8.29.2006

23 - Portugal.

Hesitei antes de colocar aqui esta crónica, no receio de que me digam que ela não tem aqui cabimento. É que esta crónica é diferente, porque não fala da mesa 19. No entanto, eu acho que a sua mensagem tem valor, se posso falar assim de algo que eu mesmo escrevi (é claro que posso, quem é que me vai impedir?). Seja como for, sempre há uma certa relação: é que a mesa 19 também fica em Portugal.


Isto já chega! As coisas aguentam-se até um certo ponto, mas depois há que dizer basta! Tudo o que é demais farta, caramba! E outras expletivas do mesmo género, culminando no previsível etc., com os três pontinhos do estilo…

Vem isto tudo a propósito desta coisa velha, bizarra, e difícil de definir, que responde pelo nome arcaico e desusado de Portugal. Já nos idos de 1871, escrevia Eça de Queiroz (cito de memória, e provavelmente mal): “A economia está na bancarrota; os políticos são alvo do descrédito geral; por toda a parte se rosna – o país está perdido”. Estas palavras, e muitas mais, de idêntica actualidade, compuseram o primeiro número das memoráveis Farpas, e são hoje familiares a grande parte dos cidadãos, desde que alguém as pôs a circular na Internet, com os espectáveis encómios, Vejam só, parece que foi escrito hoje, isto não mudou mesmo nada.

Pois é, a verdade é essa: isto não mudou, e, a ser verdade o que diz o povo sobre os burros velhos, e a respectiva capacidade de aquisição de novos talentos linguísticos, é de esperar que não venha já a mudar. Sejamos francos, vai quase um milénio que andamos nisto, é mais do que tempo de parar de protelar, e encarar a realidade de frente.

Mas de onde, afinal, nos vem esta macumba? Bem, quando se fala de causas, as opiniões dividem-se: uns assacam as culpas ao ilustre vimaranense, filho do conde D. Henrique, alegando que nada de bom se poderia esperar de um país fundado por um tipo que batia na mãe; outros preferem responsabilizar o D. Sebastião, que teve aquela triste ideia de se pôr a caçar mouros em tempo de defeso. Segundo algumas crónicas, o jovem rei terá bradado ao povo, quando embarcava: “Sobretudo, não façam nada enquanto eu não voltar”. O régio preceito manteve-se, aparentemente, em vigor até aos dias de hoje.

Na minha modesta opinião, contudo, a coisa vem de muito mais longe, dos tempos pagãos em que Viriato, esse líder cuja bravura apenas igualava a falta de visão política, espadeirava o romano pelas cristas dos Montes Hermínios. Reza a história – e agora não estou a inventar – que um perplexo centurião romano, dos que à época cá andavam, remeteu a César as seguintes novas da campanha ibérica: “Nos confins desta península, habita um povo estranho e bruto, que nem se governa, nem se deixa governar”. Genial Quintilius, ou lá como te chamavas tu, que, na frase simples que lavraste, deixaste escritos dois mil anos de história vindoura.

Pois, pois, dizem alguns, mas há também os Descobrimentos. Então e os Descobrimentos, a nossa epopeia trágico-marítima, quando Portugal se lançou ao mar, e deu novos mundos ao mundo? Ora bem, em relação a isso, nada há a dizer. É verdade histórica e irrefutável que o Portugal de quinhentos se lançou ao mar, mas o mesmo têm feito muitos homens de negócios, depois de perder a fortuna na bolsa. O Portugal quinhentista enfrentava um dilema, crescer ou perecer, e conquistar a Ibéria estava fora de questão, já para não falar da Europa. Restava-nos atirarmo-nos ao mar, o que de facto fizemos, e tivemos depois a sorte de encontrar um novo mundo do outro lado. Mas, quanto a isso, nós sempre fomos um povo com sorte.

E que fazer agora, quando tudo foi já tentado, o mar nada tem de novo a oferecer-nos, e a coisa parece ter chegado a um beco sem saída? Não creio que a minha opinião valha seja o que for, neste particular, mas deixo-a aqui, para quem quiser considerá-la. Com toda a franqueza, acho que devíamos desistir.

Não quero com isto propor que fechemos as portas, apaguemos as luzes, e emigremos em massa, como é evidente. Não, Portugal continua a ser um excelente lugar para se viver, só falta encontrar quem o governe. Nem sequer precisamos de ser muito picuinhas quanto a quem nos há-de governar, desde que não seja português. Essa é uma condição não negociável, desde que sucessivas monarquias, repúblicas, ditaduras e democracias nos demonstraram já a razão que incontornavelmente assistiu ao respeitável centurião romano. Portugueses não, que venham outros quaisquer. Sujeitando-me à vaia colectiva de dez milhões de gargantas, proponho os espanhóis.

E porque não? Portugal tem franca vocação para ser uma província de Castela, e estou convencido de que seríamos uma das melhores. Sob o ponto de vista económico, a integração já está feita: basta relancear os olhos por qualquer prateleira de supermercado, ou contar os “Ys” presentes na mais elementar folha de instruções, pretensamente traduzida para o nosso vernáculo, para conhecer que somos, economicamente, uma região turística de Espanha. Pior ainda, como em qualquer região turística, as coisas custam todas muito mais caro do que no país de origem.

De resto, que mais nos falta para sermos espanhóis? Temos climas semelhantes, regiões vinícolas adjacentes, entendemos bem a língua, e, acima de tudo, temos essa característica fundamental, que compartilhamos com três quartos da população espanhola: todos nós, sem excepção, temos um ódio de morte aos espanhóis! Julgo que o governo de Madrid, habituado à Catalunha, ao País Basco e à Galiza, não terá dificuldade em integrar mais uma região que não os pode ver nem pintados. Talvez a região autónoma da Madeira levante alguns problemas, mas esses são fáceis de resolver: basta que o parlamento faça passar um decreto, a ilegalizar o Alberto João Jardim.

Julgo ter assim apresentado um verdadeiro plano de salvação nacional. Tudo o que o presente governo tem a fazer é deslocar-se a Madrid, convenientemente constituído em comissão interina, e entender-se com o senhor Zapatero. Diplomaticamente, explicar-lhe-ão que aquilo de 1640 não foi mais do que uma garotada, ele que não faça caso. De resto, todos os chamados insurrectos tinham, na verdade, o maior respeito e admiração pelo senhor Miguel de Vasconcelos. Aconteceu apenas que um deles fez um comentário elogiativo sobre a janela, o espanhol não entendeu, duro de ouvido como são todos eles, não ligue, isto não era para dizer, e vai de se atirar pela dita. Antes que alguém percebesse o que se passava, estava proclamada a independência, mal-entendido que se corrige agora.

Havia ainda outra solução para isto, mas essa era mais complicada. Vista por alto, passaria por um grupo de cidadãos, um grupo crescente até se tornar significativo, depois maioritário, e por fim esmagador, que tomasse consciência da sua cidadania, mil portugueses, um milhão, dez milhões, a exigirem a concretização de Portugal. Uma massa esmagadora que, sem deixar de apreciar benevolamente as prestações da selecção portuguesa no Euro e no Mundial de futebol, reservasse as bandeiras nas janelas para os verdadeiros eventos nacionais que faltam acontecer. Que protestasse contra o cancelamento do jogo do Benfica, claro, mas mil vezes mais contra os tribunais que não julgam, os hospitais que não curam, as escolas que não educam. Mas um país a sério exige um povo que o mereça, um povo que se leve a sério. Pensando bem, talvez seja mais fácil mandar vir os espanhóis.

1 comentário:

Leo disse...

Vaias à parte (mas merecidas, diga-se de passagem, apesar da argumentação pesar bastante a favor) gostei daquela teoria de “Sobretudo, não façam nada enquanto eu não voltar”.

Fora isso até tenho na parede do meu local de trabalho, uma banda desenhada do Lopes, o repórter pós moderno, em que ele entrevista o D. Afonso Henriques:

- D. Afonso Henriques, há quem diga que gostaria de o ver ressuscitar para que a história de Portugal pudesse recomeçar desde o início. Se pudesse voltar ao princípio, o que faria de diferente?

ao que o dito responde

- Bem, sabendo o que sei hoje, talvez oferecesse um ramo de flores à minha mãe...


Também há quem diga que temos é o azar de sermos filhos dos que cá ficaram...mas isso já são outros quinhentos.