5.15.2006

4 – Sim, mas a gestão corporativa será melhor?

Estas modestas crónicas, pobres como são, têm pelo menos a virtude de exsudar em cada palavra o aroma inconfundível da verdade. Trata-se de um estado de coisas desejável, e é na intenção de o manter que o pobre cronista se vê forçado a lançar um vigoroso desmentido, antes que as coisas se confundam. É com efeito concebível que algum leitor mais incauto, desses que lêem as linhas e desprezam as entrelinhas, tenha formulado o seguinte conceito, a Vânia era perfeita. Ora bem, pesem embora os meus sentimentos pessoais, vejo-me forçado a repor a verdade dos factos, e dizer sobriamente que não, a Vânia não é perfeita. Tem sobretudo um hábito detestável, que é o de inspeccionar todas as mesas, mas principalmente a mesa 19, em busca de artigos consumidos mas não declarados. Na nossa mesa, sobretudo, ela vai ao ponto de sondar a firmeza das tampas dos pacotinhos de manteiga e patê, para ver se não estão vazios, como se nós fossemos alguma vez capazes de a enganar desse reles modo. O facto de a termos por diversas vezes enganado, precisamente desse modo, é um detalhe inteiramente irrelevante, e só é mencionado neste texto para mostrar até onde pode ir a desconfiança humana.

Não nos limitávamos a enganá-la, de resto, pois iam já longe os dias da tampa ingenuamente colada com restos de queijo fundido, a restituir à embalagem vazia um aspecto virginalmente intacto. Nessas não caía ela já, e era por isso que espetava o dedo inquisitivo nas películas da cobertura, a ver se cediam. Tivemos então de inventar novas farsas, e um de nós – não fica bem estar aqui a dizer que foi o Rui, mas foi – tomou mesmo a liberdade de suprimir um pratinho do couvert, completo com pastas de barrar, pires e tudo, e reza a lenda local que ainda hoje o conserva em lugar de destaque, no museu de façanhas idas que mantém em casa. A manteiga está provavelmente rançosa, e o queijo emboloreceu, mas não deixa de ser um orgulhoso troféu. Diz-se por aí, em temerosos murmúrios, que lhe mandou mesmo encastoar uma placa em cobre martelado, onde se pode ler, em tipo arcaico, a data verídica da heróica façanha, bem como este singelo lema, Trouxe-o, e não o paguei. Coisas da infância da mesa 19, que, como todos nós, teve direito à descuidada meninice dos verdes anos, antes de amadurecer e constatar, com súbito choque, o molho de brócolos em que a vida a metera. Foi também desse tempo uma outra rábula, a das caixas coladas ao prato.

Foi uma ideia que evoluiu a partir de um facto simples, alguém se lembrou de passar a virar ao contrário as pequenas caixinhas, tanto as cheias como as vazias, e a moda pegou. É claro que a nossa Vânia, imperturbável, pegava em cada caixinha e tornava a virá-la, para a costumeira inspecção. Mas um dia trocámos-lhe as voltas e, quando ela pegou na primeira caixa, todo o conjunto de pires e caixinhas, unido por uns pingos de cola de secagem rápida, veio atrás da caixa seleccionada. Um a zero para a equipa visitante, mas o jogo ainda ia no início. Daí para a frente, o controlo tornou-se muito mais rigoroso, e nós éramos sempre apanhados.

Pois bem, pode perfeitamente imaginar-se como era detestável para nós esse controlo, considerando sobretudo que era um controlo selectivo, que visava especialmente a nossa mesa. Quem não se enfureceria, ante uma tal inspecção sistemática? Eu digo-vos quem, nós não nos enfurecíamos, e o controlo que a Vânia fazia era pura e simplesmente delicioso, e não desejaríamos jamais que acabasse. Não quero com isto dizer que fôssemos um bando de masoquistas com carências, coisa que não poderia estar mais longe da verdade. O único desvio comportamental que alguma vez tive ocasião de apreciar, na mesa 19, teve a ver com dois ou três indivíduos, que me pareceram gostar de sexo. Nada disto tinha a ver com o controlo da Vânia, que evocava de maneira admirável um merceeiro dos antigos, sempre atento ao seu pacote de rebuçados. Cada sondagem de um pacote de manteiga era mais um passo rumo ao passado perdido, passado que sobrevive hoje uma vida alegórica nestas casas, e vai fingindo que vive ainda nas chamadas casas de fado, centros comerciais pretendendo não o ser, sempre a enterrar o enfermo que simulam salvar. O facto é que, extintas as tabernas e vendida a alma do fado, é só em certos restaurantes que subsiste ainda uma qualidade de vida que por toda a parte agoniza, e o nosso restaurante é disso paradigma. A maior parte das pessoas não se apercebe desta perda, e vai assim contribuindo para ela. Enfim, sunt lacrimae rerum.

Vem isto tudo a propósito do seguinte, a gestão corporativa não inspecciona embalagens usadas nas mesas, e isso por duas razões, sendo a primeira o facto de não dispor geralmente de uma Vânia para esse efeito. A segunda razão é ainda mais problemática, a gestão corporativa não tem, simplesmente, qualquer forma de impedir que algo seja ou não feito, ou de forçar a feitura, ou a não feitura, seja do que for. O primeiro passo, na implementação de qualquer processo num modelo corporativo, é a criação de uma estrutura rígida, a encapsular o projecto. Essa estrutura, que terá por missão desenhar, conduzir as actividades de implementação, e por fim manter em funcionamento o processo, é naturalmente constituída por seres humanos, e é neste ponto que todo o edifício cai por terra. As corporações são constituídas por pessoas, mas jamais serão capazes de entender as pessoas.

A razão por que isto se dá é verdadeiramente simples, e está ao alcance de qualquer pessoa que se dê ao trabalho de olhar com um pouco de atenção: as corporações encorajam, na sua cultura de empresa., um processo mental que o escritor George Orwell denominou, na sua histórica novela 1984, double-thinking. A expressão, segundo o autor, designa a habilidade cultivada de pensar numa mesma coisa a dois níveis, contraditórios entre si, e mutuamente exclusivos, sem detectar conscientemente a menor discrepância. Esta técnica permite ao moderno gestor considerar uma pessoa como uma mera unidade produtiva, redundante e, possivelmente, auferindo um vencimento excessivo, quando se trata de avaliar o seu mérito, enquanto lhe possibilita exigir à dita unidade produtiva a iniciativa, capacidade de inovação e esprit-de-corps de um técnico altamente qualificado, com uma brilhante carreira no seu futuro. Ao empregado em causa, que naturalmente se não revê em qualquer das imagens dadas, acaba por suceder aquilo que se deu com o cavalo de Sir Lancelot, quando o nobre cavaleiro conheceu o perigo em que se encontrava a rainha, e, segundo rezam as crónicas, “montou o seu fiel ginete, e galopou furiosamente em todas as direcções”. Está mais que visto que a pobre alimária se estatelou, ainda antes de sair do ponto de partida.

Se o nosso restaurante fosse entregue aos cuidados de um desses modernos gestores, é mais que certo que a obstinada mente empresarial começaria por classificar a Vânia, a Marta e a Lana como empregadas de mesa, peça simples e barata da engrenagem restaurativa, ao mesmo tempo em que, sem embargo da opinião anterior, as veria como algo abstruso e complicado, tipo, Paradigmas do interface do cliente com a empresa, posição que naturalmente multiplicaria as responsabilidades do seu cargo. Isto levá-las-ia a serem tratadas, de um modo geral, sem a menor consideração, dado o seu baixo estatuto, ao mesmo tempo em que seriam penalizadas por não estarem à altura do seu elevado estatuto. Não levaria muito tempo até que elas baixassem os braços, desistissem de competir nesse jogo esquizofrénico, e se limitassem a transportar uma outra bandeja, atendendo tarde os clientes, e de má vontade. Nunca mais um pacote de manteiga voltaria a ser conferido.

Nada disto se dava aqui, seja Deus no céu louvado. O restaurante era uma pequena empresa à moda antiga, onde quem servia era invariavelmente parente ou amigo da casa, e trabalhava com o entusiasmo e a dedicação de quem veste uma camisola. Não há camisolas para vestir no mundo corporativo, reino onde o próprio monarca vai sempre nu, mas aqui havia, e dava gosto ver o orgulho com que eram envergadas. Era por isso que a Vânia corria quando lhe pedíamos algo, e era por isso que se esmerava a desempenhar o seu papel, quando inspeccionava os pacotinhos das entradas.

Era também por isso que nós lá voltávamos, dia após dia, quase todos os dias, para encontrar um mundo mais saudável do que aquele que cada vez mais nos rodeava, embora nem sempre nos déssemos conta do que realmente buscávamos. E também nesse dia, que era como uma curta sinopse de todos os outros dias, observamos com agrado a Vânia, que com denodo cumpria o ritual de todos os dias, e se certificava de que não enganávamos a casa. Iria fazê-lo de novo amanhã, e isso era bom. É importante saber que há coisas das quais as pessoas não desistem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Nuno!!!
Daqui a vossa empregada de mesa!!!

Só para relembrar que o todo o meu esforço é mais que recompensado só pelo carinho que todos os dias recebo de vocês!!!

Anónimo disse...

Não consigo ser hiperbólico, nem poético, quando assuntos nucleares dos mundos onde vivemos são abordados.
A lógica dos ideólogos do 'corporate business' assenta apenas em ameaças, e não em leis de ciência; lembram-me rapazolas que sovei na escola, e depois me convidavam à desforra na rua deles 'porque o meu pai é polícia'.
Quem sabe que os monstros não existem, quem sabe que os seres humanos são singelamente isso, não embarca nessas missas.
Estou de acordo com o ângulo de análise desta 'Crónica 4', mas em desacordo com a interrogação que a titula. Para mim é solar que a gestão corporativa foge, foge, foge da sua própria ilusão, mas sabe que o seu fim está iminente.

'You cannot fool everybody all the time'