2.21.2007

77 – O mundo sem a mesa 19 (divagações sobre a depressão).

Nestes dias peculiares, em que tenho chegado para almoçar já em tempo de fim de repasto, por mor de um horário idiota, imposto por razões idiotas, a fim de realizar um trabalho idiota, tenho por vezes ficado sozinho à mesa, após a debandada da mesa 19. Nada de confusões, a mesa 19 não é um conjunto de pernas de madeira e alguns tampos, é o conjunto vivo dos seus comensais. Sem eles, a mesa 19 está ausente, e eu fico ali meditabundo, fantasma do momento errado, ou do momento que me errou, enquanto acabo o meu vinho, e observo vagamente o que se passa à minha volta.

O restaurante é uma coisa diferente, após a mesa 19. A Vânia, a Marta, o próprio Vítor, falam comigo noutro tom, um pouco como se eu estivesse ali sozinho. Pondero distraidamente esse facto, e ocorre-me que talvez o façam, subconscientemente, por eu estar ali sozinho. O gesto dá um novo significado à solidão, e a coisa, no seu todo, não é muito diferente de estar exilado numa ilha deserta, só que com miúdas giras, a arrumar as mesas à minha volta. Mas isso pouca diferença faz, pode-se sempre estar só, mesmo no meio de uma multidão.

Naquele triste e ledo fim de tarde, pergunto a mim próprio o que faria o bom Luís Vaz de Camões, no meu lugar. Provavelmente fazia um soneto, ou então fazia o mesmo que eu, só que evitaria piscar o olho à Marta, porque senão deixava mesmo de ver um boi à sua frente. Não quer isto dizer que eu esteja a ver um boi à minha frente, pois a Marta até é bastante magrinha. Mas enfim, adiante…

O ar condicionado lembra algo que Andy Warhol poderia ter feito, se lhe faltassem as latas de sopa, e a toalha usada faria as delícias de um amante do cubismo. Estranhamente, vem-me à memória o filme “Je t’aime, moi non plus”. Trata-se da história de uma rapariga que se apaixona por um rapaz que faz de homem num casal de homossexuais, mas chega à conclusão que ele não se ajeita lá muito bem com moças, e só o poderá ter se lhe der o rabo. O problema é que ela não consegue fazê-lo sem grandes uivos de dor, pelo que acabam sempre por ser expulsos de todos os motéis, bem a meio da festa. Farto de coitos interrompidos pela porteira, o rabeta acaba por preferir o amigo, que sempre tem a vantagem de não gritar, isto para além de ser mesmo homem, e o filme acaba com os dois a partirem num camião, abandonando-a, nua e desesperada, no meio de um campo de trigo, imagem de rara beleza. O trigo também não é feio.

Isto não é, obviamente, a história da mesa 19 (nós também uivamos, vez por outra, mas nunca durante a hora do almoço). Mas é uma boa metáfora da solidão. Melhor, não é uma metáfora, é uma explicação. É claro que o filme permite diversas leituras, mas a minha interpretação pessoal sempre foi inequívoca. Trata-se aqui de exclusão, tanto exclusão social como exclusão afectiva, e a mensagem é que a exclusão resulta de uma situação minoritária. As maiorias excluem as minorias, e isso é uma lei invariável da natureza.

O tour-de-force genial do filme é colocar a habitual maioria, a jovem heterossexual, numa posição minoritária. Afinal de contas, só há três personagens, e dois são homossexuais. Como resultado, eles entendem-se entre si, e ela é excluída. No dia em que o mundo for gay, os poucos hetero que restarem terão de andar a esconder a sua vergonhosa orientação sexual. Será a vingança dos paneleiros, que não deixarão de inventar novos termos ofensivos para os outros, os actuais machos.

A mesa 19 não é gay. Pelo contrário, julgo até que chegamos a exibir certos sintomas que não envergonhariam o Zézé Camarinha. Mas somos minoritários, de um modo geral. Melhor, somos todos sobreviventes do nosso estatuto minoritário. É por isso, e não por sermos um bando de javardolas, que nós gritamos muito, e causamos distúrbios. É que nenhum de nós bate muito bem da bola. Estamos todos habituados a lutar pelo nosso lugar, e, quando nos faltam adversários, acabamos por lutar uns com os outros.

É coisa que se vê muito na nossa mesa, um de nós a disputar, com fúria, que o carvão é negro, enquanto o outro vocifera, sem perder terreno, que não é, não senhor, é mas é preto. Junta-se um terceiro que, apaziguador, quer mostrar que o carvão, seja lá como for, é sempre escuro, mas caem-lhe em cima os dois primeiros, com redobrada raiva, sustentando que ele não quer senão baralhar as premissas, quiçá para proveito próprio. Na falta destas disputas, chateamos a Vânia.

Meditava eu, na minha solidão, em toda esta mesa 19 que ali me faltava, quando de súbito o patrão, emitindo um grito de guerra, saltou por cima do balcão, indo encaixar-se, a cavalo, nas espáduas do Vítor. Chicoteando-lhe o flanco com uma ementa, mandou-o galopar para o mercado, pois tinha de comprar urgentemente uma potência irracional de postas de salmão. O outro discordou, com um relincho, mas não lhe valeu de nada.

Entretanto, a Vânia e a Marta apareceram para limpar a sala, completamente nuas. Meu Deus, o que eu ando a perder, por sair de cá cedo demais. Confesso que olhei para a Marta, e embasbaquei. Como é que eu nunca os tinha visto, assim pendentes, lindos e sensuais, desafiadores? Que brincos maravilhosos!

Chamei a Marta, respeitosamente, com uma palmada carinhosa no traseiro fofo. Pedi-lhe mais vinho, mas ela garantiu que tinha ordens severas do patrão, e só me poderia oferecer um jarro se eu a beijasse apaixonadamente. Estava para concordar com a proposta, quando a Vânia se interpôs, gritando que era tudo uma grande treta, e que aquilo não passava de um plano da Marta, para me fazer casar com o Vítor.

Gritou ainda que, se tudo aquilo fosse mesmo verdade, também ela teria vindo nua. Ainda lhe apontei que ela vinha de facto assim, mas retorquiu-me, abespinhada, que isso agora não vinha ao caso. Foi então que me acordaram, para me perguntar se queria mais alguma coisa. Uma vez desperto, voltei a ser minoritário.

Melancólico, saí do restaurante, em busca de um táxi. O motorista era um tipo simpático, já meu conhecido de outras viagens, mas não pude deixar de notar que ele era quase o oposto de uma jovem modelo, bela e nua. Como disse Pessoa, falando da sua hipotética morte, “Vai depois dizer a essa estranha Cecily / Que acreditava que eu um dia seria grande. / Raios partam a vida, e quem lá ande”.

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