2.14.2007

74 – A epopeia da Távola 19.

Algumas estadias em casa, devidas à necessidade de cuidar de um filho doente, levaram o autor a embrenhar-se em cogitações, mais do que conviria à sua imbecilidade natural. De várias meditações sobre o referendo próximo, questões de ética laboral, e uma complexa análise comparativa entre as apostas no euromilhões e o gato de Schrödinger, para já não falar nos cogumelos, resultou um estado de espírito filosófico, e portanto chato, que se reflectiu inevitavelmente nas crónicas. Para aligeirar o ambiente, a presente crónica foi escrita, a pedido, pelo fantasma de Sir Drinkalot, que está morto há mais de mil anos, e bastante farto disso, também.

Com mil e seiscentos diabos, que artimanha do Demo temos aqui, agora? Quem sois vós, bofé, que vos permitis interrogar-me? Explicai-vos sem delongas, senhores, ou será a ponta da minha espada a fazer as despesas da conversa. Cuidais que haveis de tratar com um vilão, ou com uma dona? Desenganai-vos, por minha fé! Eu sou Sir Drinkalot, cavaleiro da távola quadrada número 19, honra e flor do reino de Camelot. O fio da minha lâmina é a minha credência, o ferro dos meus guantes a minha embaixada. Dizei, pois, sem melindres ou rodeios, que coisa intentais obter de mim.

Que palavras ouço, ou julgo ouvir, e que crédito hão elas, que tão inverosímeis se me afiguram? Pretendeis, pois, que vos narre aqui, despejadamente, a história e a glória da távola 19? Forte pretensão é a vossa, e uma que não estou seguro de poder satisfazer, eu que melhor que a palavra manejo a espada, lâmina que jamais desembainhei sem justiça, nem voltei a guardar sem honra. Enfim, intentarei o que puder, para vossa satisfação, e assim o esforço me alcance a salvação da alma imortal.

A távola 19 governa o reino de Camelot, é o seu centro, e a sua luz. Foi, em tempos milenares, uma távola redonda, de que outras crónicas guardam fiel memória, mas veio a assumir a actual forma rectangular, a fim de permitir a qualquer cavaleiro em dificuldades o acto de se aliviar, mijando nos cantos. Em torno da vetusta távola, estende-se o mui nobre reino de Camelot, palavra evidentemente derivada da quantidade de camelos que ainda hoje a rodeiam, e lhe prestam vassalagem.

Muitas histórias têm sido narradas, nestas crónicas, sobre a távola 19. Não discordando da substância factual de cada uma delas, devo todavia insurgir-me contra o tom ligeiro e modernaço de que se revestiu a narrativa das sagas. A távola 19 é uma instituição antiga, medieval, que só perde com essas modernices de mau gosto. Sei bem quem é o culpado disso tudo, não é outro senão o autor, esse vilão que bem queria ser nobre mas é apenas pobre. Põe-se para aqui a parlapatar tolices sem sentido, e vá lá uma pobre alma, que apenas sabe a língua pátria, pôr a cabeça à razão de juros para o entender. Ainda no outro dia, pelos folguedos do seu natalício, o ouvi falar num “homem do talho”. Os tratos que eu dei ao juízo, meu rico São Jorge, até compreender que ele se referia, muito simplesmente, ao uchão ali da esquina.

Recentemente, contudo, a mesa 19 entrou em combate. Cavalos de batalha foram ferrados, armaduras lustradas e areadas, maças de armas sopesadas, e postas à mão de semear. Aconteceu apenas esta coisa singela e magnífica, a um tempo natural e inesperada: o ofício de matador de dragões, que cada cavaleiro, até aqui, exercia de forma graciosa e voluntária, passou de súbito a ser remunerado, uma bolsa de oiro por cada dragão morto. Isto causou uma revolução entre os cavaleiros, tanto mais que, diga-se a verdade, o regime de voluntariado vigente sempre fora um pouco prejudicado pelo costume instituído de empurrarem o cavaleiro em causa para a toca do dragão, por mais que o desgraçado esperneasse.

Mas o pior foi que a justiça, que jamais fora apanágio deste mundo de cavaleiros, há que dizê-lo com frontalidade, pareceu ausentar-se por completo deste processo. Assim, correu o boato de que a equidade, neste caso, faria as vezes de umas cuecas tipo tanga, que tapam tudo mas deixam o rabinho à vista. Segundo se dizia, o rei iria lançar a alguns o seu saco de oiro, dizendo apenas aos outros, Sois grandes matadores de dragões, continuai o vosso bom trabalho, que todo o reino vos agradece.

Foi aqui, face à arbitrariedade da decisão, que os cavaleiros em causa responderam à uma, num brado caracteristicamente medievo, Ide todos para a pata que vos pôs, e, se quereis os dragões caçados, caçai-os vós mesmos.

Veio-se a descobrir depois que, afinal de contas, não era nada disto, e sempre haveria ouro para todos. O rei terá enviado a mensagem por todo o reino, mas mensageiros houve que se atardaram mais, quiçá por mor de outros afazeres. Como diria um diácono que viveu mil anos depois de mim, digam-me lá, meus amigos, se havia alguma necessidade…

A chatice foi que, com tal desordem de procedimentos, com tais protocolos na comunicação das ordens, o desânimo tornou-se mais profundo, em vez de melhorar. Os dragões, esses, foram ganhando terreno. Parece que, nestes tempos conturbados, já ninguém os quer caçar, nem mesmo a peso de ouro.

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