5.08.2006

2 – Os sapatos assombrados.

2 – Os sapatos assombrados.

Éramos muitos, naquele dia. Os cinco do costume, é claro, sem o esporádico Catarino, mas com a adição de um tal de Godinho, João de seu nome próprio, mais um Carlos, mas Lopes, que nesse dia se juntaram a nós, possivelmente com fins turísticos. Bastará pois ao amável leitor dispor dos miolos que Deus costuma dar aos gansos, mais uns quantos rudimentos de aritmética básica, para concluir que compúnhamos ali uma comitiva de sete pessoas, e bem galharda que ela era. Tinha contudo um defeito, que era o de exceder a lotação da mesa 19. com efeito, a nossa fiel mesa não era capaz, por mais que se esforçasse, de albergar um número superior a seis comensais, uma vez que os acrescentos necessários a esse efeito inviabilizariam por completo o acesso ao resto da sala. Não tivemos portanto mais remédio do que tomar para nós outra mesa, a do fundo da sala, que podia sem inconveniente ser estendida de parede a parede. Não sei qual era o número da mesa, nem quero saber. No nosso espírito, continuava a ser a mesa 19, e a mesa 19 é sobretudo um estado de espírito. A nossa mesa 19, além disso, é uma boa mesa, uma mesa às direitas, que perdoa com bonomia estas pequenas traições, que por vezes não têm outro remédio senão acontecer, e pior ainda é quando não acontecem, mas vão só acontecendo.

Havia uma leveza impalpável no ar, uma ténue atmosfera de magia, nesse almoço em que gastámos mais de três horas, o que era um excesso, até mesmo para nós. Era sexta-feira, para começar, o que basta para explicar muitas coisas, mas tinha havido outras sextas-feiras antes desta, em todo o caso. Talvez tenha tido a ver com o facto de três de nós, o Carlos Lopes, o José Eduardo e eu próprio, estarmos marcados para passar todo o dia de sábado a trabalhar, e sem qualquer compensação visível. Suponho que foi isso, mais do que outra coisa qualquer, que nos fez sentir que podíamos gastar o tempo que quiséssemos nesse almoço, coisa que de facto fizemos. Houve segundas rodadas de digestivos, houve mesmo terceiras, e, quando não podíamos sem vergonha pedir mais whisky, acabámos de esvaziar os jarros que tinham sobrado da refeição. Como eu disse já, havia uma leveza mágica que tudo desculpava, fosse pelas razões já adiantadas, ou apenas por estarmos a entrar no Verão. Outra possível explicação para esse ambiente surrealista eram os sapatos do João Godinho, que estavam assombrados.

O João deu o toque exacto de estranheza, logo à saída do local de trabalho, quando comentou, dirigindo-se a ninguém em especial, Os meus sapatos, hoje, estão a ranger. A observação mereceu uma ou duas respostas de rotina, nenhuma delas primando pela cortesia, e pareceu depois cair no esquecimento, mas aqueles sapatos continuaram a ranger-me no espírito. Rangeram por todo o caminho até ao restaurante, apesar de irmos num carro, e o barulho característico persistiu durante toda a refeição, bem depois de o seu proprietário estar sentado e quieto. Aquilo bulia-me com o juízo, que raio de coisa faria uns sapatos ranger, quando os pés que vestiam estavam postos em sossego? Na minha opinião, rangidos eram um ruído que se não ligava bem com sapatos, antes os associava mais a portas decrépitas de velhas mansões góticas, casas das quais se diz que têm uma “atmosfera”, pretendendo com isso significar que sentimos, ao entrar nelas, que continuam a ser habitadas pelos antigos proprietários, iguais ao que eram nesses tempos de antanho, só que mais mortos. Aí estava a explicação do mistério, os sapatos do João estavam assombrados.

Seria isto uma coisa inédita, um par de sapatos assombrado? Tradicionalmente, as assombrações tendem a manifestar-se em cemitérios ermos, igrejas vetustas, e casas de idade respeitável. Se entendermos a palavra “casa” como designando o conceito mais amplo de local de habitação, e nos lembrarmos da história da velha que vivia num sapato, as coisas começam a fazer sentido. Não quero dizer com isto que os sapatos do João fossem habitados, isto é, que fossem habitados por qualquer entidade corpórea diferente dos pés dele, mas nada disto impedia que um espírito os tivesse possuído. Que razões levariam tal espírito a ranger de uma maneira que mais fazia lembrar um velho colchão de molas, sobre o qual decorresse a visita de estudo de uma convenção de pedófilos a uma escola primária, era algo que por completo me ultrapassava, mas o som não deixava margem para dúvidas. Não sabia se era o único a ouvi-lo, ou se os outros todos estavam meramente a disfarçar, receio que amiúde me assalta, mas aquilo eram definitivamente rangidos. Talvez nem todos os fantasmas tenham os fundos necessários para adquirir correntes que possam chocalhar, e alguns tenham de se limitar a ranger, tal qual como se fossem uma porta. Ou um sapato.

Confesso que desconheço em absoluto quais são as regras de etiqueta aplicáveis, quando se almoça com um lémure, uma avantesma do outro mundo. Pela minha parte, comi disciplinadamente a minha inócua omoleta, e embarquei depois, com empenho e com denodo, na tranquilizadora ronda de digestivos, que se repetiu por várias vezes. Quando saímos de lá, alguns acusavam o toque das pouco habituais libações, mas eu vinha perfeitamente bem, a conversar com familiaridade com o nosso fantasma. Algumas das coisas que ele me disse tiveram o condão de me iluminar o espírito, e quando vi que ele exibia uma tromba de um tom rosado, em que ainda não reparara, atingi finalmente uma conclusão cósmica, que até aí me escapara: tenho de começar a beber menos, pelo menos ao almoço.

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