5.17.2006

5 – O segredo da mesa 19.

Hoje foi um dia especial na mesa 19: o Paulo veio fazer-nos uma visita. Estão certamente recordados do Paulo, que eu mencionei logo no primeiro capítulo destas crónicas, um que foi de lá e depois deixou de ser, são partidas que a vida nos vai pregando. O Paulo esteve presente na fundação da mesa 19, viveu grande parte dos divertidos anos que aqui têm vindo a ser descritos, e partiu há uns meses para outros almoços, atitude muito natural da parte dele. Hoje resolveu dar-nos o prazer da sua companhia, o que muito lhe agradecemos, e mostrar que não esquecera os velhos tempos. Só para que não restassem dúvidas a esse respeito, começou por pedir, mal se sentou, o livro de reclamações. Sempre em forma, o velho Paulo.

Estava também lá o Carlos Lopes, conjugação de circunstantes que nos levou a abdicar da fiel 19, pelo menos no sentido físico, uma vez que éramos sete, número que, conforme se explicou já, excedia as capacidades da nossa boa mesa; fomos assim relegados para o fundo da sala. Nada disso tinha a menor importância, pois continuávamos a ser a mesa 19, pelo menos em espírito. O Paulo, apenas para não perder a prática, lançou para a mesa uns quantos insultos que, confesso, me pareceram soezes, e que teriam seriamente ofendido a minha dignidade, caso eu possuísse qualquer coisa nesse género. Eu respondi-lhe à letra, e isso levantou naturalmente a questão, que marreta era ele? Após alguma discussão, ficou decidido que se tratava do Animal, o baterista meio selvagem, cuja grandeza do ritmo só encontra rival na pequenez do intelecto. Aproveitou-se o embalo para atribuir ao Carlos Lopes o papel de Ralph, o cão pianista, personagem que quadra admiravelmente com a boa índole e trato cordato do nosso amigo. A mim, em contrapartida, insistem em não me deixar ser o Gonzo, o que me parece injusto.

O Paulo, não sei se vocês sabem, é um rapaz de trato chão e rude, o género do sal da terra, a perfeita combinação de um cavalheiro de província com o incrível Hulk, vestido com uma camisa Pierre Cardin. Capaz de actos de uma delicadeza que ninguém saberia adivinhar sob a insociável crosta, tal como, por exemplo, passar espontaneamente o vinho a alguém, depois de lhe terem gritado que o fizesse, pode igualmente sair-se com gestos de uma rudeza escarpadamente gótica, como fez quando de chofre perguntou à Vânia se ainda tinha o mesmo namorado. Mas a curiosidade venceu o meu repúdio, e acabei por me comover ao ouvi-la declarar que a tal relação estava em vias de completar um ano e dez meses. Um ano e dez meses, caramba, para onde vai o tempo? Um ano e dez meses, isso é quase, sei lá, as bodas de papel de alumínio. Quantos casais maduros andam por aí, que não estão sequer divorciados há tanto tempo como o que estes levam de estar juntos. Até faz ternura, caramba.

Isto levanta, como é natural, uma relevante questão, por que razão não falei eu ainda sobre o namorado da Vânia? Bem, a razão é simples, é que, por todo este tempo, eu não acreditei realmente que ele existisse. Quero dizer, é claro que ele estava sempre lá, que agarrava a Vânia e a beijava, mas não era por isso que tinha de existir. Também há o elefante cor-de-rosa que está sempre lá quando saímos, e estou certo de que ele não existe. Bem, quase certo. O chamado namorado da Vânia era para mim uma coisa vaga, uma fantasia juvenil da miúda, que por um acaso era corpórea, até que ela nos confiou que estavam prestes a comemorar as bodas de lata de sardinhas, e que ele se chamava Gonçalo. Isto atingiu-me como um raio, nenhuma jovem que se prezasse iria chamar Gonçalo à sua fantasia juvenil. Nenhuma jovem que se prezasse, de resto, chamaria Gonçalo fosse ao que fosse, excepto, possivelmente, a uma nova doença sexualmente transmissível. O assunto não admitia discussão, o Gonçalo existia mesmo, e era talvez aquele cidadão, de cabelo original, que por vezes estorvava, com a sua presença, a costumeira lepidez do serviço prestado à mesa 19.

Ficava apenas por resolver a questão, de que forma era possível que um rapaz que – sem o desmerecer, nem lhe tirar qualidades – apresentava uma assustadora semelhança com certos bolores que vulgarmente se associam à penicilina, tivesse conseguido namorar a nossa etérea Vânia? Eu julgo saber a resposta, ele é um extraterrestre disfarçado. Hipnotizou a Vânia com poderosos raios mentais, e tenta usá-la para, por seu intermédio, descobrir o segredo da mesa 19. A verdade é que perde o seu tempo, e está a ir por mau caminho. O segredo, é tempo de o dizer com muita clareza, apenas se revelará a quem dedique toda a sua atenção aos… que diabo, vocês já viram que horas são? Já estou atrasado, tenho de me pôr a andar. Até amanhã.

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