5.06.2006

1 – O grupo dos Marretas.

Tenho de confessar que hesitei longamente, antes de me aventurar a lançar ao papel estas curtas historietas, que serão talvez de pequeno interesse lúdico, e escasso proveito moral. Uma questão, sobretudo, me tolhia a ponta da esferográfica, a saber: deveria eu, à semelhança de tantos cronistas mais experientes, ocultar as veras identidades dos protagonistas, a fim de, como se diz nos meios jornalísticos, proteger os inocentes? Acabei por me decidir pela negativa, baseando-me principalmente num facto consabido: não havia inocentes na mesa 19! Conhecíamos até bastantes inocentes, é certo, mas tinham felizmente o hábito de almoçar nos seus próprios curros, bem longe dos lugares onde costumávamos pastar. Quanto aos diversos psicopatas que constituíam o nosso grupo, estava determinado: nomes verdadeiros, e cada um que assuma, com desassombrada frontalidade, o seu papel nesta absurda tragédia grega a que chamam vida. Isto combinado, erga-se o pano, ritmando a sua subida pelo surdo rufar dos tambores. Senhoras e cavalheiros, apresento-vos a mesa 19.

O grupo, como seria de esperar, não foi sempre o mesmo, não há quem não saiba que estas coisas tendem a variar, ao longo do tempo e das conveniências. O Carlos e o Rui constituíam o núcleo histórico, e houve também um Paulo, que depois deixou de haver, são voltas que a vida dá. O Catarino ia entrando e saindo, e um dia caíram lá de pára-quedas um Zé, um Nuno, que é este vosso cronista, e ainda outro Rui, redundante adição ao ménage, o que obrigou a chamar Cardoso ao primeiro, e ao segundo Constâncio, tudo culpa de o registo civil nos obrigar a contentarmo-nos com meia dúzia de nomes próprios. Cretinos de vistas curtas, é o que eles são, por que cargas d’água é que eu não podia chamar Sonasol ao meu filho, afinal ele é meu, ou não é? Enfim, passe em branco o desabafo, e vamos em frente.

O Zé Eduardo era claramente o pior, isso se não contássemos com o Carlos, que era o pior. Não sofria, contudo, comparação com o Catarino, que se via bem que era o pior, além dos dois Ruis, qual deles o pior. Manda no entanto a verdade dos factos que se confesse que nenhum era tão mau como aquele a quem chamavam Nuno, quando não lhe chamavam coisas mais coloridas, que infelizmente não têm cabimento em textos de palavra impressa. Tratava-se de um canalha da pior espécie, que se ocultava sob os mais variegados disfarces, com que ia enganando os incautos. O facto de estarem estas crónicas abundantemente pontuadas de referências elogiativas a esse sacana deve-se meramente ao facto inteiramente acidental de ser ele, isto é, eu, o autor das modestas linhas. Esclarecida que fica esta particularidade, sigamos adiante.

Há uma tendência, deveras desagradável, para agrupar todos os malucos no mesmo saco, com manifesto incómodo dos próprios, conscientes que estão da sua individualidade alienada. Com efeito, a única coisa que um paranóico, um neurótico e um depressivo bipolar têm em comum é um furioso desejo de matar os outros dois, de preferência recorrendo a meios repulsivamente sangrentos. Enquanto ao nosso pequeno grupo, ficou já dito que éramos todos psicopatas, mas talvez fosse mais preciso se dissesse que éramos todos sociopatas, em menor ou maior grau, com particular destaque para o Zé Eduardo e para o Rui Constâncio. Estou francamente persuadido de que qualquer deles, se fosse deixado sozinho num quarto vazio, por um período de tempo suficiente, acabaria inevitavelmente por, à falta de outro alvo, se insultar a si próprio, de uma forma tão ofensiva que se veria forçado a desafiar-se para um duelo, como retaliação. À parte esta peculiaridade, eram dois excelentes rapazes, de trato ameno e cordato. Os restantes eram meramente malucos, isto é, uns tipos inteligentes, razoáveis e sérios, que consideravam o mundo real um sítio excelente para se visitar, mas que preferiam não viver lá.

Tem essa vaga entidade chamada O Povo o hábito de dizer, nos seus modos rudes e boçais, És maluco, vai-te tratar, e não deixa de ter razão, à sua maneira minimal e simplista. Os malucos precisam com efeito de tratamento, e nós não éramos uma excepção. Isso leva-me a notar que ainda não vos apresentei a Vânia, falha da qual contritamente me penitencio, e me apresso a colmatar. A Vânia era a nossa terapeuta, função para a qual estava particularmente bem equipada, pois, além de dispor dos necessários conhecimentos técnicos, aliava a uma carinha de anjo a paciência de uma Madre Teresa de Calcutá. Era de facto edificante, depois de o Constâncio ter feito o seu melhor para lhe pedir tudo menos o que de facto queria, com um sorriso sonso que teria posto Jesus Cristo a dar pontapés às criancinhas, vê-la afastar-se para voltar com a garrafa de whisky que tivera de adivinhar. Quando não estava ocupada com os distúrbios da nossa psique colectiva, a Vânia aproveitava a breve folga para nos trazer quantidades monstruosas de todo o tipo de bebidas, e até, por vezes, alguma comida. Se o tempo não lhe chegava para tanto, era assistida nessa função pela Marta e pela Lana, mas essas não eram psiquiatras, eram só uma espécie de tratadoras.

O grupo original reconhecera, desde muito cedo, a sua afinidade com uma famosa série televisiva, “Os Marretas”, e os dois fundadores que ainda subsistiam haviam reservado para si próprios o papel dos dois velhotes que, do alto do seu camarote, se empenhavam em boicotar o espectáculo. Quando tivemos de atribuir papéis aos recém-chegados, ninguém hesitou em associar o Zé Eduardo com a águia Sam, não tanto pelo puritanismo exacerbado da personagem, mas antes pela forma altiva e dogmática com que exercia esse puritanismo. O Constâncio ficou a ser o Proveta, ajudante de laboratório de acentuado semelhança física, e eu fui baptizado de Urso Fozy, numa discutível homenagem ao facto de eu saber uma ou outra piada, que não me coibia de partilhar com o resto da mesa, ou antes, com as pessoas que a ela se sentavam, como é evidente. De nada me valeu ressalvar que as pessoas tinham o hábito de rir efectivamente das minhas piadas, ao contrário do que se dava com as do Fozy. A aproximação era assim mesmo suficiente, e um urso parecia ser uma personagem adequada, por razões de peso, literalmente. Não me refiz, contudo, do desgosto de não me deixarem ser o Gonzo, o anormal roxo que gostava de galinhas. Eu não aprecio a galinha como prato, mas, tanto quanto sei, ele também não. Enfim, são injustiças da vida, de que nem a mesa 19 está isenta.

O problema de todas as comparações é que não passam disso mesmo, meras tentativas de associar coisas distintas, a partir de detalhes que calham ser iguais. A Islândia e a Austrália são comparáveis, posto que são ambos países, isto é, extensões de território soberanas, organizadas em núcleos populacionais, tais como vilas e cidades, todas habitadas por pessoas que, na essência, não se distinguem umas das outras, já que pertencem todas ao género humano. Seria contudo ingénuo extrapolar, a partir destas, outras semelhanças, e presumir cangurus que, em largos pulos, corressem as estepes geladas onde brilha o pálido sol da meia-noite. Pois também a minha identificação com o Urso Fozy deixou de lado inúmeras diferenças, como seja o facto de só um de nós ser gordo (e não era o urso). Isto abriu insidioso caminho a que um dia, inesperadamente, o Carlos me desvendasse uma revelação chocante, que teria sido óbvia para mim, caso eu tivesse o hábito de me ver no espelho em que os outros me contemplam: eu pareço-me, na realidade, com a personagem principal de uma série de animação norte-americana, chamada “Family Guy”.


A revelação foi particularmente devastadora para mim, porque a série em causa narra a saga do gordo, estúpido e preguiçoso pai de uma família disfuncional, e eu não me considero estúpido. Revi mais tarde alguns episódios, e vi-me compelido a aceitar a semelhança. A estupidez era uma mera discrepância em que poderíamos ir trabalhando, nada que a passagem do tempo não pudesse resolver. Toda esta história tem uma moral bem clara, que é o terrível perigo de comparar coisas distintas, no fito de as identificar uma com a outra.

E aqui fica, num breve relance, uma primeira impressão dessa vetusta organização que é a mesa 19. A refeição chegou eventualmente ao fim, e retirámo-nos todos, com os melhores votos de uma muito boa tarde. No dia seguinte, voltámos a almoçar lá.

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Fozy,
Fundador desaparecido da Mesa19, (desaparecimento esse que não se deve à inclusão dos penetras actuais - exceptuando os "pilha dentífricos" de que algum dia me vingarei, estou certo), e apreciador nato dos textos do Boris Vian (olha: outro que se poderia sentar na dita mesa, não tivesse já a "fazer tijolo" há décadas), fica-me a dúvida qual de facto é mesmo o "pior" (no mau sentido claro!) O Vian ou o Fozy ? Qual o mais corrosivo ? Uma questão para se realizar um novo referendo nacional, ou, quiçá, europeu...!
Continua os teus ensaios, que por mim, irás continuar a ter leitor!

P.S. Ainda continuo a negar-me a tomar os comprimidos matinais...!

Anónimo disse...

Tenho para mim que dos escritos até agora averbados não ressalta a azáfama que cunha a praxis diária da MESA 19. Sei que o Fozy não se interessa por Crónica, no sentido jornalístico. A 'loucura à solta na cabeça' ganha relevância nas imagens que transmite da vivificante lida. Mas...
Eu percebo ímpetos, quiçá magma, capaz de gerar novas conformidades, nunca vistas, e cataclismos de atroz consequência, tipo obliteração de sinal televisivo em todos os satélites, cabos, fios e cordéis, linhas, dedais e até torneiras, antenas e pedais. A devastação em todas as bancas, por desabamento, sob o peso dos livros.
Há que anunciar, sem pudor, o que se prepara. Na MESA 19.