5.10.2006

3 – Mulheres.

Tenho visto muitas histórias que lançam no título o seu tema mais ou menos chocante, qual tiro de nove milímetros dextramente apontado ao coração da hipotética sensibilidade do leitor, para expenderem depois vários capítulos a tergiversar sobre as coisas divertidas que os querubins possivelmente farão com as suas pilinhas, desde que os pipis consintam em tais práticas, actividade a que vulgarmente se chama discutir o sexo dos anjos. Não se atolam nesse lodaçal estas crónicas, que se jactam de primar pela frontalidade e pelo desassombro, que se dizemos merda não é para irmos depois falar de cocó. Este capítulo traz o estigma, e com ele a honra e a glória, da palavra mulheres, e é delas que vamos falar.

Era um facto pertencente ao domínio público, embora escassamente entendido, que as únicas mulheres dignas desse nome, naquele restaurante, trabalhavam para a casa. Não sabíamos porquê, mas era como se o Todo-Poderoso tivesse um dia decretado, Todas as clientes do sexo feminino que frequentem este estabelecimento serão exemplares dignos de pertencer a uma exposição intitulada, Como seria o mundo se Deus não tivesse permitido que o homem erradicasse a sífilis. Para compensar esta aberração teológica, os clientes eram servidos por lindas jovens, semblantes de Vénus de Milo sobre corpos de Vitória de Samotrácia. Isto era pelo menos um alívio, mas as clientes… as clientes, santo Deus.

Mas que coisa esta, então não é que uma acusação de machismo, crescente murmúrio que semelha um rosnar surdo, se exala rumorosamente de uma multidão de mulheres, e um anátema, Marialva, é claramente desenhado por milhares de lábios femininos? Tento dizer-lhes que se acalmem, que não é nada disso que pensam, mas elas enfrentam-me com teimosia, e insistem em saber como se aplica esta minha regra aos homens, e se nós somos porventura bonitos. Minhas queridas senhoras, tranquilizo-as eu, é evidente que não. Nenhum homem neste mundo é bonito, a não ser algumas excepções que, acreditem-me, não vos serviriam para nada. Um homem bonito é como um cavalo cor de laranja, pode atrair por momentos a vista, mas não deixa de ser uma aberração da natureza, cuja mera existência desorganiza sistemas, e cuja utilidade se prefigura extremamente discutível. Eu sempre defendi que os monstros estão melhor quando se juntam, pelo que teria o maior prazer em acasalar esses delicados palminhos de cara com outras tantas halterofilistas, das que exibem matas virgens debaixo dos braços, pernas como barrotes e maxilas de quebra-nozes, e uma halitose capaz de abater vacas a dez passos. Resolvido o problema desses dois grupos, poderíamos finalmente tratar do assunto mais premente, que é o destino dos homens feios e das mulheres bonitas. Isto é, os seres humanos normais.

Parece o parágrafo anterior enfermar de uma incongruência, e a verdade é que não se dá esse caso. O facto é que as mulheres são todas bonitas, o que acontece é que algumas delas se deixam ficar feias. O aspecto exterior de uma mulher é um mero reflexo da sua aparência interior, e uma mulher que se mantenha bonita por dentro será sempre bonita por fora. Já no caso dos homens, o seu aspecto exterior é um reflexo da aparência dos quartos traseiros do último bisonte que os seus antepassados mataram, numa daquelas caçadas com que os homens se costumavam distrair, antes de as televisões serem equipadas com controlo remoto. É fácil de imaginar que esta cara não constitua um espectáculo agradável, e é por isso que a mulher perfeita é uma estonteante flor de delicada beleza, enquanto o homem ideal se assemelha ao doutor Marques Mendes, com as caretas e o suor do Silvester Stalone, em Rocky IV ou no Rambo. No pertinente caso da mesa 19, a Vânia, a Marta e a Lana eram as flores que nos estonteavam com o seu perfume, e nós os trogloditas que elas acarinhavam com a sabedoria milenar de todas as fêmeas. Depois disso, havia ainda as mulheres feias…

Elas são imperdoáveis, as mulheres feias. Uma mulher feia é um ser que deixou apodrecer e morrer a beleza do seu Eu íntimo, pelo que só pode apresentar ao mundo exterior uma máscara oca, ou a múmia de um cadáver. Víamos muito disso, da nossa mesa 19, mas nunca nos habituámos a deixar de lamentá-lo, por que razão não podiam as nossas inverosimilmente longas estadias ser suavizadas pelo alegre desfilar de uma procissão de ninfas, ostentando todas uma etérea beleza? O facto é que as ninfas desfilavam, todas as três, mas a sua vincada tendência para transportarem enormes travessas, o vício arreigado de se cobrirem com aventais informes, eram tudo coisas que prejudicavam grandemente o efeito final. Mesmo assim, ninguém poderia deixar de reparar em como eram bonitas.

Já falei delas antes, julgo eu. Havia a nossa Vânia, é claro, e também a Marta e a Lana. A Lana era um caso curioso, com um semblante de esfinge determinado pela sua ascendência eslava, capaz de nos trazer um jarro de tinto com a mesma serenidade gélida com que transportaria uma taça de cicuta. A Vânia e a Marta eram umas queridas, daquelas miúdas que usam a alma do lado de fora do corpo, o que lhes permite serem íntimas dos amigos, ao mesmo tempo que salvaguardam a sua verdadeira intimidade, pois uma alma é bem mais eficaz do que um cinto de castidade. Nós abusávamos vergonhosamente da Vânia, pedindo-lhe isto e aquilo e o dobro ao quadrado, com molho, se possível, mas tudo tem um limite, e não lhe tínhamos ainda pedido para arranjar mais mulheres para lá irem almoçar. Também não o fizemos nesse dia, mas eu reconheço que namorei por algum tempo a ideia de lhe perguntar porque era que aquele restaurante, de empregadas tão bonitas, só acolhia clientes feias.

Nessa minha imaginação, a Vânia ponderava pensativamente o problema, e diria, muito séria, Compreendo o dilema, uma mulher que não é bonita por fora porque não consegue ser bonita por dentro pode ser ofensiva, mas não deixa de ser gente, e como tal vê-se forçada a almoçar, como todos os outros. O facto, ponderou ainda, é que, se nós não lhes dermos de comer, a fome fará com que fiquem ainda mais feias.

E com esta, calou-me.

1 comentário:

Anónimo disse...

'Uma alma é bem mais eficaz do que um cinto de castidade' - Amei :))