2.15.2007

76 – E, finalmente, o referendo.

Por toda a parte, o pasmo dos rostos espelha a interrogação generalizada. Em esquinas sombrias, no desvão de portas escusas, ou emparedado no lusco-fusco protector de becos antigos, se ouve soprar, em murmúrios temerosos, a pergunta candente: por que razão é que, volvidos tantos dias, ainda não abordaram as crónicas a questão do referendo?

O ponto que importa perceber é este, existem dois tipos de crónicas. Isto é obviamente mentira, existem vários, mesmo muitos, até, tantos quantas as próprias crónicas, mas pronto, digamos que são dois, que é para não fatigar excessivamente as meninges do esforçado leitor. De acordo com este critério, necessariamente tão arbitrário como qualquer outro critério, podemos dividir as crónicas em “sérias”, e “menos sérias”. De uma forma geral, as sérias defendem a reformulação da sociedade, por via, frequentemente, da reestruturação de mentalidades, e as menos sérias defendem a fundação da utopia, ou melhor, a assumpção de uma utopia que passaria a existir, uma vez assumida, e fazem-no frequentemente por via de meios duvidosos, como o regresso à idade média, a evocação de fantasmas, ou cobrir tudo de salmão. Só uma diferença basilar separa os dois tipos: as crónicas menos sérias assumem o disparate como um facto, enquanto as sérias tentam mostrar, por meio da lógica, que o disparate é um facto.

Dito isto, é importante esclarecer que o referendo é, para mim, um assunto muito sério. É claro que, quando digo o referendo, estou a referir-me a O Referendo, o que teve a sua reprise no passado dia 11 de Fevereiro, quando se decidiu a questão da interrupção voluntária da gravidez. Acontece que se trata de um dos poucos temas sérios da actualidade sobre os quais eu tenho uma firme opinião, e que me dei ao trabalho de esmiuçar com algum detalhe, a fim de reforçar ou desmentir as minhas ideias (uso intencionalmente a palavra “sérios”, para que não me venham chatear com coisas como a exposição indecente das amêijoas, a legitimidade de incluir cuecas comestíveis no cozido à portuguesa, ou o auto-erotismo como forma de ganhar o euromilhões, temas que também absorvem grande parte das minhas cogitações).

Não é despiciendo o uso de maiúsculas no parágrafo anterior, quando aludo ao referendo, se considerarmos que se trata do único referendo que trinta e três anos de democracia conseguiram produzir, neste cantinho à beira-mar plantado. Seja como for, a importância do tema, na minha opinião, seria sempre merecedora de uma crónica séria. Ora bem, o que acontece é que eu ando um bocado farto de escrever coisas sérias. Tenho muito a dizer sobre a questão do aborto, mas, se não me levam a mal, fica para uma outra vez.

A restrição, contudo, aplica-se ao aborto, e não ao próprio referendo. Sobre esse, não me importo mesmo nada de discutir o que é, de debater o que não é como se o devesse ser, de falar do que nunca será como se o fosse já, bem ao jeito, desfasado da realidade, da nossa mesa 19. Vamos ao referendo, portanto, como Santiago aos mouros.

Falando, em primeiro lugar, do presente referendo, houve de facto uma coisa que, desde o princípio, me deixou surpreendido. Ouvi todo o tipo de auto-proclamadas sumidades discutirem, ad infinitum et ad nauseam, o conteúdo da pergunta a referendar, mas, curiosamente, ninguém avançou com grandes argumentos sobre o conteúdo da resposta. Ora, quanto a mim, um referendo sério não se pode limitar a um seco “sim” ou “não”. Que diabo, a vida não é a preto e branco. Aqui fica, como sugestão para uma próxima tentativa, um leque de respostas que considero mais justo:
- Sim.
- Não.
- Só se a rapariga for de uma família aceitável e conveniente.
- Se forem mesmo muito pobres, e o marido for bêbado, o prazo deve ir até além do nascimento. A mulher poderá ainda, caso o pretenda, abortar o marido, com a ajuda de uma pistola.
- Além da IVG, dêem-lhe também um voucher para um fim-de-semana com o namorado, num bom motel. Afinal de contas, porquê limitar a coisa a um único aborto?
- São só dez semanas? Porra! O que vale é que a minha secretária está bem treinada, e vai negar tudo.
- Porcalhões. Por que é que não se limitam ao sexo oral? Hum? (voto invalidado, por vir assinado pelo diácono Remédios).

Mas, enfim, basta da questão do aborto. Aquilo que mais me surpreende, neste grande festival de democracia, é que não se referende mais nada. Não estou a gozar, qualquer norueguês está habituado a ser chamado, domingo sim, domingo não, a pronunciar-se sobre a condução da sociedade em que se insere, o que me parece bem. Nós, por cá, é só aborto, como se a vida de cada um se passasse entre decisões de abortar, ou não abortar. E agora pergunto eu, e quando não há nada para abortar, hein?

Ocorre-me, assim de repente, a questão do aeroporto da Ota. É hoje geralmente aceite que o novo aeroporto é um disparate, sobretudo se feito ali, e os defensores da solução da Ota dão pelo nome genérico de otários, mas, cadê o referendo? É no mínimo curioso que eu seja chamado a pronunciar-me sobre a decisão íntima e pessoal, que em nada me diz respeito, da dona Joaquina, de Freixo-De-Espada-À-Cinta, e não tenha uma palavra a dizer sobre o ruinoso investimento de vários milhões, arrancados aos meus impostos, na destruição de um ecossistema insubstituível, com vista a construir um aeroporto disparatado, que ninguém quer, onde ninguém o quer, excepto uns quantos proprietários de terrenos. Mas, a haver referendo, estou seguro de que a pergunta seria, “concorda com a construção deste aeroporto, ou prefere uma alternativa que os poderes económicos não deixarão de inviabilizar, levando à construção deste aeroporto? (possibilidades de resposta: Sim; Sim; Não, porra, mas o que é que eu hei-de fazer?).

Pondo de lado estas tristes realidades, resta falar do nosso referendo, do referendo que se impõe: o referendo da mesa 19. Diversas hipóteses se nos deparam aqui, mas, considerando a natureza rebelde e disparatada da nossa mesa, opções há que se impõem. Aqui ficam elas, pelo que possam valer:

Pergunta: concorda com a liberalização dos digestivos a todas as mesas, desde que aplicada somente à mesa 19, após terem sido bebidos os habituais licores, ou mesmo antes, desde que depois, ou até, em circunstâncias excepcionais, imprevisíveis, ou indefiníveis, desde que devidamente regulamentado?
- Hã?
- Como?
- Desculpe?
- O que foi que disse sobre o meu rabo?
- SLB! SLB! SLB!
- Estou apaixonado pela Marta!
- Tudo bem, desde que o Alberto João não venha cá.

Pergunta: gostaria de ser servido, neste restaurante, por meninas em topless?
- Sim.
- Sim, porra.
- Sim, porra (com baba).
- Sim, desde que seja a Marta. Ou a Lana. Ou outra miúda qualquer.
- Sim, desde que não seja o patrão. Ou o Alberto João.
- Sim. Sim. Sim.

Pergunta: gostaria de encontrar na ementa pratos requintados, como cabrito assado à padeiro, ou umas favas bem cozinhadas?
- Sim.
- Sim, desde que servidos por empregadas em topless.
- Sim, desde que servidos pela Vânia, vestida como ela quiser (estou a brincar. Topless, é claro).
- Sim, desde que servidos pelo patrão em pessoa. O prato, nesse caso, deverá ser o Alberto João, com um molho de orégãos e manjericão, e um pouco de salsa nas narinas.

Pergunta: deseja terminar esta crónica, visto que já não há mais disparates de jeito para dizer?
- Sim.
- Sim, por favor.
- Ou isso, ou alguém me mate (pode ser o Alberto João).
- Não, gostaria de escrever mais algumas páginas, e… aaaarghhhhh!

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