5.18.2006

6 – Crónica da Idade Média.

Pensando bem nas coisas, estou convencido de que talvez tenha sido um pouco duro demais com o Gonçalo (que nome, santo Deus), na minha última crónica. A culpa não é do rapaz, mas toda nossa, por via de um facto que com tristeza aqui deixo exarado: nós tínhamos ciúmes dele! Isto é a pura verdade, e o mundo não conhece emoção mais devastadora do que o ciúme. Com toda a razão o bardo imortal admoestava o mouro de Veneza, nas sábias palavras de Iago: “guardai-vos, senhor, do ciúme, de que se nutre o monstro de olhos verdes”. É certo que, no fim do livro, se acaba por descobrir que o Iago é que era o filho da mãe, e bem lixou Otelo, mas isso não vem agora ao caso. A realidade é que todos nós estávamos apaixonados pela Vânia (e pela Marta, também, mas no caso dela estavam mais uns do que outros), e um amor platónico sofre tanto de ciúmes como outro amor qualquer. O nosso profundo desejo de a levarmos para uma ilha tropical, onde gastaríamos as tardes a beber caipirinhas geladas (que ela faria o favor de ir trazendo), era incompatível com aqueles braços que possessivamente a rodeavam, com aquele olhar que se assenhorava dela, e lentamente a ruminava. Mas era uma falha da nossa parte, nós não tínhamos o direito de o criticar.

Para não correr o risco de reincidir no mesmo pecadilho, vou hoje fazer uma crónica diferente. Abandonando, por uma vez sem exemplo, o registo histórico e preciso de verídicos sucessos, peço que me consintam a licença de perambular pelas veredas nevoentas da lenda e da fantasia, fontes de onde naturalmente brotam tantas sagas que, apesar dos seus contornos fantásticos, não deixam de encerrar em si alguma avisada moral. Com a vossa permissão, vou dizer-vos a história do cavaleiro da triste figura.

Explica-nos a lenda que, no tempo em que os animais falavam, e toda a gente era homossexual, desde os cowboys até ao primeiro-ministro, vagueava pelas charnecas ibéricas um cavaleiro, que tomara para si próprio um nome sonante, Dom Emplastro de la Mancha nas Calças. Acompanhado pelo seu fiel capachinho, que cavalgava um jumento, buscava levar o seu braço justiceiro a toda a parte onde houvesse fracos e oprimidos, desde que os fracos e oprimidos fossem miúdas novas, e de preferência giras. Animava-o, além disso, uma séria e nobre missão, que era o seu Graal e último objectivo. Com efeito, jurara sobre a espada nua, na fria madrugada de uma capela onde por toda a noite velara armas, que devotaria sangue e vida a resgatar a sua princesa, Dulcineia Sofia Pinto, que vivia escravizada numa masmorra, à mercê dos famigerados dragões da mesa 19, que por todas aquelas terras medievais infundiam terror, com as suas bocas que soltavam enormes jactos de bacoradas. O capachinho, pelo seu lado, não jurara coisa nenhuma, e desejava apenas que o seu dono perdesse o hábito de o pintar com cores foleiras.

Os dragões, porém, eram sempre muitos, e extremamente perversos, pelo que era necessário usar de manha. Uma das estratégias favoritas do cavaleiro permitia-lhe cegá-los e enojá-los ao mesmo tempo, o que conseguia exibindo-lhes de longe o seu capachinho, até que este se aborreceu, e começou a mostrar relutância em participar nestas manobras. Optou então por lhes envenenar a comida, fazendo-lhes servir, por exemplo, um caril de galinha, enriquecido com aquilo que as galinhas põem quando não estão a pôr ovos, mas os dragões tinham estômagos de ferro, e resistiram também a essa prova. Dom Emplastro desesperava…

Concebeu por fim o plano perfeito. Desta vez é que era, não ia haver falhas. Usaria o próprio segredo da mesa 19 para os exterminar, de uma vez e por todas. Secundado pelo fiel capachinho, avançou com determinação, e foi realmente uma pena que um camião do lixo, que recuava na sua direcção, o deixasse completamente esborrachado. Quando finalmente acabaram de raspar os restos dele do pneu de trás do veículo, encontraram vestígios de uma pequena quantidade de substância cinzenta que seria o seu cérebro, ou aquilo que no seu caso passava por ter esse nome.

Não se pense, todavia, que o nosso herói morreu totalmente, porque os cavaleiros de antanho não morrem nunca. No exacto momento em que a alma o abandonou, exalando um derradeiro beijo na direcção da dedicada Dulcineia, surgiu no firmamento setentrional uma nova constelação, a constelação do Emplastro. A novel plêiade continua a brilhar nos nossos céus, onde a podemos observar, numa noite de céu claro, abaixo da constelação do Dragão. Mesmo logo abaixo, com efeito. Bem, para dizer a verdade, parecem estar as duas empenhadas numa relação de carinho mútuo, com a constelação do Dragão a explicar à outra como se fazem meninos. Mas que a constelação do Emplastro está lá, lá isso está.

1 comentário:

Anónimo disse...

Prepara-te para o laxante na comida... que será o mínimo já que a Vânia não vai mostrar a crónica ao emplastro e portanto não corres o reisco de ser atropelado pela figura em questão.