5.19.2006

7 – Pontos nos Is.

Há muitos, muitos anos atrás, nasceram na longínqua cidade de Leitzpifpofpum dois irmãos gémeos, iguais como duas gotas de água, ou, pelo menos, como duas gotas de água que fossem iguais uma à outra, o que nem sempre acontece. Quando, porém, atingiram a idade da razão, revelaram possuir temperamentos bem diversos. João era um rapaz alegre e afável, sempre disposto a ver tudo o que lhe acontecia pelo lado melhor, e dando sempre o benefício da dúvida a toda a gente, enquanto José era amargo e desconfiado, tenebrosamente pessimista, sempre de pé atrás, suspeitando as mais sinistras intenções em cada sorriso que lhe dirigissem. Quando o avô, no seu leito de morte, lhes legou o habitual tesouro, na trivial condição de o descobrirem, ambos se lançaram na costumeira demanda. José, sempre antipático para todos, não encontrou quem o ajudasse, e acabou por regressar de mãos vazias, pobre e esfarrapado. João, o irmão simpático, contou com a ajuda de toda a população, e veio mesmo a descobrir o tesouro. Infelizmente, quando regressava em busca dos meios com que o transportar, foi vítima de uma séria infecção urinária, da qual por fim faleceu. A moral desta história parece-me sobejamente evidente.

Vem tudo isto a propósito das duas últimas crónicas, em que me tocou fazer o papel de irmão mau, ao denegrir a imagem do Gonçalo. A Vânia não gostou, o que prova apenas que é uma boa namorada. Alguns dos outros intervenientes puseram também ressalvas, mas, nesse caso, a doutrina divide-se. O argumento avançado é que o rapaz não pertence ao universo da mesa 19, não tendo portanto cabimento nestas crónicas. O facto, no entanto, é que esse universo não se esgota nos comensais que se sentam em volta da mesa, ou nem a própria Vânia teria aqui lugar. Estas crónicas tratam da mesa 19 como um todo, e discutem seja o que for que se relacione com a vida dessa egrégia colectividade. O emplastro, nome afectuoso que nós lhe dávamos, tinha aqui o seu papel, basta ver as vezes em que tive de esperar pelo meu brandy, para não lhes interromper o namoro (note-se que as palavras “esperar” e “brandy” não deveriam jamais ser encontradas na mesma frase). Só por isso, ele tem cabimento aqui, honra de que pouca gente se pode gabar. Se o humor cáustico que é um apanágio destes textos o leva a ofender-se, e não se sente disposto a levar a coisa à conta de uma brincadeira, pois que disso se trata, tem sempre o bom remédio de não nos ler. No caso inverso, é com prazer que o acolhemos na fraternidade.

Outro aspecto que poderá, quiçá, merecer reparos, é a observação que de passagem deixei na última crónica, quando afirmei que estamos todos apaixonados pela Vânia, bem como pela Marta, embora com algumas flutuações. Disse-o espontaneamente, e fi-lo por ser verdade, mas vejo agora que se trata do género de observação capaz de lançar a minha pobre carcaça nas mãos da Polícia Judiciária, por suspeita de pedofilia. Que diabo, sempre era verdade que não passávamos de um bando de cotas, todos com idade bastante para sermos pais das moças, que história vinha agora a ser essa, de estarmos apaixonados? Mesmo o adjectivo “platónico” parecia, naquele contexto, uma desculpa de última hora, pretexto improvisado para fugir aos calabouços da prisão preventiva.

Pois bem, eu explico, não era nada disso. A verdade é esta, nós estamos apaixonados pelas duas raparigas, tal como estamos apaixonados pela vida, e pelas mesmas razões: elas são vida, o género de vida que brilha, ilumina e aquece, que ri e compreende e esquece, e é de facto um grande prazer privar com elas. Caso, por alguma razão que eu pessoalmente desconheço, não seja já permitido descrever tal prazer como sendo uma paixão, mesmo que seja paixão platónica, eu peço então desculpa, retiro as crónicas ofensivas, calo-me para sempre, pedindo apenas que parem o mundo, porque eu quero descer. Não sei para onde irei em seguida, mas sei que me recuso a ficar num sítio onde a minha língua só será aceite, se for primeiro castrada.

É um assunto do qual vou estando farto, essa mania do Politicamente Correcto, que de há uns anos a esta parte vem infestando o mundo, e que é ela própria uma das maiores incorrecções de sempre. É graças a essa tese que eu não posso chamar preto a um preto, embora ele me chame branco a mim, e que ao mesmo tempo assume que eu não posso falar de paixão entre mim e a rapariga do restaurante, ou entre mim e qualquer pessoa minha amiga, sem presumir de imediato que eu a quero levar para um qualquer motel, e fazer com ela o que Adão fazia com Eva, enquanto Deus vigiava as maçãs. Ou seja, o preto não é preto, porque isso poderia ofendê-lo, mas eu sou um tarado perverso, um bode velho e devasso, daqueles que só pensam nas mulheres para um fim, e ai de mim que tenha a veleidade de me ofender com tal coisa. Percebo a componente política, mas o que há de correcto nisto?

Mais uma vez, creio que a moral da história é evidente.

1 comentário:

Leo disse...

E um olhar mais atento respondeu à minha própria questão. Volto amanhã, que hoje já é tarde e não tive tempo de ler!