorrerá o Zé Eduardo, porque a não escreveu. Mas só o Carlos, bastião da jurisprudência, estará em condições de determinar quem será de facto deitado aos calabouços, e porquê. Só daquela efígie leonina sairá a explicação, as razões, com todos os de jures e de res, que determinarão o nosso porvir. O Carlos, a quem aqui se tece justificado, e de há muito preterido louvor, não goza, contudo, do subido estatuto que caberia a tão insigne legislador. E a que se deve, perguntar-me-ão, semelhante injustiça?

Pois bem, o problema é muito simples. É que um perito em leis, em formas de regulamentar a sociedade, isto é, em normativos, tem tanta procura na mesa 19, como um perito em disfunção eréctil num congresso de lésbicas. Eu serei talvez a excepção (tipo, a lésbica um bocado mais puta, no dito congresso). Eu acho piada a essa coisa de leis, e gosto de ver a lógica que preside à adequação da forma ao conteúdo. Mas, para ser franco, eu gosto de lógica. Gosto também das expressões formais, com abundância de locuções latinas, que revestem normalmente as leis. Mas, para ser franco, eu gosto de latim.

Pronto, sem querer, acabei por fazer, nos parágrafos anteriores, um retrato ainda mais fiel da minha própria pessoa. Pintei ainda, também sem querer, o melhor retrato possível da mesa 19. O resto, que é serem uns gordos e outros carecas, ainda é o que menos interessa. Aí tendes, posta em ceia, a nossa mesa 19, e, se um tal de Da Vinci vos vier dizer que o quadro dele é melhor, mandai-o falar comigo.

Nota: é evidente que muita gente ficou de fora, nesta pintura. Isso era inevitável, sob pena de se refazer a tal “Última Ceia” em versão Monty Python, com trinta e seis apóstolos, três Cristos (“o gordo compensa os dois magrinhos”, segundo eles explicavam), e um canguru. Não posso contudo omitir o excelente Paulo Mendes, presença sempre saudada na nossa mesa. Se não figura na pintura principal, é mesmo só por falta de espaço (eu sou um bocado gordo, não sei se já tinha dito isto), mas não deixará nunca de ser uma parte desta obra, que nós a cada dia vamos pintando.

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