5.31.2006

10 – Os sonâmbulos.

Esta noite, caí da cama…

Pior, não foi sequer isto o que aconteceu. Cair da cama é algo que me tem já acontecido, embora com uma raridade que reputo extremamente feliz. Cair da cama é um acidente, mas atirar-me da cama abaixo é um acto de estupidez, ou não será? A verdade é que não é, trata-se apenas de um episódio de sonambulismo. Eu passo a explicar...

A palavra sonambulismo, que à letra quer dizer, locomoção durante o sono, designa genericamente os fenómenos em que o conteúdo do sonho se reflecte em acções no mundo real, como caminhar a dormir, ou falar em voz alta. Foi o que se deu comigo, sonhei que tentava escapar de um casa em chamas, para qual intento se impunha que saltasse através de uma janela baixa. Eu assim fiz, acordando quase no mesmo instante. Tive então, por uma breve fracção de segundo, um aflitivo momento em que experimentei a angústia do ser, enquanto dúvidas epistemológicas revoluteavam pelo meu espírito como andorinhas numa tarde de Verão, O que estou eu a conseguir da vida? Estarei a cumprir as minhas metas? E, acima de tudo, o que faço eu aqui, em plena queda livre?

A última pergunta perdeu a sua razão de ser, no momento em que colidi dolorosamente com a realidade. A realidade, nesta instância, tomou a forma material de uma grande porção de soalho, onde me deixei ficar estendido, meditando sobre a insensatez do ser humano, e sobre as razões de eu ser humano. Quando o fascínio deste exercício mental cedeu terreno ao desconforto da minha posição, levantei-me e fui para a cama, de onde tive o cuidado de não me voltar a atirar.

Pergunta-me agora o pouco paciente leitor, a que se deve a inclusão de tal episódio nestas crónicas, isto admitindo, como deverá ser admitido, que não foi da mesa 19 que eu caí, e nem sequer apareci a dormir no restaurante. Isso é sem dúvida verdade, e uma verdade muito bem vinda, uma vez que o meu hábito de dormir nu não deixaria de colidir com a moral severa e os austeros princípios desse excelente estabelecimento, com a estrita correcção dos dignos proprietários, e com o sentido estético dos restantes frequentadores. Isto esclarecido, devo dizer que veio a pelo relatar o nocturno episódio por uma simples razão, que foi ter o mesmo servido de ponto de partida para a conversa que dominou, no almoço de hoje, grande parte do período pós-prandial do repasto, também conhecido como a hora dos digestivos.

A narração dos meus apuros e vicissitudes foi acolhida com uma talvez imerecida ovação e aplauso, depois do que se contaram histórias subordinadas ao mesmo mote, o sonambulismo do Paulo e o de outros, que casos esporádicos também contam, a angústia de quem se perde num quarto escuro porque não se lembra de como lá chegou, ou o embaraço de acordar para encontrar a empregada, enquanto passeamos nus pela casa (esperem aí, esse também fui eu). Os casos iam-se cruzando, enquanto se perdia o fio à meada, quem foi mesmo que deu uma tareia à mulher, enquanto sonhava que combatia assaltantes? Foi nesse ponto que a verdade chocou estrepitosamente contra o mal aparelhado brigue das minhas ideias pré-concebidas: nós somos todos sonâmbulos, e não sabemos disso!

A coisa parecia bem achada, cristalina, até, mas a ambição de a arvorar em tese pedia mais fundamentada demonstração. Tal não era contudo difícil, tudo o que nós, os da mesa 19, fazemos o dia inteiro, é agir de acordo com a percepção da realidade que o nosso espírito nos fornece, e que nós quotidianamente tomamos pela própria realidade. Sobram todavia provas de que não é esse o caso, basta acordar um bocadinho, e olhar para os factos.

Ironicamente, o mais desperto de entre nós deveria ser, por direito de nascimento, o que era na realidade o principal sonâmbulo, o Paulo. Oriundo como era de Bostis Merdix, tinha a obrigação de compreender o que era a realidade, mas nunca ninguém foi capaz de determinar, infelizmente, se ele compreendia realmente alguma coisa, para além do acto boçal de introduzir comida na boca, e mastigá-la sem se babar, proeza que lhe custava um enorme esforço. Os restantes viviam um fenómeno que o Carlos chegou a descrever à mesa, sonhavam que tinham estado a sonhar, e que estavam agora acordados. Ora, não existe logro mais insidioso do que esse.

A estratégia é simples, tudo começa quando alguém decide criar macacos numa ampla jaula, pretendendo contudo que os símios se sintam livres. Encerra-os então numa pequena gaiola, a um canto da jaula, tendo o cuidado de munir a gaiola de uma fechadura fácil de abrir. Eventualmente, um macaco acabará por sair da gaiola, trazendo outros no seu rasto, e os macacos libertos passarão a habitar a larga jaula. Por terem escapado a uma prisão, serão incapazes de perceber que estão confinados a outra. Os macacos menos contestatários, pelo seu lado, continuarão a habitar a pequena gaiola. Chama-se a isto, em linguagem corporativa, o melhor de dois mundos.

E é assim que a mesa 19, como todos os que a rodeiam, lá vai realizando diariamente as suas sonâmbulas evoluções, representando no dia-a-dia o sonho que crê real. Mas a resistência alastra, mais pessoas são desligadas da matriz a cada dia que passa. E eu tenho esperanças de que um dia, não muito longínquo, um desconhecido se sente inesperadamente num lugar vago da mesa 19, e diga, apontando para um de nós, Foste designado para ser terminado. A história mostra que serás tu quem, um dia, vencerá a guerra contra o império corporativo. Os gestores do futuro enviaram um exterminador para te eliminar, e a minha missão é proteger-te.

Quem será o escolhido, a quem tais palavras serão ditas? A clarividência abandona-me, neste aspecto particular, e sei apenas que temos de estar preparados, e lutar para quebrar o sonambulismo em que nos movemos. Eu, pessoalmente, tenciono cair novamente da cama, esta noite.

2 comentários:

Anónimo disse...

Brilhante, caro Fozy! Mas como avento em comentário à 4, o corporate world já tanto carece de lucidez que não sabe para onde despachar terminators. A locomoção, no sonambulismo corporativo, é apenas rotacional e dos ombros para cima...

Anónimo disse...

Às vezes é bom colidir com a realidade dessa forma: caído no chão :) Adorei a história dos macacos, que tão bem se aplica a nós também. Um beijo enorme :)