8.02.2006

20 – A conta da mesa 19.

Já tem sido dito, algures ao longo destas páginas, que se come e bebe bem na mesa 19, e não há que esconder que também ali se respeita o provérbio espanhol, “toma o que quiseres, e paga o que tomares, que assim manda Deus”. A conta, consequentemente, é um ritual importante nas celebrações da mesa 19, e obedece, naturalmente, aos seus próprios cânones.

Se as nossas refeições demorassem três horas, e não estou de modo algum a dizer que demoram, mas, se demorassem, então a primeira hora seria consagrada à comida, a segunda à conversa e digestivos, e a terceira ao pagamento da conta. E seríamos mesmo tentados a afirmar que a última é a mais demorada de todas, se não fosse o facto de todas as horas demorarem o mesmo, embora algumas sejam muito mais longas.

A coisa começa com os nossos insistentes pedidos, no sentido de que nos seja trazida a conta. A Vânia, é com mágoa que o digo, não acredita em nós, e faz ouvidos de mercador. Não sei, realmente, a que atribuir tão cínica incredulidade, que tem graniticamente persistido ao longo de todos estes meses, em que nós fizemos de tudo, desde pedir a conta logo à chegada, ou passar o almoço inteiro a pedi-la, até negar veementemente tê-la pedido, quando ela finalmente é trazida. Por uma razão ou por outra, o facto é que a Vânia reluta sempre em trazer-nos a conta.

Quando de facto se decide, inicia-se um processo portentoso, a que vale a pena assistir. A nossa musa metamorfoseia-se em robot, e os seus olhos percorrem a mesa como verrumas, que nada deixam escapar. Saltitam, como bolas de pingue-pongue, sobre as azeitonas, que são contabilizadas, analisadas, conferidas com os caroços postos de lado, não vá ter havido batota. Os olhos penetrantes reconstroem, à esquadria, as fatias de pão encetadas, computando a área e o volume dos pedaços em falta, e espraiam-se ainda sobre os jarros de vinho, a ver se não houve engano. Tudo isto feito, a sacerdotisa lança por fim a consagrada bênção dos três dedos sobre o pires das manteigas, e parte rumo ao altar do sacrifício, o balcão do pai Pinto.

É daí que emerge a lauda final, sujeita ainda ao escrutínio último da Vânia, que não consente em entregar-nos o incriminatório papel de ânimo leve. Finalmente satisfeita, estende-nos o linguado, cujo total nós dividimos entre todos, e pagamos. Contas arrumadas, certo?

Errado! O facto é que nós nunca pagámos a nossa conta ali. Nós devemos, bem vistas as coisas, muitos milhares de euros que, certamente por lapso, nunca nos foram cobrados. As contas que vamos pagando são simples listas de trivialidades, carne isto e vinho aquilo, e mais uns cafés. Nem um sorriso da Vânia nos foi ainda debitado, as carícias que a Marta vai fazendo na cabeça do taliban continuam a pagamento, e só das minudências sem importância nos pedem pagamento, coisa de uma bagatela, e pouco mais.

Uma conta justa, ao jeito do American Express, seria algo deste género: dobrada, 5 euros; vinho, 3 euros; ser aturado pela filha do patrão, 500 euros; ser aturado pela filha do patrão, gostando disso, 1000 euros; ser aturado pela filha do patrão, e ela gostar disso, sem preço; tudo isto, e não ser posto na rua, oferta da casa.

Há muitas razões para almoçarmos na mesa 19, mas fica desde já confessada a principal: em que outro sítio, bolas, poderíamos almoçar assim, de borla?

1 comentário:

Anónimo disse...

Nem de férias pude deixar de comentar esta crónica. Já li até è 22 mas esta 20 está um retrato da pura realidade diária a que a nossa menina nos submete. Já quase me esquecia disso nestas duas semanas em que grelhei no carvão o meu próprio almoço e jantar, e o da família claro está, sem ter que esperar pela conta e os cheirinhos foram sempre servidos generosamente.
Espero voltar a encontrar o caminho do churrasquinho e da sua mesa 19 daqui a mais uns 15 dias verdadeiramente úteis. Um abraço a todos os marretas, eventuais e artistas convidados que têem passado pela mesa 19.