8.06.2006

21 – Something else.

A mesa 19 anda-me a dar cabo do Verão. Se não for esse o caso, então, são as minhas leituras de Verão que se puseram às turras com a mesa 19. Seja lá como for, o problema é bicudo: ora digam-me cá, de que vale a um homem sonhar serões de Hemingway, Hugo e Boris Vian, para vir depois almoçar questiúnculas de trabalho, ou discussões, acaloradas e quase físicas, sobre mal definidos problemas sociais, de resto quase inteiramente marginais à nossa tertúlia? Não digo que se não trate de importantes questões, mas roubam muito àquela leveza de texto que tão bem caracteriza a mesa 19. Salvou-se nesse dia, por entre a miséria geral, o debate sobre a terceira guerra mundial, com ênfase na questão russa, e a minha salada russa, que também estava excelente. A maionese, sobretudo, era caseira.

Pese embora a imagem caturra dos Marretas, com que de início nos caracterizámos, estas crónicas pretendem ser sobretudo uma força dinâmica de subversão, qual faca acerada que, guiada por mão palpitante de vida feroz, rasga com fria precisão o tecido putrefacto e cediço da lassa trama social. Não nos resignaremos, dê por onde der, a ser o débil grasnar da voz esclerótica de dois velhos rezingões, protestando pela força do hábito contra tudo aquilo a que se acomodaram já. As crónicas existem para agitar, com o vento saudável do caos bélico, as atmosferas estagnadas, onde se instalou o detestável marasmo de uma paz podre. E se é a própria mesa 19 quem requer o salutar abanão, pois não há que duvidar, vamo-nos a ela, como Santiago aos mouros.

Mas surge aqui o dilema, eu não posso, a sério, denegrir a mesa 19. Tenho-lhe demasiada estima, e não posso fazê-lo, a sério que não posso. Isto sugere uma só solução, já que não o posso fazer, a sério, terei de o fazer a brincar. Não verdadeiramente a brincar, como aqueles petizes que empilham cubos, acocorados no chão. Não tenho jeito para me acocorar desse modo, além do que ficava, de certeza, com a gravata entalada nos entrefolhos das coxas. Não, pedirei apenas a licença do amável leitor para me distanciar um pouco do mundo real (não mais do que uns dois passos, e levo os meus sapatos castanhos), enquanto discorro sobre um mundo que, ao contrário da mesa 19, não existe mas poderia ter existido. Rogo-vos que não sejam muito rápidos a acusar de leviano este meu divagar. Como disse o bispo, antes de afirmarem que uma coisa é absurda, verifiquem sempre se trazem meias da mesma cor.

Seja qual for a mesa 19 de que se fale, ela é sempre constituída por gente moderna, desempoeirada, científica. Eu próprio me gabo de possuir todas estas qualidades, ao ponto de jamais me abalançar a comer um bife, sem primeiro o dissecar. De forma que, quando bati com o jarro de vinho sobre a mesa, fazendo saltar o seu conteúdo, fi-lo com o mais escrupuloso respeito pelo princípio de Arquimedes.

Este, como é de todos sabido, postula que todo o corpo mergulhado num fluido fica molhado, manifestando depois uma tendência para correr nu pela rua, a gritar, Eureka. É conhecida a reacção do célebre sábio quando, na banheira, fez a sua portentosa descoberta: ficou de imediato molhado, sofrendo depois uma impulsão vertical, de baixo para cima, de força igual ao peso do volume de fluido deslocado. Riu-se em seguida com vontade, ao compreender que descobrira o princípio de Arquimedes, pois esse era também o seu nome.

Isto é apenas um pormenor, que só menciono para mostrar que a mesa 19 leva a sério os grandes avanços da humanidade, todos os três. Alguns radicais saudosistas questionam a piza, mas eu, pessoalmente, continuo a achá-la digna de ombrear com os outros dois, o controlo remoto de televisão e a cerveja à pressão. Além destes, temos, como é evidente, a igualdade de direitos da mulher.

É o maior golpe de génio que a história regista, a igualdade de direitos das mulheres. É certo que tal evento veio prejudicar um pouco o uso do controlo remoto de televisão, mas as vantagens compensaram largamente os inconvenientes. No mero espaço de meio século, o homem conseguiu transformar a sua cara-metade num ser que não esperava já ser sustentado a vida inteira por ele, tendo como única obrigação superintender o trabalho das criadas, mas que sentia o impulso de sair para ganhar a vida, tal como ele milenarmente fazia. Desta forma, o homem adicionou uma boa fatia ao orçamento familiar, obtendo além disso uma esposa que, via de regra, chegava à noite cansada demais para lhe moer o juízo. Alguns, mais extremistas, passaram mesmo a viver à custa delas, o que talvez seja um abuso.

Houve também a revolução sexual, momento marcante da história, em que ferozes onanistas substituíram gloriosamente os seus sonhos pela crua realidade, após o que disseram, Porra, afinal é só isto? A grande maioria deu então em homossexual, mas houve ainda um grupo, mais equilibrado, que reverteu ao prazer solitário, embora as suas fantasias sexuais tenham passado a envolver, maioritariamente, cabras de pelo angorá. Foi desde aí que as criancinhas passaram a vir de Paris, dentro de uma couve. Ainda nos dias de hoje, a principal indústria de França consiste numa corporação de anões carecas que, no local do antigo mercado dos Halles, emprega noites sinistras a esgalhar pívias soturnas para dentro de inocentes couves, que são depois enviadas à Air France.

E a mesa 19, no meio disto tudo? Pois bem, lá está, com o seu sólido tampo, assente sobre quatro patas que fremem no desejo de alçar o voo, mas se vão infelizmente deixando ficar pela esfera inferior. Será que estas breves ponderações foram de alguma ajuda? Pois bem, estou em crer que não, mas o facto é que também não se perdeu nada.

2 comentários:

Anónimo disse...

...ah !... as cabras de pelo angorá ...! qual cereja no topo de "something else" !

Animal

Anónimo disse...

A densidade desta crónica deixa-me estupefacto! Terminada a leitura ocorreu-me de imediato o comentário que fiz à Crónica 1, no qual previ 'cataclismos de atroz consequência, tipo' e 'desabamento, sob o peso dos livros'. Deixando de lado o miserável que é um bacano citar-se a si próprio, estou compelido a temer a materialização dessas profecias ainda antes do fim da silly season (anexação do Líbano). Senão, vejamos. Da 21.
O Fo(n)zy anda a ler livros. Escritos por marginais. Todos eles passavam pelo velho Les Halles, pois eu lá os vi várias vezes. Como o Fo(n)zy muito bem nota, as questões da paz e da guerra varriam as mentes febris dos frequentadores, anões incluidos. Na época, cabelados. O que aconteceu foi que o advento da vida moderna (as três revoluções científicas referidas na 21) impediu que se chegasse a alguma conclusão sobre quais os momentos em que se vivia em paz ou em guerra. Daí os livros que a malta desatou a escrever. E a masturbação industrial que fez cair o pêlo aos anões e mirrou os grandões. Estava-se neste pé, trémulo, quando chegou a notícia de que as mulheres rejeitavam a quarta revolução científica e iam começar a beber absinto.
Caro Fo(n)zy, posso assegurar-te que foi aí que Les Halles desabou, os livros escritos começaram a ser lidos, a TV ganhou, os chineses franshisaram pizzas e a cerveja espumou.
Mas o mais grave, mesmo, é que debaixo dos escombros de Les Halles hoje em dia só se fala de 'questiúnculas de trabalho, ou discussões, acaloradas e quase físicas, sobre mal definidos problemas sociais'. Até o imbecil do Arquimedes anda nisso.
Face a isto, proponho à Mesa 19 um roteiro para a libertação.
Adoptemos a cacafonia como protocolo. Cada um fala do que lhe vai na cabeça, na língua que quiser, e sem atender ao que os outros dizem.
Talvez assim a Mesa levante vôo. Ainda pode acontecer que os que não derem em homosexuais consigam viver à custa da Vânia.

É este o meu contributo para o 'abanão'.